Um estudo da fintech GigU revelou dados sobre a realidade financeira e laboral dos motoristas de aplicativos em várias capitais brasileiras, destacando São Paulo, onde o faturamento bruto mensal é de R$ 8.571,43. No entanto, após descontar gastos como gasolina e manutenção, o lucro líquido médio cai para R$ 4.319,19, uma diferença significativa que expõe as dificuldades econômicas da categoria. Em outras capitais, esse ganho pode ser em média de apenas R$ 1.870,71.

A pesquisa, que abrangeu 10 capitais brasileiras e contou com a participação de quase 81 mil condutores entre outubro de 2023 e outubro de 2024, revela uma realidade de trabalho intenso, com uma jornada semanal média de 60 horas. Essa realidade reflete a precarização das condições de trabalho, onde jornadas exaustivas são necessárias para atingir um ganho razoável.

Os dados evidenciam disparidades regionais. No Rio de Janeiro, o lucro líquido médio é de R$ 3.304,93, com jornadas de 54 horas semanais. Já em Recife (PE), a capital com o menor faturamento bruto (R$ 5.142,86), os motoristas lucram apenas R$ 2.007,30. Em São Luís (MA), o menor lucro entre as capitais analisadas é de R$ 1.870,71, apesar de um faturamento bruto de R$ 6.000.

Uma análise crítica dos dados

Felipe Moda (Unifesp)

Embora os números apresentados indiquem ganhos relativamente altos, uma análise mais detalhada aponta para contradições. Felipe Moda, doutorando em Ciências Sociais pela Unifesp, questiona a disparidade entre o faturamento bruto divulgado e o lucro real dos motoristas. “A maior pegadinha é que divulgam um faturamento mensal de R$ 8.500, mas, quando descontados os custos, o lucro real é quase a metade. Em algumas capitais, ele chega a ser equivalente a um salário mínimo”, observa em entrevista ao Portal Vermelho.

A jornada de 60 horas semanais também foi destacada como um ponto sensível. Felipe ressalta que, ao calcular proporcionalmente um regime de trabalho padrão de 40 horas semanais, o lucro mensal seria reduzido para cerca de R$ 2.800. “Trabalhar 60 horas semanais para ganhar o equivalente a três salários mínimos expõe uma precarização. É diferente de empregos com carteira assinada, que oferecem benefícios como férias, 13º salário e direitos previdenciários.”

Impacto da inflação e custos operacionais

A alta inflação dos últimos anos, que elevou os custos de veículos, combustíveis e manutenção em até 100%, é um dos fatores que pressionam os motoristas. Por outro lado, a política de precificação das plataformas não acompanhou esses aumentos, e a comissão retida pelas empresas, como a Uber, permanece em torno de 40% do valor pago pelos passageiros.

Para os motoristas, a falta de transparência das plataformas agrava ainda mais a situação. A Uber oferece corridas sem considerar os custos operacionais específicos de cada motorista, criando uma assimetria. Um motorista com um carro híbrido pode ter custos muito menores do que alguém que aluga um veículo. O que é vantajoso para um, pode ser prejuízo para outro. As taxas de comissão cobradas pelos aplicativos, como Uber, chegam a 40% e podem variar conforme a demanda, atingindo até 60%.

Autonomia versus precariedade

Apesar das críticas, muitos motoristas valorizam a autonomia que o trabalho de aplicativo proporciona. O especialista destaca um discurso recorrente entre os trabalhadores: a possibilidade de ajustar a rotina de trabalho às demandas familiares e pessoais. “Se a esposa do motorista está doente, ele diz que pode levar ela ao médico e compensar as horas depois. Essa flexibilidade é algo que muitos motoristas apontam como positivo.”

Eles argumentam que, mesmo trabalhando mais horas, conseguem gerenciar situações pessoais, como acompanhar familiares em consultas médicas ou ajustar a rotina ao longo do dia. Entretanto, essa “autonomia” também escancara problemas estruturais do mercado de trabalho no Brasil. A aceitação de jornadas extenuantes reflete, em parte, a insatisfação com empregos formais que frequentemente oferecem baixos salários e condições insatisfatórias. “É uma grande denúncia sobre a precariedade das condições de trabalho como um todo”, avalia Felipe.

Alternativas e desafios

Para Felipe, a luta por melhores condições de trabalho passa pelo fortalecimento de direitos e vínculos trabalhistas, além de melhorias no mercado formal. “Enquanto empregos formais seguirem ruins e a informalidade mal remunerada for a regra, sem valorização e com jornadas excessivas, as plataformas continuarão atraindo trabalhadores pela promessa de flexibilidade, ainda que precária.”

“Se os empregos fora das plataformas oferecessem melhores condições e remuneração, essas empresas perderiam parte do apelo. Hoje, a escolha por trabalhar em aplicativos muitas vezes reflete a falta de opções melhores.”

Os dados apresentados pela GigU trazem à tona uma discussão urgente sobre o futuro das relações de trabalho no Brasil e a necessidade de regulamentação para garantir condições mais justas aos motoristas de aplicativos. A sustentabilidade do modelo atual depende não apenas da conscientização dos trabalhadores, mas também de mudanças nas políticas públicas e nas práticas das plataformas.

Um intermediário para a relação trabalhista

A GigU, que desenvolve ferramentas colaborativas para motoristas, faz parte de um ecossistema de opções oferecidas aos motoristas de aplicativo. Por meio de tecnologias que ajudam os trabalhadores a calcular custos e recusar corridas desfavoráveis, a empresa pressiona aplicativos a reduzir suas taxas de comissão para manter a adesão dos motoristas.

O GigU StopClub, desenvolvido pela fintech GigU, desponta como uma ferramenta estratégica para motoristas de aplicativos no Brasil. O aplicativo oferece um conjunto de funcionalidades voltadas à proteção e melhoria das condições de trabalho dos motoristas, posicionando-se como um intermediário poderoso entre trabalhadores e plataformas como Uber e 99.

Entretanto, essa iniciativa gerou atritos com empresas como a Uber, que acusa o aplicativo de invadir dados e privacidade dos usuários, embora o GigU alegue que dados sensíveis não saem do celular do motorista. Em sua defesa, a GigU argumenta que seu papel é o de intermediário, oferecendo transparência e apoio aos motoristas. O modelo do GigU StopClub também revela o potencial das plataformas digitais na intermediação de relações de trabalho.

Ao fornecer ferramentas que empoderam os motoristas, o aplicativo cria uma relação de confiança e poder que poderia ser explorada por outras organizações, como sindicatos. Ao fornecer um serviço similar, sindicatos poderiam se reconectar com trabalhadores em um mercado de trabalho cada vez mais “uberizado”.

Felipe Moda, doutorando da Unifesp, vê nesse modelo uma oportunidade para os sindicatos modernizarem suas abordagens. “Esse tipo de serviço oferece poder e confiança na relação com os trabalhadores. É surpreendente que os sindicatos ainda não tenham adotado iniciativas como essa. Um aplicativo gratuito com funcionalidades básicas, como análise de ganhos e proteção jurídica, poderia ser uma ferramenta essencial para a reaproximação com os trabalhadores”, comenta.

Além do GigU StopClub, um ecossistema de serviços voltados aos motoristas tem se consolidado, com empresas oferecendo desde publicidade nos carros até assistência mecânica. Esses serviços, ainda que limitados, ajudam a amenizar os custos operacionais e a precariedade enfrentada pelos motoristas.

“Há, por exemplo, dispositivos que exibem anúncios no interior dos carros, gerando renda extra. Embora esses serviços não substituam a falta de proteção trabalhista, eles mostram um movimento de mercado para suprir lacunas deixadas pelas plataformas”, explica Moda.

“Se sindicatos ou movimentos trabalhistas adotarem esse modelo, eles não só protegeriam os trabalhadores, mas também fortaleceriam sua relevância em um mercado cada vez mais precarizado”, conclui Moda.

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Last Update: 12/12/2024