A nota oficial é lacônica, mas as implicações são profundas. Vamos à nota, depois comentamos:

“O governo federal designou o embaixador Mauricio Carvalho Lyrio, Secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Ministério das Relações Exteriores, para a função de negociador-chefe (sherpa) do Brasil no BRICS, por ocasião da presidência brasileira do bloco em 2025, em substituição ao embaixador Eduardo Paes Saboia.

Com larga experiência diplomática, o embaixador Mauricio Carvalho Lyrio é também o sherpa do Brasil no G20 e estará a cargo da organização de extensa agenda de reuniões técnicas e ministeriais durante a presidência pro tempore brasileira do BRICS, que culminará com a Cúpula de líderes.”

Segundo fontes do Cafezinho, a mudança é promissora e sinaliza a vitória da ala pró-China e pró-Brics dentro do governo e dentro do Itamaraty.

Lembrando: sherpa é um nome técnico no jargão diplomático para se referir ao principal representante de um país dentro de um bloco ou durante uma negociação estratégica entre nações.

Diferentemente de Eduardo Saboia antigo sherpa do Brasil no Brics, que é da chamada “aristocracia itamarateca”, filho de embaixador, com uma visão de mundo extremamente anglófila e europocêntrica, e que faz parte da ala anti-China, ainda muito forte dentro do Itamaraty e do governo (e isso apesar de Saboia ser o secretário de Ásia do Itamaraty!), Lyrio, também um diplomata de carreira, é um intelectual de esquerda, filiado ao PT e autor de um interessante livro sobre a China.

Embora os movimentos sociais mais engajados no debate geopolítico ainda estejam cautelosos com a mudança de sherpa, minhas fontes não conseguiram esconder uma ponta de otimismo e esperança de que ela pode indicar uma vitória da ala pró-Brics e pró-China dentro do governo.

O momento é muito desafiador para a política externa do Brasil. O Brics, quando foi criado, não tinha, nem de longe, o peso geopolítico, ou antes, a imagem geopolítica anti-imperialista que tem hoje. Quer dizer, ele já era visto como uma associação aos moldes dos países não-alinhados, mas o Ocidente encarava a iniciativa com benevolência, possivelmente por considerá-la inofensiva à velha ordem mundial.

Isso mudou completamente de uns anos para cá, e vem mudando em progressão geométrica, em virtude da nova realidade geopolítica. A China impôs-se como uma grande potência tecnológica, industrial, comercial e militar, abalando fatalmente uma ordem mundial baseada na subserviência de todos os países aos Estados Unidos. O que é mais interessante: a China também tornou-se uma potência ideológica, na medida em que pessoas do mundo inteiro passaram a olhar para o regime político chinês com admiração e curiosidade. E o próprio país, antes fechado numa orientação low-profile, tímida, silenciosa, imposta pelo astuto Deng Xiaoping, líder do processo de abertura da China ao mundo, passou a investir pesado, sob Xi Jinpging, na defesa de suas ideias e valores no palco internacional. A China finalmente vem ganhando softpower a um ritmo proporcional a seu crescimento!

Hoje a China tem um ecossistema próprio de mídia internacional, aí incluindo milhares, quiçá milhões de influenciadores, que fazem uma eficiente defesa do país na gigantesca ágora geopolítica da internet. E isso no momento em que a opinião pública mundial assiste, perplexa, os Estados Unidos e a Europa apoiarem um genocídio na Palestina, e o novo presidente dos EUA, Donald Trump, retirar o país da Organização Mundial de Saúde e do Acordo de Paris.

Após o discurso de posse de Donald Trump e a assinatura de suas primeiras decisões, ficou bastante claro que o Sul Global, mais que nunca, precisa se unir numa grande aliança anti-imperialista, que permita aos países em desenvolvimento se emanciparem. Não é um processo fácil, naturalmente, sobretudo porque os países pobres são pobres justamente porque permanecem, em grande parte, paralisados por suas próprias contradições políticas domésticas.

É o caso do Brasil e de quase todos os países latino-americanos, que tem enorme dificuldade de respirar livremente, pois vivem dentro da bolha asfixiante de um gigantesco e ultra-agressivo complexo midiático-cultural, que mantém suas camadas médias e intelectualizadas numa espécie de hipnose profunda, construída ao longo das últimas décadas através de golpes de Estado, sanções, intimidação geopolítica, e pressão econômica. E quem domina corações e mentes da classe média, também domina a opinião pública e o poder de facto do país. (Por isso defendo tanto, a propósito, que o governo e a esquerda, construam teorias e implementem ações práticas para reconstruir suas pontes com as classes médias nacionais).

Os movimentos sociais mais conscientes dos desafios geopolíticos vêem com muita esperança o crescimento da China e o fortalecimento do Brics. Essa é razão pela qual pressionam o governo Lula para que escolha um lado na nova ordem mundial, e que este lado seja o do Sul Global, da China e do Brics.

Espera-se que novo sherpa seja realmente uma vitória neste sentido. Em 2025, o Brasil será presidente do Brics, e seria lamentável que o principal negociador brasileiro no bloco fosse um sujeito como Saboia, que apesar de ser reconhecidamente um diplomata íntegro e brilhante, é alguém ideologicamente comprometido até a medula com uma ordem mundial que já não interessa ao Brasil defender.

A ordem dos movimentos sociais e da esquerda é se aproximar de Mauricio Carvalho Lyrio, nosso novo sherpa no Brics, e convencê-lo a se manter leal à ala do governo que defende o multilateralismo, a democratização do conselho de segurança da ONU, o direito da China a se desenvolver tecnologicamente (livre de sanções), o direito da Rússia a não permitir mísseis da Otan em suas fronteiras (assim como os EUA tem direito a não permitir mísseis russos ou chineses posicionados na fronteira do México), e o direito de todos os países de fazerem comércio nas moedas que quiserem.

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Last Update: 23/01/2025