Um fantasma anda pela Argentina. Em 10 de dezembro, Javier Milei completou seu primeiro ano de governo, um presidente que não só praticou um gigantesco ajuste salarial e uma hiper-recessão, como se orgulha publicamente do feito.
Diante desse aparente mistério, o consultor Rafael Prieto, diretor da consultoria QSocialNow, afirma que Milei “é um sintoma da fragmentação social, que leva à eliminação do diferente, principalmente quando representa uma ameaça, real ou construída”. O presidente argentino, analisa Prieto, utiliza o que define como “emotividade negativa”. Rejeita a ideia de que essa técnica emocional seja puro discurso. “Admite uma base material que não deve ser ignorada, produto da desarticulação da economia e do crescimento acelerado da desigualdade, realidades que Milei não criou, mas agravou em um ritmo vertiginoso”, afirma. “Exatamente por isso, é ao mesmo tempo causa e sintoma do que está acontecendo.”
Caso Lula fizesse campanha na Argentina, poderia muito bem repetir seu slogan de 2002, quando prometia garantir à população três refeições por dia. “Tem muita gente de fora”, critica Dom Marcelo Colombo, presidente da Conferência Episcopal. “E toda a reforma econômica deve ser feita com as pessoas dentro.” Colombo acrescenta: “Percebemos isso nos refeitórios populares e nos locais abertos para que os mais pobres possam tomar um copo de leite, porque o número de frequentadores se multiplicou por quatro”.
A economia vai recuar 3% neste ano. O ajuste dá-se à custa de trabalhadores e aposentados
O governo mantém uma relação áspera com a Igreja argentina e o Vaticano. “Milei ficou incomodado com as críticas do papa aos atos de repressão aos protestos dos aposentados por melhor renda”, afirma o analista eclesiástico Washington Uranga. E planejou retaliações. Em 29 de novembro, o presidente ordenou que seu chanceler, Gerardo Werthein, um dos maiores empresários da Argentina, não participasse da comemoração no Vaticano do acordo de fronteira entre a Argentina e o Chile, assinado em 1984, há 40 anos.

Sufoco. Os argentinos que protestam recebem em resposta jatos de água, gás lacrimogêneo, cassetetes e pontapés – Imagem: Luis Robayo/AFP e Juan Mambromata/AFP
Milei completou um ano de governo em 10 de dezembro sem ter feito uma visita bilateral a nenhum país sul-americano. Isso nunca havia acontecido em 41 anos de democracia. O Brasil não é apenas o maior parceiro comercial da Argentina. É o principal destino das exportações de manufaturas industriais. A China, outro grande parceiro comercial, compra soja, e não máquinas ou autopeças. “Meu alinhamento é com os Estados Unidos e Israel”, proclama o chefe de Estado.
“Estamos travando uma batalha cultural”, explica o propagandista de Milei, Agustín Laje, presidente da Fundação Faro, organização fundada por Milei para angariar fundos com grandes empresários e intensificar os laços com a CPAC, a Conferência Política da Ação Conservadora, que funciona como uma verdadeira Internacional da extrema-direita. “Graças a Laje, seremos como um Gramsci de direita”, disse Milei, referindo-se a Antonio Gramsci, o fundador do Partido Comunista Italiano, e sua teoria da hegemonia.
Desde que assumiu o cargo, Milei voou o equivalente a três vezes a volta ao mundo. A maioria das viagens foi relacionada a reuniões do CPAC ou com seus integrantes. Estreitou as relações com o partido neofranquista espanhol Vox, ao mesmo tempo que insultava o primeiro-ministro da Espanha, o segundo maior investidor na Argentina depois dos Estados Unidos. Teve cinco reuniões com a primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, e está prestes a embarcar numa viagem para um congresso de seu partido de extrema-direita, Fratelli Tutti. No Brasil, suas referências são Jair e Eduardo Bolsonaro. No Chile, os neonazistas de José Antonio Kast. “Sou um dos dois políticos mais importantes do mundo”, declarou em uma entrevista. Quando o jornalista lhe perguntou quem era o outro, respondeu: Donald Trump.
Depois de eleito, Trump elogiou Milei em Mar-a-Lago, sua residência na Flórida. “Parabenizo você pelos seus números.”
A inflação, agora em baixa, foi insuflada, em parte, pelo próprio Milei
O sonho do governo argentino é que, graças a essas boas relações, Trump dê instruções a seus delegados no Fundo Monetário Internacional para emprestar 11 bilhões de dólares à Argentina ou para reescalonar os vencimentos do empréstimo atual. Em 2018, o presidente argentino Mauricio Macri recebeu 45 bilhões, maior concessão da história do FMI. Foi a religação da Argentina com o Fundo, depois da desconexão da Argentina e do Brasil no fim de 2005 e início de 2006.
Os números que Trump elogiou refletem o que Milei considera seu maior sucesso. Um, ter alcançado o “déficit zero”, objetivo econômico, político e cultural do seu governo. Outro, ter conseguido reduzir a inflação. A taxa de outubro foi de 2,7%. Até agora, em 2024, o número acumulado é de 107%. Ao comparar outubro de 2023 com outubro de 2024, o aumento foi de 193%. “O próprio Milei foi quem deu o grande salto inflacionário, porque desvalorizou a moeda em 118% poucos dias depois de assumir o cargo, em dezembro de 2023”, diz o analista Pablo Vera. “Então, o que está acontecendo agora é que a inflação está diminuindo desde o pico que o próprio Milei causou.”
O que mandatários neoliberais como Carlos Menem esconderam, Milei afirma com orgulho. “Fizemos o maior ajuste fiscal da história”, diz este presidente que dá a seus amigos estrangeiros um boneco dele com uma motosserra na mão. Em algumas províncias, equivalentes aos estados brasileiros, a motosserra foi especialmente feroz. Segundo o governador peronista do estado de Buenos Aires − não confundir com a cidade, um distrito federal −, o presidente pune os 17 milhões de habitantes da região. “Deve ser porque Milei não venceu em Buenos Aires nem no primeiro turno nem no segundo, e porque me reelegeram governador”, diz Axel Kicillof.
A autopercepção triunfalista de Milei é refutada por economistas heterodoxos. Hernán Letcher, diretor do Centro de Economia Política Argentina, prevê que até o fim de 2024 terá havido uma queda de 3% do PIB. Não é maior, de 4,2%, por causa do setor agropecuário. Letcher relata que, comparando ano a ano, a construção caiu 19,5%, a indústria 12,4% e o comércio 10,8%. Segundo dados da Superintendência de Riscos Ocupacionais, de novembro de 2023 a agosto de 2024, desapareceram mais de 250 mil empregos registrados.
A desaceleração da inflação, explica o economista, deve-se a dois motivos. O primeiro é a queda do consumo. A compra de carne bovina por habitante, sinal da identidade argentina, está no pior patamar dos últimos 28 anos. O segundo é o aumento da taxa de câmbio e um esquema rígido de desvalorização mensal da moeda, de 2%.
Atenção, brasileiros: por essa taxa de câmbio vocês verão argentinos bebendo caipirinha por todo o litoral. As agências de turismo veem um cenário de invasão da classe média argentina mais abastada em Florianópolis, Rio de Janeiro e Bahia. Ao mesmo tempo, hoje não se ouve mais português nas ruas de Buenos Aires, nas milongas onde se aprende a dançar tango ou nos outlets de roupas do bairro Villa Crespo.
Assim como Prieto, os sociólogos se perguntam por que, com esse nível de ajuste, Milei mantém níveis de popularidade acima de 40% após um ano no cargo. “Milei é um monopresidente”, descreve o constitucionalista Raúl Gustavo Ferreyra, visitante frequente das universidades brasileiras. “É um ser absoluto, um verdadeiro absurdo do ponto de vista da construção do Estado.” Ferreyra critica especialmente o abuso dos decretos de necessidade e urgência, porque “agora o monopresidente acrescenta às suas tarefas administrativas, previstas na Constituição, um poder legislativo em detrimento do Congresso”.
O principal DNU é famoso na Argentina: o número 70 de 2023, que Milei ditou poucos dias depois da posse e inclui a reforma de fato de centenas de leis, desde aquelas que regulamentam a medicina privada até as normas trabalhistas. “O presidente disse que seria um espião dentro do Estado para destruí-lo”, cita Ferreyra. “São palavras dele, não minhas. Por isso, não exagero quando digo que o seu objetivo é destruir a Constituição Federal.”•
*Martín Granovsky é um jornalista argentino. Formado em História, é colunista do jornal Página/12, editor da revista digital Y Ahora Qué e analista do programa político de televisão QR. Ele ganhou duas vezes o Prêmio Rei de Jornalismo da Espanha. Foi funcionário da Chancelaria argentina entre 2020 e 2023. Lecionou o curso Brasil Atual no Instituto do Serviço Exterior Nacional.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1341 de CartaCapital, em 18 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Motosserra a toda’