Organizações de defesa dos direitos humanos lançaram na segunda-feira (19) a Campanha Estadual Permanente de Prevenção e Combate à Tortura, que visa coibir a prática em locais como presídios, sistema socioeducativo, comunidades terapêuticas e comunidades de rua. A data coincide com os 20 anos do Massacre da Sé, quando sete pessoas em situação de rua foram assassinadas.
A principal ferramenta da campanha é um site que servirá de canal de denúncias, que podem ser feitas sob anonimato. O site também permitirá agendar um horário com o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (Condepe), a SOS Racismo e a Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo.
O presidente do Condepe, Adilson Sousa Santiago, disse que a intenção é que um primeiro relatório, gerado a partir dos registros na central de denúncias, seja consolidado e divulgado em um mês. “A tortura mudou. Não estamos falando mais só daquela tortura que te arrebenta, que quebra a pessoa, quebra ossos, que arranca membros, mas a tortura que tem encontrado outras formas”, ressaltou.
“A população em situação de rua, a gente vê o tempo todo, as forças policiais fazendo aquela ‘higienização humanitária’, em especial quando tem um grande evento que precisa apresentar uma cidade diferente do que a gente vê no dia a dia. Essa população é a mais violentada, quando ela tem seus cobertores arrancados, os colchonetes, as suas tendas”, acrescenta o presidente do Condepe.
Perguntado sobre quais outras localidades do estado têm alcançado números expressivos de tortura, Santiago destaca Campinas, Taubaté e Itatiaia. “No Condepe, o que mais chega é denúncia de [tortura em] presídios”, salienta.
De acordo com o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em julho, esse contingente no Brasil era de 301.896 pessoas. O estado de São Paulo concentra 42% do total registrado, com 127.169 pessoas, número superior ao de dezembro de 2023, quando era de 106.857 (41%). Já a capital São Paulo responde por 64% da população em situação de rua da unidade federativa, com 81.760 pessoas.
Roseli Kraemer integra o Fórum da Cidade de São Paulo, atuando mais fortemente no âmbito dos direitos das mulheres. Ela, que se identificou, há anos, com o movimento hippie, de contracultura, acabou passando necessidade durante a pandemia, quando sua filha ainda era menor de idade, e, desde então, passou a fazer parte do movimento organizado de defesa da população de rua na pandemia. Atualmente, ela faz parte do programa Reencontro, estruturado pela prefeitura de São Paulo e que oferece moradia temporária a pessoas em situação de rua.
“A gente não tem paz”, afirma a militante, que compara sua situação e a de seus companheiros de luta à de detentos em saidinha. “Nós somos as mais massacradas. A mulher sofre uma violência brutal, porque não tem apoio, não tem nada e fica na mão de todos. A gente fica na mão do governo, da rua, de todos. A violência física e a emocional são gigantescas. E hoje, a visual também, porque hoje, quando você olha para o lado, é só polícia. Você não tem o direito de ir e vir, o direito de ficar, não tem o direito de nada. E o próprio machismo, porque as mulheres das forças de segurança são machistas, agem com violência contra a mulher”, diz.
“A mulher envelhece mais rápido na rua, anda com diversas roupas para não ser estuprada”, complementa.
Em entrevista à Agência Brasil, o coordenador do Movimento Nacional de Luta em Defesa da População em Situação de Rua, Edvaldo Gonçalves, contou que conhecia três das vítimas do Massacre da Sé.
“A gente tentou federalizar [a investigação], não conseguiu, ficou na mão do estado e até hoje ninguém sabe quem foi. A gente desconfia e não pode falar, porque, se falar, fica sob risco”, diz o líder do movimento, que morou 30 anos na rua. “É difícil comemorar este dia. O 19 de agosto não é mais só nacional, virou uma data latino-americana. Na América do Sul, virou um dia de luta.”
Na capital paulista, um dos pontos denunciados pelos movimentos é a relação entre as ofensivas das forças de seguranças e a especulação imobiliária. Além disso, como salienta André Lucas Zaio, membro titular do Comitê PopRua, existe um forte preconceito que impede as famílias e pessoas em situação de rua de terem a chance de conseguir uma moradia social. O argumento, explica, é o de que pessoas nessa condição ganhariam os imóveis e depois venderiam, para gastar o dinheiro de modo irresponsável.
“A gente luta muito pelas políticas públicas para que esses imóveis [desocupados] não pertençam mais aos seus donos, porque o valor, a dívida que eles têm com o município, já é maior do que o valor venal do imóvel”, afirma, citando o Conjunto Habitacional Asdrúbal do Nascimento II/Edifício Mário de Andrade, no centro, como exemplo de que se trata de uma perspectiva equivocada. “Existem até hoje esses apartamentos. São 34 e as pessoas ainda são donas dos imóveis.”