Eles dizem que não têm religião, mas chamam Jesus de “o primeiro legendário”. Cobram até R$ 81.000 por retiros de “cura espiritual”, onde homens choram, gritam e juram restaurar a masculinidade perdida. Com estética de guerra e discurso de fé, o Movimento Legendários avança como braço simbólico da extrema direita latino-americana — e o Brasil é o seu maior reduto.

Essa não é só mais uma tendência religiosa contemporânea: é uma doutrina disfarçada de autoconhecimento, onde a opressão se rearticula com novas linguagens, mas velhos objetivos — controlar corpos, calar mulheres, lucrar com a fé. Entre discursos de redenção e figuras em busca de marketing religioso, os Legendários representam um perigoso projeto de reação moral, política e cultural. Mas afinal quem são, o que querem e por que precisamos confrontá-los?

Origem dos Legendários

O Movimento Legendários é um fenômeno que surgiu na Guatemala em 2015, fundado por Chepe Tupzu, um ex-pastor da Igreja Casa de Deus. Apresentando-se como uma resposta às “crises de masculinidade” e à “fragilidade espiritual” dos tempos atuais, o movimento promove uma narrativa de “transformação espiritual” exclusiva para homens, mas que esconde um projeto profundamente conservador, machista, LGBTIfóbico e alinhado à extrema direita latino-americana.

Rapidamente, o Legendários se expandiu para 20 países, com o Brasil sendo a maior base de participantes atualmente, com mais de 40 mil participantes. Suas atividades principais incluem eventos como o TOP – Track Outdoor Potential (Treinamento de Potencial, em tradução livre), experiências de três a quatro dias em ambientes isolados, onde homens passam por atividades físicas intensas, rituais religiosos e dinâmicas de liderança espiritual. Os pacotes custam entre R$ 1.500 – exclusivo para homens solteiros de 18 a 30 anos “que nunca tiveram relacionamentos/uniões conjugais” –, e R$ 81.000, excluindo o transporte. Também existem versões urbanas, de apenas um dia e mais baratas chamadas Legendários Day.

O discurso do movimento afirma não pertencer a nenhuma religião formal, mas paradoxalmente, trata Jesus como “o primeiro legendário” e baseia toda sua doutrina em preceitos do cristianismo evangélico. Além disso, o grupo defende que os participantes frequentem a igreja todos os domingos. O objetivo é “restaurar o papel do homem como provedor, protetor e sacerdote do lar”. Essa retórica reafirma a família tradicional patriarcal, naturalizando a subordinação das mulheres e das identidades dissidentes.

Legendários Curitiba: Momento de oração

Defesa da família tradicional e militarização dos valores cristãos

No Brasil, o crescimento dos Legendários está intimamente ligado ao avanço da juventude conservadora alinhada ao bolsonarismo e ao nacionalismo cristão. Embora o Movimento Legendários original (fundado na Guatemala) e iniciativas como aquelas promovidas por figuras como o deputado bolsonarista Nikolas Ferreira não sejam formalmente a mesma organização, compartilham a mesma matriz ideológica: a defesa da família tradicional, a militarização dos valores cristãos, a oposição às conquistas de mulheres e LGBTI+ e o combate às pautas progressistas. Nikolas, por exemplo, é um dos principais porta-vozes no Brasil da ideia de que há uma “ameaça” às crianças, à família e à religião – a mesma retórica que os Legendários reforçam em seus retiros.

A ideologia de gênero presente, baseada na reafirmação do homem como líder espiritual e material do lar é flagrante. As mulheres, embora respeitadas no discurso, são relegadas a papéis de apoio, submissão e cuidado, contribuindo para a reprodução de dinâmicas que colocam a voz e o poder de decisão exclusivamente nas mãos masculinas. Isso é particularmente perversos em contextos como o do Brasil, onde a violência doméstica atinge níveis alarmantes e a desigualdade de gênero compromete a vida, a liberdade e a dignidade de milhões de mulheres.

A hipocrisia do movimento também se revela na adesão de figuras que, após publicamente exaltarem a moralidade dos Legendários, foram flagradas em situações que contradizem seus discursos. Um exemplo simbólico é do pai de Neymar Jr, participante de um dos retiros, que logo depois foi flagrado em uma festa “regada” com mulheres em situação de prostituição – o que contradiz frontalmente os valores de “pureza, honra e responsabilidade familiar” promovidos pelo movimento.

Esse tipo de comportamento mostra como os Legendários são mais um instrumento de marketing espiritual do que um projeto de transformação ética. A associação com figuras públicas e influenciadores digitais apontam para a busca por status e reputação, mais do que por integridade moral. A composição racial e econômica dos Legendários reforça esse recorte: é um espaço masculino majoritariamente branco e elitizado.

Uma reação conservadora às conquistas democráticas

Em nome da “restauração espiritual”, os Legendários reagem às conquistas democráticas dos setores oprimidos, das últimas décadas. Ao estigmatizar o feminismo e as pautas LGBTI+, reproduzem a violência simbólica e o controle dos corpos femininos, reafirmando papéis de gênero ultrapassados e opressores. Embora afirmem que “todo homem tem valor”, a valorização não é universal: exclui mulheres, identidades dissidentes e pobres.

Ao mesmo tempo, a estrutura do movimento é fortemente mercantilizada. A espiritualidade é vendida como produto de luxo, através de eventos caríssimos, livros, camisetas e conteúdos exclusivos. Trata-se de uma fé de mercado, dirigida a quem pode pagar pela experiência de “ser restaurado”, perfeitamente adequada ao capitalismo, que transforma todas as esferas da vida em oportunidade de negócio e consumo.

A masculinidade, nesse contexto, vira uma marca a ser comprada e encenada: quem pode pagar por um Treinamento de Potencial no Pantanal, por exemplo, ganha o selo de “homem lendário”, uma identidade exclusiva, desejada e celebrada nas redes.

Enfim, o Movimento Legendários não é uma mera experiência espiritual, mas de uma experiência que, embora revestida de espiritualidade, reproduz as engrenagens do sistema capitalista — vendendo a salvação como produto e reforçando a desigualdade. É, na verdade, uma expressão da reação conservadora organizada que se disfarça de espiritualidade para legitimar privilégios, dominação e opressão.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 30/04/2025