Morte voluntária assistida: as palavras certas e como usá-las. Por Adriano Silva

Capa do livro “O dia em que Eva decidiu morrer”, de Adriano Silva. Foto: reprodução

O DCM publica com exclusividade trecho inédito do livro “O Dia em que Eva Decidiu Morrer”, que conta em detalhes a jornada de uma brasileira que optou pela morte voluntária assistida (MVA) na Suíça.

Palavras têm passado, carregam sentidos, embutem conotações, expressam ideias e conectam ideologias. A escolha das palavras determina a própria conversa. Então há que se olhar para elas com rigor e empregá-las com critério e precisão.

Abaixo, alguns termos essenciais à compreensão do debate sobre os direitos de fim de vida – o que eles significam, sugerem, revelam ou escondem. E o uso que podemos, devemos ou queremos fazer deles.

Há dois caminhos para quem deseja deixar de viver.

De um lado, há o que podemos chamar de morte voluntária “desassistida”. O que comumente chamamos de suicídio – também conhecido como “suicídio irracional” ou “suicídio comum”. Trata-se, em geral, de um ato intempestivo, solitário e violento praticado pela pessoa contra ela mesma.

De outro lado, há a morte voluntária assistida (MVA) – a Voluntary Assisted Death (VAD). Também conhecida como Physician Assisted Suicide (PAS), “suicídio assistido por médico”, e Physician Aid In Dying (PAD), “ajuda médica para morrer”. No Canadá, usa-se Medical Assistance In Dying (MAiD), “assistência médica para morrer” – o acrônimo faz um trocadilho com maid (“camareira”).

A morte voluntária “desassistida” é um procedimento muito arriscado (a maior parte das tentativas de “suicídio irracional” não dá certo, podendo acarretar sequelas gravíssimas). O “suicídio comum”, portanto, costuma impor muito sofrimento, tanto para a pessoa que deseja ir quanto para quem fica.

Já a morte voluntária assistida é um procedimento que visa justamente oferecer às pessoas um meio seguro e digno de encerrar a própria vida, com supervisão médica. A morte, nesse caso, costuma acontecer de modo sereno, com a pessoa cercada pela família e pelos amigos.

A MVA pode acontecer de duas maneiras: autoadministrada (quando é o próprio indivíduo que se aplica ou ingere a dose letal do medicamento), em ambiente controlado, ou administrada por terceiros (quando o indivíduo solicita que outra pessoa – em geral um médico ou enfermeiro – ministre a substância, por via oral ou intravenosa).

A MVA autoadministrada, ou, de modo sucinto, “morte assistida”, também chamada de “suicídio assistido”, é aceita em todos os quatorze países que já legislaram favoravelmente à autodeterminação do indivíduo – com a exceção da província de Quebec, no Canadá. A MVA administrada por terceiros, também conhecida como “eutanásia”, é aceita em nove desses quatorze países.

A MVA administrada por terceiros pode ser ativa, quando há uma intervenção médica para terminar a vida da pessoa, a seu pedido, como a injeção de uma grande dose de sedativos, ou passiva, quando apenas se interrompe, sempre a pedido do indivíduo, o tratamento necessário à sua sobrevivência.

A MVA administrada por terceiros em sua forma passiva é muitas vezes confundida com “ortotanásia”. No entanto, trata-se de dois procedimentos distintos. A ortotanásia (que significa “a morte no tempo certo”) consiste na limitação do uso de recursos médicos, em casos terminais ou de doença incurável – aquela vida é mantida, tão livre de sofrimento quanto possível, até que a morte aconteça naturalmente. Na ortotanásia, portanto, o tratamento é reduzido ou descontinuado, mas é a doença original que determina o fim da vida da pessoa.

Já na MVA administrada por terceiros em sua forma passiva, a causa mortis pode advir diretamente da retirada dos recursos que sustentam a vida do paciente. A ortotanásia permite que a morte aconteça, mas não a antecipa; a MVA administrada por terceiros em sua forma passiva de fato abrevia a vida.

Em suas duas versões – autoadministrada e administrada por terceiros –, a MVA representa o chamado “suicídio racional”, uma decisão conscienciosa do indivíduo, bem refletida, nutrida por informações e opiniões médicas completas e transparentes, em geral empreendida por pessoas maduras, em seus últimos anos de vida, depois de muita conversa com a família e com os profissionais de saúde que as atendem.

A imensa maioria dos casos de MVA no mundo envolve indivíduos que já passaram dos setenta anos ou que enfrentam situações em que a qualidade de vida cai a níveis inadmissíveis, em decorrência de doença grave, condição incapacitante ou decrepitude.

O papel da MVA é proporcionar a essas pessoas, cuja existência se tornou insuportável, o controle sobre o que vai lhes acontecer, inclusive por meio da antecipação da sua morte, de modo pacífico e livre de agonia, no momento em que estiverem convictas de que é hora de partir.

Nos países em que as pessoas não têm direito à autodeterminação e nem acesso legal aos meios de morrer com dignidade, o único recurso do indivíduo que não deseja mais viver é o “suicídio irracional”. Ou seja: em nome de defender a vida, legislações restritivas acabam impelindo as pessoas, em agonia, a empreender um ato de violência contra si mesmas.

A ajuda médica, em ambientes assim, se restringe, de modo geral, à “distanásia”, também conhecida como “obstinação terapêutica”, modelo de atendimento que busca prolongar a existência a todo custo, independentemente da qualidade da vida que está sendo mantida e, muitas vezes, indo contra o desejo da pessoa.

A distanásia também pode ser compreendida como um prolongamento do processo de morte – o fim poderia ser mais breve e leve, mas nós não o aceitamos, e assim o tornamos mais longo e sofrido.

Nesse cenário, ainda hegemônico na maioria dos países, o poder de decisão está concentrado na mão do médico – que, por sua vez, se vê cingido por lei a ignorar a vontade do paciente. Como resultado, a pessoa não tem muita escolha acerca do que vai lhe acontecer. Ela pode, no máximo, em algumas situações, recusar o tratamento indicado. Diante disso, é comum que o médico também se recuse a continuar o atendimento. E a pessoa se vê sozinha com seu próprio infortúnio.

Nas últimas décadas, esse exercício frio e impositivo da medicina – tornado oficial pela legislação – tem sido amainado pelos “cuidados paliativos”, conjunto de práticas de assistência a pessoas na fase final da vida, em decorrência de doença ou de senectude, que visa tornar menos dolorosos, e o mais confortáveis possíveis, os últimos dias.

Um dos princípios do paliativismo é “não acelerar nem adiar a morte”. Portanto, ele não resolve a questão de pessoas com incapacitação permanente, ou em sofrimento crônico, que não estejam vivendo uma situação de terminalidade – para quem o desespero é exatamente ter de continuar vivendo por tempo indeterminado sob condições que consideram inaceitáveis.

Embora os cuidados paliativos não assegurem ao indivíduo o direito à autodeterminação, eles contribuem para a humanização da medicina, ao elegerem o conforto do paciente como uma prioridade, em contraponto à aspereza da distanásia.

Da mesma forma, a ortotanásia, ao levar em conta a opinião do indivíduo acerca do caminho a seguir, representa um passo importante no sentido da autodeterminação. Embora não esteja regulamentada na maioria dos países, a ortotanásia não costuma ser criminalizada.

Fora desse cardápio – distanásia, cuidados paliativos e ortotanásia –, no entanto, não há alternativa, em países como Brasil. O que resta para uma pessoa em situação de sofrimento intolerável, que esteja decidida a antecipar sua morte, é, desgraçadamente, a morte voluntária “desassistida” – uma ação perigosa, traumática, em geral precária e voluntariosa, na maioria das vezes inefetiva, e que deve ser evitada, por expor o indivíduo a riscos enormes.

Simulação de morte assistida realizada com acompanhamento médico. Foto: reprodução

O livro-reportagem “O dia em que Eva decidiu morrer – Uma reflexão sobre autodeterminação e direitos de fim de vida”, do jornalista Adriano Silva, já está à venda clicando aqui.

O livro, lançado pela editora Vestígio agora em março, narra a história de Eva, filósofa brasileira que, após sofrer um AVC devastador, viu sua qualidade de vida ser drasticamente reduzida. Em busca de dignidade e alívio para seu sofrimento, ela escolheu deixar de viver, viajando à Suíça para realizar um procedimento de morte voluntária assistida (MVA) – é a primeira vez que um relato dessa natureza vem a público no Brasil.

A obra descreve os desafios enfrentados pela personagem, desde sua decisão até a realização do procedimento. E apresenta a história de outras pessoas reais, em outros países, que, por diferentes motivos, optaram por interromper suas vidas quando a existência se tornou insuportável. Essas experiências impactaram, em maior ou menor grau, a mudança da legislação nos lugares em que ocorreram.

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