A gestão do governador Eduardo Leite (PSDB), no Rio Grande do Sul, está sendo criticada por manter paralisados R$ 6,5 bilhões destinados a obras de prevenção de enchentes. A denúncia, inicialmente levantada pelo veículo independente Matinal Jornalismo, ganhou repercussão entre meios alternativos e, mais recentemente, motivou ação do Ministério Público Federal (MPF), que agora pressiona o Estado por respostas e transparência.
Segundo o procurador Celso Tres, que denunciou o caso, o governo agiu de forma ilegal ao condicionar a liberação das verbas à apresentação de projetos por parte dos municípios afetados — muitos dos quais carecem de estrutura técnica para elaborar esses estudos. “O governo fez uma coisa que é ilegal, que não tem base legal e que fundamentalmente também agride as boas práticas administrativas: ele anunciou que iria esperar os projetos serem apresentados pelos municípios. Então, por que que é ilegal isso? Porque os rios onde acontecem as enchentes pertence msempre a um dos entes federados. Os rios são de titularidade do Estado”, afirma o procurador.
Além da ilegalidade, a decisão teria implicações práticas graves: com a demora, obras essenciais, como a manutenção e ampliação de diques, seguem sem execução. Esses diques, estruturas fundamentais para conter a força das águas, já demonstraram fragilidade nas enchentes recentes, como as que afetaram severamente a região metropolitana de Porto Alegre em 2024.
A situação no Estado levou o procurador a traçar um paralelo com a chamada “indústria da seca” do Nordeste, em referência ao ciclo histórico de abandono, calamidade e repasse de verbas federais. “O Rio Grande do Sul está virando agora a indústria da enchente, porque é a lógica, você tem o flagelo, você tem a desgraça, que o ano passado foi o epicentro, mas na verdade em 2023 a natureza tinha dado o tiro de alerta”, aponta o procurador. “Então, e aí é aquela mesma lógica, você vai lá buscar dinheiro e tal, se falava no destino, agora nós estamos numa mesma situação, então é esta a situação, mas é isso mesmo, já vem de tempos, de outros governos também”, critica.
Apesar da alegada ausência de projetos, especialistas de instituições de ensino gaúchas já vinham apontando, há anos, soluções viáveis para minimizar os efeitos das enchentes. Propostas técnicas, como o alargamento de calhas de rios, a criação de áreas de extravasamento e a revitalização de estruturas antigas, já estão documentadas. Um dos exemplos citados pelo procurador é o de Santa Catarina, que tinha histórico de enchentes violentas nos anos 1980, mas que tomaram medidas simples e colocaram fim ao problema.
Segundo ele, muitos comitês de bacia hidrográfica já têm estudos prontos, inclusive com soluções pontuais que poderiam ter sido iniciadas sem grandes entraves legais. “A legislação, obviamente que em casos de emergência, calamidade pública, desastre, ela dispensa a legislação, ela dispensa inclusive estudos ambientais que se façam necessários pra salvar as pessoas, evidentemente, ou reduzem. Mas o problema não é o tempo para os estudos, provou essas verbas de 2012 que não é o tempo, é governança.”
O procurador criticou ainda a viagem à Holanda feita por Sebastião Melo, prefeito de Porto Alegre, e Eduardo Leite em busca de soluções. “É engraçado esse distanciamento da universidade, como existe essa negação à ciência.”
Diante do cenário de imobilismo, o MPF busca consolidar dados para pressionar o governo estadual. A estratégia envolve ouvir prefeitos e lideranças locais para compilar projetos que estão prontos ou em fase de elaboração, a fim de montar um dossiê e entregá-lo ao governo estadual como prova de que a alegada falta de projetos não justifica a paralisação das verbas.
Universidades
Enquanto o Rio Grande do Sul ainda lida com os impactos das enchentes que devastaram o estado em 2024 e vive sob constante risco de novas catástrofes, pesquisadores gaúchos lançaram a coletânea de artigos Reflexões para a Reconstrução do Rio Grande do Sul (Libretos), que mostrou que há tecnologia, conhecimento e propostas viáveis para mitigar os impactos das mudanças climáticas — mas que têm sido negligenciadas.
A iniciativa tem como finalidade de deixar um legado duradouro após a atuação da Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução, criada para lidar com a emergência, além de mobilizar universidades do Rio Grande do Sul para propor soluções concretas e regionais de adaptação climática.
“A ideia geral do livro era servir um pouco como essa aproximação entre a universidade e o poder público. Então, conseguir fazer com que os gestores públicos olhassem para os trabalhos acadêmicos a partir de uma outra perspectiva, que olhassem para aquele livro e dissessem: ‘Bom, isso aqui tem soluções que são válidas para nós’”, afirmou Pedro Romero Marques.
Lançada em março de 2025, a publicação foi entregue a parlamentares e representantes de prefeituras. No entanto, o governo do estado, embora convidado, não compareceu oficialmente ao evento, apenas recebeu o grupo um dia antes.
Soluções
Entre os destaques da obra está um sistema de modelagem computacional criado pela Universidade Federal do Rio Grande (UFRGS), capaz de prever com precisão como e quando a água invadirá áreas urbanas. O sistema foi essencial para que o município de Rio Grande prevenisse mortes durante as últimas enchentes.
“É uma ferramenta que permitiu que o Rio Grande tivesse uma capacidade muito significativa em cooperação com a universidade, claro, de evitar mortes, por exemplo, no momento em que a enchente chegou lá”, continua Marques.
Outra frente importante é a atuação do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da UFRGS, responsável por previsões sobre o nível do Guaíba. Segundo o pesquisador, até hoje o IPH é a referência técnica utilizada por Porto Alegre para decisões relacionadas às chuvas e enchentes.
Paralelamente, o livro destaca medidas não estruturais de prevenção e educação da população: criação de protocolos de emergência, treinamento da defesa civil, capacitação de profissionais da saúde e campanhas de conscientização. A proposta é que, mesmo com eventos extremos inevitáveis, as perdas humanas e materiais possam ser minimizadas com organização e planejamento.
“Nossos pesquisadores gaúchos têm comprometimento e qualidade técnica para auxiliar o poder público na construção de soluções. Estão dispostos, estão engajados a isso. É um pouco nesse sentido que as coisas podem ser feitas em curto prazo. Chamar essas pessoas para participar, chamar esses pesquisadores para estarem atuando junto do poder público, de forma que de fato eles estejam ajudando a tomar decisões. Não só um convite formal ou algo assim, mas que de fato façam com que eles estejam contribuindo”, resume Pedro Marques.
Desconexão
Pedro reforça que o problema vai além da atual gestão: trata-se de uma desconexão crônica entre poder público e academia, comum no Brasil, mas especialmente sensível em momentos de crise climática.
“O Rio Grande do Sul é o estado que mais forma meteorologistas no Brasil. E nós não temos um sistema público de meteorologia. A gente contrata a meteorologia privada e poderia ter um sistema público de meteorologia”, alertou.
Planejamento
A principal mensagem do projeto é clara: não há solução mágica ou imediata para as mudanças climáticas. É preciso investir em planejamento de longo prazo, com articulação entre governo e ciência, para que tragédias como as de 2024 não se repitam na mesma escala.
“Vai exigir que os governos consigam organizar com a comunidade científica planejamentos de 10, 20, 30 anos. Isso é uma mudança de lógica de como as coisas estão acontecendo hoje em dia. Então, acho que é chamar atenção que também não vai sair do papel amanhã os projetos que a gente colocou ali. Claro que tem muitas soluções que são eficazes no médio e curto prazo, mas a verdade é que é preciso atentar e destinar recursos para as soluções de médio e longo prazo. Não tem outro jeito”, concluiu.
Resposta
Em nota, o Governo do Estado informou que, desde maio de 2024, promoveu e segue promovendo diversas ações de reconstrução, cujos investimentos ultrapassam R$ 8,3 bilhões até o momento.
Para enfrentar a crise meteorológica e seus impactos, foi criado o Plano Rio Grande e o programa Desassorear RS, além de 89 projetos em andamento em 65 municípios, com 55 frentes de trabalho ativas e 34 já concluídas.
Sobre as verbas federais destinadas a estudos, o governo informou que “os recursos foram utilizados com o acompanhamento da União para a realização dos anteprojetos das bacias citadas no documento encaminhado pela reportagem”.
“Contudo, esses anteprojetos levavam em conta a base de dados então disponível no período anterior a 2012. Esses projetos estão sendo atualizados para a nova realidade do Estado, após a catástrofe de maio de 2024.”
“A afirmação que o Estado teria delegado aos municípios fazerem projetos de sistemas de proteção de cheias também não confere. A gestão de casas de bombas e diques municipais foi uma delegação da União às prefeituras, por meio do extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS)”, continua o governo estadual em nota.
Por fim, foi comunicado ainda que “com os anteprojetos concluídos, a próxima etapa será a realização do projeto executivo. Depois que essa fase é superada, serão iniciadas as obras. Todos os sistemas são acompanhados pelo Comitê Científico do Plano Rio Grande, que é composto por especialistas e pesquisadores”.
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