Erga a voz em favor das que não podem defender-se, seja a defensora de todas as desamparadas. Erga a voz e julgue com justiça; defenda os direitos das pobres e das necessitadas.
Provérbios 31.8,9
Rubem Alves disse: “Os cristãos incluíram uma declaração estranha no seu Credo. Diziam que criam e desejavam a ressurreição do corpo. Como se o corpo fosse a única coisa que importasse…. Mas haverá coisa que importe mais?”.
Pensar o corpo dentro da tradição cristã não é tarefa fácil – mesmo que o cristianismo o celebre e seu principal rito seja realizado pelo corpo e no corpo. Nessa alienação, o corpo da mulher foi o grande “condenado à morte”: deve ser mortificado, escondido, não mostrado. É o corpo que fere a todos, o mais excluído e exilado da teologia.
Refletir sobre isso a partir da teologia feminista é essencial. A teologia feminista é ação, voz, pensamento discordante, inquietação… Não se cala frente às desigualdades impostas por uma cultura misógina, patriarcal, classista e racista. Com essa proposta em mente, perguntamos: quais corpos merecem a ressurreição? A teóloga Rita N. Brock afirma que a fé na ressurreição deve vir de vislumbres reais da nossa habilidade de transformar o nosso mundo de sofrimento, rejeitando a promessa atrasada do paraíso e buscando compreender o significado da ressurreição mais como realidade viva do que como uma fraca esperança.
O fundamentalismo moral é central nos discursos que se manifestam no poder executivo e judiciário, especialmente contra a “ideologia de gênero”. Esse conceito, originado no contexto católico, foi amplamente popularizado nas mídias e redes sociais e adotado pela direita e pelos evangélicos fundamentalistas.
Grupos religiosos, de mãos dadas com o conservadorismo das elites latino-americanas, têm saído às ruas contra a legalização do aborto, enfrentando os movimentos feministas que avançaram na discussão. Um exemplo é o caso do PL 1904/2024, conhecido como “PL do Estuprador” ou “PL do Estupro”.
A proposta do deputado evangélico Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) prevê pena de até 20 anos para a mulher que interromper a gravidez resultante de estupro. Já um estuprador pode ser detido por no máximo dez anos, de acordo com o Código Penal. Essa aliança entre religiosos e conservadores apresenta o mesmo discurso e estética, criando movimentos articulados na defesa das pautas anti-gênero.
A inserção do fundamentalismo religioso na disputa pela aprovação de leis tem sido determinante para frear pautas importantes e amplamente debatidas pelos setores progressistas e feministas.
A freira e teóloga Ivone Gebara diz que a “ressurreição significa levantar-se, erguer-se, recuperar a vida. […]. Ressuscitar no cotidiano é apostar na realidade da vida presente como a realidade mais fundamental. É essa a realidade que tem consistência porque expressa o que vivemos e como respiramos”. Defendemos a ressurreição dos corpos das mulheres violentadas e massacradas por políticas de morte o aqui e agora. Uma ressurreição contínua e preventiva de nossas meninas-mulheres que sofrem violências de seus genitores, familiares, conjuges, pastores, padres.
As ruas estão cheias de profetizas anunciando a ressurreição. As mulheres, com seus panos verdes, marcham em diversas cidades do país em busca de justiça de gênero. Entre elas, há aquelas que carregam sua fé cristã e marcham contra o uso indevido do nome de Deus para oprimir e subjugar os corpos das mulheres.
A Frente de Mulheres de Fé está mobilizando um abaixo-assinado intitulado “MANIFESTO DA FRENTE DE MULHERES DE FÉ CONTRA O PL 1904-2024 DO ESTUPRO E ESTUPRADOR”, que já conta com mais de 2500 assinaturas de todo o Brasil. Elas denunciam as alianças patriarcais entre religião e partidos políticos que negociam nossos direitos em troca de votos.
Reivindicam que o Estado investigue os religiosos abusadores, repudiam qualquer projeto de lei que retire direitos das mulheres, e defendem que a laicidade do Estado seja um princípio inegociável. E
Elas também pedem que o Estado reavalie seus convênios com hospitais do SUS que se negam a realizar procedimentos contraceptivos devido a dogmas religiosos.
Nossa realidade, no Brasil de 2024, também nos coloca pedras à porta para impedir a ressurreição. Uma dessas pedras é o PL 1409/2024. No entanto, nossas companheiras do passado, do presente e do futuro insistem em remover pedras, destravar portas, furar tetos e quebrar janelas para que a ressurreição aconteça.
Como cristãs, acreditamos na ressurreição do corpo e que ela passa por políticas de direitos para a vida de plenitude de todas as mulheres. E o movimento feminista atua como uma ressurreição dos corpos oprimidos pelo Estado e pela religião.
Faço voz ao Manifesto que anuncia: “Dizemos não ao PL do Estupro e do Estuprador porque temos como referência o Evangelho da liberdade e da justiça para mulheres e homens, crianças e vulneráveis na sociedade. Foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gálatas 5:1); não permaneceremos sob o jugo da escravidão de um discurso religioso funesto.”