A morte do ex-presidente do Uruguai José Mujica, deixa um vazio na esquerda latina que será difícil preencher. “Era uma ave rara em todo o continente”, resume o cientista político uruguaio Lihuen Nocetto, professor na Universidade Católica de Temuco, no Chile. “E, no Uruguai, um extremo de austeridade.”
Conhecido como Pepe ou el viejo, Mujica foi rosto e alma da Frente Ampla, o maior movimento de esquerda uruguaio, surgido 1971 da união de diversos partidos. Nos anos 2000, o partido conquistou três mandatos presidenciais sequenciais, e estará ao menos até 2030 no poder com Yamandú Orsi.
A era Mujica fez do Uruguai um norte em agendas progressistas, viabilizando a legalização da maconha, a descriminalização do aborto e o casamento igualitário. Não à toa, foi comparado a outro Pepe: o ex-presidente José Batlle y Ordoñez, que instituiu no Uruguai o primeiro Estado de bem-estar social nas Américas, no início do século XX.
No plano internacional, dizia às claras o que pensava e defendia com paixão suas convicções. Também não hesitava em criticar outras lideranças da esquerda latino-americana, como os argentinos Néstor e Cristina Kirchner.
Mujica não permitiu seu câncer de esôfago o impedisse de trabalhar pela vitória da Frente Ampla na eleição de 2024. Sem o “Velho Pepe”, contudo, quem ocupará a dianteira da esquerda no Uruguai? “Não será Orsi”, crava Nocetto, que vê um hiato de liderança à vista. Nesta entrevista, ele mapeia o legado e as fissuras que el viejo deixou para trás.
A seguir, os principais trechos da conversa.
CartaCapital: Como definir Mujica na história do Uruguai?
Lihuen Nocetto: A trajetória de Mujica é como uma síntese da trajetória da democracia uruguaia nos últimos 70 anos. Foi militante em 1958, quando houve uma mudança no partido governante pela primeira vez — o Partido Colorado estava no poder até então. Ele foi assessor de um ministro do Partido Nacional no primeiro governo da alternância política.
Logo partiu para a guerrilha, na época em que a América Latina passou por uma polarização ideológica significativa, após a Revolução Cubana. Mujica foi um ator importante no movimento de libertação nacional dos Tupamaros e se tornou um dos reféns da ditadura (1973-85), o que significou mais um marco na história política.
Já no fim do período ditatorial, Mujica e seu grupo fizeram a transição da guerrilha para a participação na democracia liberal burguesa. Nesse processo, o grupo liderado por ele começou a desempenhar um papel fundamental na consolidação da esquerda nacional.
Isso aconteceu não tanto pelo seu papel como ex-guerrilheiro, nem pelo papel do Movimento de Participação Popular como herdeiro do Movimento de Libertação Nacional, mas porque esse setor político se aproximou, a partir de uma perspectiva estética e ética, de um setor da sociedade em que a esquerda tradicional tinha dificuldade de entrar, porque era uma esquerda mais intelectual e mais baseada em quadros, como o Partido Comunista.
Mujica, com esses caminhos mais simples, conseguiu atingir uma parcela fundamental do eleitorado: o povo simples, que fala sem grandes jogos de palavras e sem grandes complicações. Mujica e seu setor entraram nas grandes massas, e ele foi uma peça fundamental para os quatro governos que a Frente Ampla teve no Uruguai.
Em suma, a trajetória de sua vida é a trajetória da política moderna uruguaia, incluindo o período autoritário. No caso dele, como refém da ditadura, sintetiza o conflito político violento, a era da violência política; depois, a transição para a democracia e a consolidação da esquerda.
CC: E mesmo após a consolidação, manteve um estilo bem diferente de outros líderes da esquerda latino-americana…
LN: Esse estilo não era uma pose, mas uma questão de ética e de estética, de como um ser humano deveria viver. Ele falava sobre Seneca, os gregos etc. A forma era um fator central do conteúdo.
Isso marcou claramente, por um lado, o discurso político. O Uruguai também teve uma democratização das formas: os políticos começaram a ficar menos rígidos, quebrando um pouco os modos mais tradicionais e se aproximando mais das pessoas, sem que isso necessariamente implique em populismo.
Já a esquerda da região sempre teve em Mujica uma referência, mais por essa questão do ser e do parecer — “que os políticos vivam como dizem que os outros devem viver”.
Então, ele foi uma espécie de farol de coerência – que não necessariamente envolvia toda a esquerda no Uruguai, muito menos toda a esquerda na região. Mas sempre foi uma figura exemplar.
Era uma ave rara em todo o continente, e no Uruguai era um extremo de austeridade. Isso também alimentava o respeito que ele tinha. Mujica frequentemente dizia coisas que estavam fora de lugar, mas sempre provocava uma resposta como “bem, o Pepe é o Pepe”.
CC: A esquerda se preparou para o pós-Mujica? Orsi é um líder em potencial?
LN: Não creio que Orsi seja um líder na esquerda uruguaia. Dificilmente projetará liderança — é o atual presidente, mas não fará isso.
Não tenho muita clareza sobre como se formará a próxima liderança da esquerda, mas tenho certeza de que não será Orsi.
Será muito difícil para o MPP, o setor de Mujica, articular os votos. Desde 2005, tem sido de longe o setor mais votado na esquerda, mas não tenho certeza de que poderá continuar com esse impulso e essa força.
Os grandes líderes que a Frente Ampla teve foram Danilo Astori (vice-presidente de Mujica), Tabaré Vázquez e Pepe Mujica, mas agora nenhum dos três está aqui.
É um desafio para a esquerda. A diferença entre o Partido dos Trabalhadores brasileiro e a Frente Ampla uruguaia é que a organização da Frente Ampla é muito mais densa e, portanto, o surgimento de uma liderança, pelo menos na política, me parece mais plausível.
Mas não sei se aqueles líderes no aspecto organizacional podem projetar uma liderança de massa, com carisma. Mujica era muito especial. Quantos líderes carismáticos podem ser produzidos? Sem dúvida, haverá dificuldade para reter eleitores.