Mulheres vivas: Contra a barbárie do feminicídio, ocupar as ruas

O Brasil vive uma escalada de violência misógina que não pode mais ser tratada como caso isolado ou como obra de “monstros individuais”. O movimento feminista tem alertado há anos para o aprofundamento desse cenário e a explosão de casos recentes apenas confirma um diagnóstico incômodo: existe um pacto masculinista que atravessa o sistema de justiça, fragiliza denúncias, desrespeita protocolos de gênero e solta agressores até mesmo quando flagrados. Quando tribunais reproduzem estereótipos, ignoram evidências ou relativizam a palavra das mulheres, o Estado não apenas falha: ele enfraquece a Lei Maria da Penha e alimenta a sensação de impunidade. Ao mesmo tempo, cresce um mercado de influenciadores misóginos que lucram nas redes sociais disseminando o ódio e ensinando outros homens a violentar, controlar e humilhar mulheres. É nesse cenário que a regulamentação da internet se torna urgente: é fundamental impedir a propagação do discurso de ódio, responsabilizar as plataformas e proteger quem é alvo dessa violência.

Nos últimos dias, esse pacto se expressou de forma brutal: o assassinato de uma mulher e de seus quatro filhos em um incêndio criminoso provocado pelo ex-companheiro, no Recife; o caso da mulher atropelada e arrastada por 1 km na Marginal Tietê, em São Paulo, perdendo as duas pernas; o feminicídio da trabalhadora morta a tiros pelo ex-companheiro dentro da pastelaria onde trabalhava, também em São Paulo; o duplo assassinato das duas trabalhadoras do CEFET-RJ, mortas por um colega que não aceitava ser chefiado por uma mulher; e as agressões seguidas de tentativa de estupro promovidas pelo influenciador misógino conhecido como “Calvo do Campari”. Esses episódios, tão distintos quanto recorrentes, revelam que a violência não é uma tragédia privada: é uma engrenagem pública que opera todos os dias.

É nesse contexto que o PL 896, hoje em discussão no Senado, passou a ganhar força ao propor a criminalização da misoginia. Mas é preciso reforçar: o centro do debate não está na criação de novos tipos penais. O desafio real é fazer valer o que já existe e ir além: enfrentar as raízes estruturais que produzem a misoginia. É nelas que a violência se reproduz, se legitima e se renova.

Afirmamos a importância da responsabilização. Mas queremos mais eficácia, não mais encarceramento. Queremos políticas que realmente protejam mulheres, não respostas imediatistas que apenas reforçam o Estado penal. Por isso, é fundamental evitar discursos oficiais que individualizam a violência ou que tratam agressores como exceções patológicas, como ocorreu recentemente com declarações do presidente Lula. A violência contra as mulheres é estrutural e, ao reduzir o problema a desvios individuais, o debate público se afasta das transformações de que precisamos.

Há um terreno comum entre setores progressistas e o senso comum: quase todas as pessoas concordam que a violência contra as mulheres é intolerável. O que muda é o caminho para enfrentá-la. Muitos acreditam, de forma relativamente compreensível, que respostas duras, como penas mais altas, seriam suficientes. Mas a experiência brasileira e internacional mostra que não é isso que transforma a realidade. A ampliação de punições já ocorreu inúmeras vezes e, mesmo assim, convivemos com índices altíssimos de feminicídio, reincidência, violência doméstica e abuso institucional. Não se trata de descartar qualquer forma de punição, mas de reconhecer que ela não tem sido capaz de interromper a engrenagem que produz a violência.

O que alimenta essa engrenagem é a própria misoginia, entendida não como ódio individual, mas como um pilar de organização do poder. Ela estrutura relações familiares, decisões políticas, dinâmicas econômicas e visões de mundo. A misoginia mantém o trabalho reprodutivo das mulheres naturalizado e gratuito; legitima a ideia de que homens têm direito a controlar nossos corpos, emoções e sexualidades; sustenta hierarquias que alimentam o autoritarismo e o neoliberalismo. Reforça práticas racistas e classistas, que tornam algumas mulheres mais vulneráveis que outras. Funciona como linguagem política da extrema-direita, que mobiliza medo e ressentimento para defender um projeto de sociedade profundamente desigual.

A violência contra as mulheres é hoje uma das principais emergências da conjuntura. Ela atinge diretamente a maioria da classe trabalhadora, destrói vidas, famílias e corpos-territórios e ameaça qualquer horizonte democrático que temos tentado, a duras penas, construir no nosso país. Para enfrentá-la, nossas organizações defendem: ocupar as ruas, pressionar governos, disputar corações e mentes e reorganizar as lutas feministas.

A mobilização nacional “Levante Mulheres Vivas”, marcada para 7 de dezembro, pode ser um primeiro passo, ainda que atos prévios já estejam ocorrendo em várias cidades. É fundamental envolver movimentos, frentes, partidos, juventudes e toda a classe trabalhadora na construção e participação dessas iniciativas. No ano passado, demonstramos, com a campanha “Criança não é Mãe”, que é possível disputar consciências, enfrentar conservadorismos e construir mobilizações massivas, mesmo em pautas consideradas “difíceis”. Agora, diante desses casos gravíssimos de violência contra mulheres em menos de uma semana, é ainda mais urgente recolocar essa luta nas ruas e na ordem do dia.

O Movimento Mulheres em Luta (MEL) tem, na nossa opinião, uma excelente contribuição a dar neste momento: com incidência e articulação política a partir de sua rede de parlamentares; com elaboração consistente produzida por cientistas e pesquisadoras; e, sobretudo, com a força das ruas e a autoridade pública de figuras como Manuela D’Ávila e Talíria Petrone.

Mas a luta contra o feminicídio não é uma pauta só de mulheres, ela é estratégica para o conjunto da esquerda brasileira. De um lado, a luta pelo fim da escala 6×1 mobiliza a maioria da classe trabalhadora, que vive sob jornadas exaustivas, salários insuficientes e pouco tempo para descansar, conviver, estudar e viver com dignidade. Do outro, a violência contra as mulheres atinge a maior parcela dessa mesma classe, revelando que a exploração do trabalho e a opressão de gênero caminham juntas. Afinal, são as mulheres, em especial as mulheres negras e periféricas, que ocupam os postos mais precarizados, recebem os menores salários, acumulam dupla ou tripla jornada e ainda enfrentam o medo constante da violência, dentro e fora de casa.

Essas duas pautas não estão separadas: a jornada exaustiva aumenta a vulnerabilidade, dificulta a autonomia financeira, agrava o adoecimento físico e mental e aprisiona milhares de mulheres em ciclos de violência. Lutar pelo fim da escala 6×1 é também lutar pelo direito das mulheres ao descanso, à vida, à proteção e à dignidade. Da mesma forma, combater a violência contra as mulheres é enfrentar o modelo de exploração que lucra com o cansaço, o medo e a desigualdade. São duas expressões da mesma estrutura injusta que explora, adoece e mata.

Por isso, combater a misoginia não é apenas proteger mulheres, é disputar o projeto de país e de mundo.

Se aceitarmos o caminho exclusivamente punitivista, fortalecemos uma lógica que não rompe com esse projeto, apenas o reorganiza: mais vigilância, mais polícia, mais prisões seletivas, mais respostas individuais para problemas estruturais. O Estado penal cresce, mas a proteção real não.

Mas existem mecanismos urgentes e concretos para transformar as condições que permitem que a violência aconteça. Isso inclui: garantir orçamento e fortalecer a rede de proteção; qualificar a atuação da segurança pública e do Judiciário, com formação de gênero obrigatória; responsabilizar o Estado quando descumpre protocolos ou solta agressores; ampliar políticas de educação, renda, moradia e autonomia econômica; enfrentar estereótipos de masculinidade e práticas culturais que naturalizam a violência; e construir maiorias sociais em torno de um projeto feminista e antirracista de país.

A pergunta que precisamos fazer, de forma honesta e coletiva, é: que tipo de sociedade queremos construir para que a violência contra as mulheres deixe, de fato, de ser possível?

Enquanto não mexermos na estrutura que fabrica misoginia todos os dias, continuaremos tentando apagar incêndios sem enfrentar o incêndio que está no centro da casa. É por isso que nossa luta não é apenas punição: é desmontar o projeto que produz essa violência e erguer, em seu lugar, um país onde a vida das mulheres seja inegociável.

A Insurgência, Resistência e Subverta se somam às mobilizações do próximo domingo, dia 7 de dezembro: somente um feminismo popular, antirracista e de classe pode enfrentar a raiz da violência. É hora de transformar a indignação em força organizada e de fazer deste momento um ponto de virada, em defesa das nossas vidas. Mulheres vivas! Vivas nos queremos! Nem uma a menos!

Insurgência, Resistência e Subverta
Correntes internas do PSOL

 

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