A Mostra Contra-Arquivo de São Vicente (2025), que acontece neste sábado (22), às 18 horas, no Espaço Multicultural (Praça 22 de janeiro, Biquinha), suscita práticas cinematográficas, no campo documental, nunca antes vistas no baixo trópico santista. A natureza do arquivo é dúbia: confiável se institucionalizada pelo poder, duvidosa se vista por aquilo que não mostra.
Aliás, o que é visível no arquivo é aquilo que não se mostra. A invisibilidade das imagens de arquivo é aquilo que verdadeiramente pode ser visto, pois o que é visto perde-se tão logo em suas reproduções desenfreadas e controladas, fazendo com que o arquivo em sua invisibilidade triunfe sobre possibilidades outras. Mostrar e esconder constituem a materialidade das imagens guardadas por uma memória pretérita, não existente no tempo, mas prometida por um destino secreto. O tempo, o destino, a memória e a materialidade em territórios coloniais sofrem ainda a erosão de uma cultura do sequestro. E São Vicente está no centro dessas linhas de forças de erosões brasileiras seculares.
A fonte material, amplamente produzida pelos jesuítas em nosso litoral paulista, foi muitas vezes considerada como as únicas provas de nosso território. Mas o arquivo parece não se inserir nesta relação de posse entre um sujeito e um objeto, na medida em que se divorcia do poderio científico e apela à uma voz que remete o imaginário de épocas remotas – embora não tão remotas assim. No arquivo, o espírito epocal das imagens emerge do tempo histórico ainda desvendável, escondido, invisível. Tal mistério é o que constitui a promessa do arquivo. Mas o contra-arquivo vai mais além, é justamente a distorção de quem olha, coleta e monta os arquivos. As práticas de contra-arquivo partem de uma perspectiva subversiva diante das imagens. Aquelas imagens que reclamam direitos, donos, licenças, catalogações, coleções e códigos, pertencentes às instituições museológicas e religiosas, são traficadas e hackeadas, instituindo novas forças estéticas para produzir outros sentidos – mais livres.
Os poderes estéticos que constituem as políticas de preservação são abduzidos, implodidos, expulsos e exonerados na relação imagética que essa prática documental trava com as imagens. O contra-arquivo também parece caminhar numa direção diametralmente oposta à da memória como obsessão. A busca excessiva pela memória, devido ao seu abuso por ganhos políticos interessados, gerou um excesso de informação e ironicamente o seu esquecimento, como pensou o crítico Andreas Huyssen. Os regimes ocidentais, portanto coloniais, de preservação de memória geraram um excesso e uma escassez da lembrança. Ler as invisibilidades do arquivo apresenta-se como a pedra de toque destas práticas de contra-arquivo, cuja é burlar o segredo das imagens para que encontremos outros códigos em suas fontes.
Os 5 filmes que compõem a mostra costuram um ponto de vista sobre São Vicente radicalmente anti e contra uma memória que a cidade quis dizer de si mesma. Dentro dos bailes, ônibus, mangues, nas bikes, ruas e palafitas, esses filmes nos devolvem imagens que contestam a própria cidade e a divisão de nosso território. Seja Baixada Santista, seja Litoral Paulista, somos enquadrados em duas formas claras de dominação: uma sob o guarda-chuva fascista do movimento paulista, a outra sob a sombra santista centralizadora.
São Vicente foi de primeira cidade do Brasil, e responsável por toda região, para a cidade mais sucateada. Mas quem efetuou essa mudança estético-política? Quem criou essa representação? Com quais intenções? A destruição é positiva somente para quem destrói. Mas o trunfo de São Vicente reside em sua marginalidade: mesmo sofrendo de todas as erosões e violências sistemáticas possíveis, as novas imagens da S. Viselva emergirá dos mangues e morros, contaminando os regimes imagéticos, corroendo por dentro as representações oficiais que os arquivos querem replicar no corredor das propagandas. Os centros são feitos daqueles que se originam das margens. Então vamos aos trópicos dessas linhas, lá é que se movem as coisas.
Em uma manhã de março de 1564 foi encontrado por um traficante (quis dizer, bandeirante) português, no centro da Biquinha, um Ipupiara. A figura mítica vinha ali do mar defronte e na tradição tupi, Ypupîara (aquele que mora dentro d’água) foi considerado um monstro, que devorava seus algozes que insistiam em ocupar um território que não era deles. Nada mais justo. Embora para todo monstro haja sempre um herói que o mate, o monstro e o herói nesta situação estiveram invertidos por muitos séculos.
O curta Ipupiara – Ecos de um passado esquecido (2025) reconstrói num tom oitentista o triste fim de uma estátua indígena e de um mercado público, consumidos pelo fogo. A britadeira sonora do filme, vinda de um efeito super 8, é um alarme ao espectador desavisado: estamos numa cidade que parece apostar no esquecimento do seu povo. Se para nós o fogo foi tragédia, para os donos do poder foi livramento. A imagem do abandono não existe mais e podemos só “seguir em frente”. Você aí, já tirou sua foto no píer dos apaixonados e no píer do Pelé?
Sabemos que o passado, no qual famílias passeavam entre doces e atrações em praças aparentemente limpinhas, nos traz imagens de um lugar bem longe de onde o mar-apérta. Ainda assim, são cenas que evocam a nostalgia sincera de uma cidade com alguma identidade. Não se trata de uma lembrança pura do passado, como se fosse reconstituído fielmente, mas a leitura de um infinito passado que sempre será passado, pois os ecos que retumbam pelas imagens são como as cinzas que sobram de um incêndio: constatamos a causa, mas nos é impossível a reconstituição.
Por isso, os museus são os preferidos para se queimar. Assim, a memória do passado fica no passado. Algo lamentável, mas perene na história da preservação brasileira. Quem adora adorar São Vicente, como o santista que se orgulha de que é bom ser bom, pode se sentir Amado pelas bandeiras do progresso que chega, mas que vem com suas consequências e segue sendo: ema ema cada um com seus problemas.
Houve um extermínio estético e sistemático na Baixada Santista. Essa afirmação não precisa de tantas justificações, é só prestarmos atenção desde o desembarque de Martim Afonso (1532), até os porões do Raul Soares do DOI-CODI no Porto de Santos (1964), da chacina dos Mc’s da década de 2010 e da última operação Escudo/Verão (2024). O curta Escudo (2025), dirigido por Andrey Haag e Santicomcifrão, se utiliza de um recurso imagético inusitado: o filme parte das imagens gravadas pelas câmeras corporais de PMs para compor uma trama contra o próprio Estado. As filmagens são coletadas dos arquivos públicos atuais, que se esforçam em não divulgar, sabendo que o registro das práticas militares de violência às escuras nunca deverão ser reveladas. Mas até o próprio escudo que protegia esses arquivos, caiu.
A transposição das filmagens das câmeras policiais para a linha de montagem documental vai de um plano sempre em primeira pessoa para um contra-arquivo confessional cujas provas dos crimes de Estado são apresentadas pelos próprios culpados e é feita da seguinte forma: banharam todos os arquivos com um vermelho sangue em todas as cenas, imputando borrões de interferências, de hackeamentos dessas imagens, pois só assim elas podem subsistir: isto é uma prática de contra-arquivo. O arquivo policial é de uma natureza do ocultamento, da alteração e da narrativa manipulada, discursivamente ou imageticamente. Ao invés de proteger, o Escudo também é uma arma, contra os que deveriam ser defendidos. Essa dialética entre defendido, defesa e defensor (agressor) se repete ciclicamente nas periferias brasileiras.
No baixo-trópico do nosso litoral, tais violências já acontecem há pelo menos 500 anos, mas em 2010 algo aconteceu que abalou o sistema estético-musical do funk do Brasil: a sequência de mortes de 5 grandes Mc’s, todos oriundos da baixada. O território no início dos anos 2000 começou a exportar os principais Mc’s de funk que estouravam nacionalmente e fazia a cena do funk paulista se estabelecer com um gênero complexo, real, consciente e crítico. Escudo é um documentário que parte da periferia para olhar e pensar sobre ela mesma, estando e a partir de dentro dela. A periferia no Brasil é o que tem de mais tecnológico e mais atrasado, simultaneamente. A busca por justiça e paz sempre foi a tarefa do funk, embora com uma dose de revolta: mundo M, militares mutilados (Mc Lon), memória de uma geração de funkeiros permanece e Escudo está no centro disso. Mas como dizia o Mc Felipe Boladão, oriundo da Praia Grande: “Parece o paraíso do lado do inferno, Brasil, mundo moderno!”.
Quem nasce calunga “vive e come”, como diz dona Bia, no curta Corre nosso (2025). O ser calunga transcende e incorpora junto às outras ontologias do nosso baixo-trópico uma entidade religiosa manifestada pela força da natureza, sobretudo das águas. Pronto, aí São Vicente neste sentido tem de tudo: mangue, rio e mar. E bikes. Muitas bikes, mas muitas mesmo. Tem um colega que todos os dias sai do final do Rio Branco e vai trabalhar no Gonzaga, de bicicleta.
É esse trajeto urbano e diário que o filme persegue. No corredor das ruas e avenidas, a bicicleta é um transportar, meticuloso, ousado e irreverente, que exibe um ar de ecologicamente sustentável invejável aos dragões de gasolina que cospem e batem por aí. A beach-bike, um fenômeno cultural do nosso baixo-trópico, é tão presente na vida cotidiana de transporte, trabalho, lazer e rolê, que um documentário sobre bicicletas é quase uma tautologia com a própria região, porém necessária.
Muitas delas pessoais, muitas delas recentes, as imagens do filme são montadas a partir de um encadeamento e ritmo fragmentados, mergulhando o espectador no cotidiano não só de um entregador, mas de qualquer proletário que pedala muitas horas. Vista pelo olhar de quem pedala, São Vicente surge caótica e espremida. Porém, também poética – depende do olhar de quem pedala. A quem ocupa as ciclovias da orla da praia para pagar boleto e não para bater a meta saudável do “hoje tá pago”, talvez este seja o único momento que se tem consigo mesmo. Para refletir sobre o quanto o emprego tá zuado e o quanto o estudo não é suficiente. Ou, simplesmente, para observar o mar e se lembrar de uma fala esperançosa: “se quer beber água limpa, acorda cedo e vai no corre” (Mc Kyan).
Dizem que as pessoas pobres também andam de Mercedes, basta querer acreditar no potencial do ônibus lotado. Frases como essa ou: “o seu desejo é do tamanho do seu sonho” fez o neoliberalismo parecer cada vez mais voraz e sacana. E se o meu sonho não couber na pequena casa onde moro, no ônibus apertado que pego, na mesinha pequena em que trabalho e nas salas de aulas apertadas e quentes em que estudo?
O curta Os grandes não cabem aqui (2025), dirigido por Rafael Cabral, é um testemunho do lugar diário onde depositamos a esperança de chegar até um lugar e onde deixamos todas as energias represadas. Trata-se de um testemunho indignado, seco e irônico desde o seu primeiro plano, que incorpora em seu discurso o próprio DNA do povo vicentino, cuja capacidade de rir da própria desgraça nunca o impediu de ir à luta. A articulação de arquivos de distintos períodos num mesmo plano, com uma reportagem do extinto Cidade de Santos se misturando a uma matéria da TV Tribuna, revela que muda empresa, muda prefeito, muda veradores, mas nada muda. Afinal, o que é estratégico nunca mudou: a lógica do lucro acima da vida.
Sem segurança nenhuma, os ônibus são objetos quase alucinantes que andam, andam, não param de andar pela cidade, desenfreadamente e repetindo esquizofrenicamente o mesmo trajeto 20, 30, 40 vezes num dia só. Lugar de situações das mais adversas, desde alagamentos, até assaltos, cantorias coletivas, brigas, vendas, assédios criminosos, conversas inusitadas, poltronas mágicas que prometem o melhor sono em transporte para o trabalhador e frustrações sobre a sua vinda ou sua passagem.
O ônibus é muito parecido com o amor: vem quando você não quer e desaparece quando você precisa, ou, ignora quando passa. Um ensaio sobre a precariedade e a esperança, tanto do ônibus melhorar, chegar logo ou simplesmente funcionar. Enquanto isso, para os patrões, São Vicente continua sendo o lugar onde o peixe pára (piracicabana).
São Vicente, uma ponte para… (2025), dirigido coletivamente, talvez seja o único curta da mostra a traçar um paralelo histórico da formação da cidade com a formação de uma família negra, que se fotografava em pleno anos 1960. Passeando pela San Vicente, forjada entre as alternâncias, acompanhamos a história de Isidoro, um menino negro que passou a infância nos tempos de auge da baía vicentina, vendo pelos cines calungas atores e diretores como Sidney Potier e Marlon Brando. Isidoro talvez tenha sonhado cruzar as estrelas do cinema num dos bares ali da Biquinha; talvez tenha germinado ali o seu desejo não só por ver, mas por fazer filmes.
O que sabemos mesmo é que este filme existe porque uma prima de Isidoro guardou em uma caixa muitas fotografias da família, algo duplamente surpreendente: uma por termos uma família de pessoas negras que tinha acesso à fotografia e, por consequência, o raro poder da autorrepresentação; outra pelo fato destas mesmas imagens terem sido guardadas e protegidas, que não se extraviaram nos corredores, mudanças e percalços da vida. O arquivo, em sua perspectiva questionadora, ativa justamente essa reflexão, de que a materialidade das imagens também nos comunica implicações políticas. Na fotografia há atravessamentos de raça e classe mais do que pensamos, desde as matizes de cores Kodak até o acesso às máquinas fotográficas. Uma família sem memória, sem imagens e sem reflexos de si mesma, acaba por perder diversas pontes que ligam esses passados e futuros.
Ao contar histórias pessoais e intransferíveis, o filme se demora em arquivos preciosos, simbólicos, em nome de uma afirmação: o passado deve ser recontado, mas na perspectiva daqueles que foram ignorados, porque é aí que o passado não será apenas o sabor de vidro e corte, nem as glórias dos colonizadores, mas sim memórias das cidades, de suas luzes e da sua gente.
A tarefa das imagens de contra-arquivo é implodir a centralidade do poder, espraiando entre os rios, vias, caixas de fotografias esquecidas, becos e vielas o questionamento sobre o porquê dos ônibus alagados serem memórias que se repetem, em poças de sangue deixadas por chacinas que avançam por ciclovias de blitz, onde bikes e sereias são símbolos de botes contra o sistema dos panópticos que vigiam esquina a esquina das 22 praças míticas do descaso? E como o documentário e o cinema são como o céu e as estrelas, dividem fronteiras entre o mítico e o real, há entre os dois um tipo de mistério: o segredo da lua quem sabe é o clarão do sol.
Douglas Gadelha, natural de Cubatão/SP, é formado e mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). É professor de Filosofia no Ensino Médio público (SEDUC-SP), escreve críticas, crônicas e ensaios sobre arte e filosofia, tendo publicado a série de ensaios “Margens” no jornal A Tribuna. Com pesquisa sobre arquivos, memória política e interpretação na fotografia, dirigiu o seu primeiro documentário “Chico Voltou Só” (2023, Globoplay) e está finalizando o segundo documentário “A praia de Lévi-Strauss” (2025).