Morte pelo documento: ignorar nome retificado de pessoas trans não é erro técnico, é exclusão

por Gael Guerreiro e Lucía Eilbaum

A telenovela Beleza Fatal, lançada em janeiro de 2025, é um dos maiores sucessos recentes da plataforma de streaming Max no Brasil. Alcançando uma gama diversa de público, as apostas feitas na série prenderam a atenção de jovens espectadores, tornando-se um dos assuntos mais falados nas redes sociais. Abordando tópicos sensíveis e questões centrais da realidade brasileira, o programa cumpre sua função novelística de unir diversos núcleos de diferentes segmentos da sociedade para enredarem a mesma história.

Acompanhando a trajetória de Sofia (Camila Queiroz), a narrativa é orientada pelo desejo de vingança da personagem contra aqueles que destruíram sua vida. O alvo é a poderosa família Argento, dona de uma influente clínica de cirurgia plástica. Os Argento são o tradicional núcleo de elite, branco e abastado, com poderio político e influência social, representando a esfera da sociedade que não mede esforços para proteger bens e preservar a própria imagem – mesmo que isso inclua encobrir crimes. Ao longo da história, a novela aborda temas como saúde mental, corrupção, dismorfismo corporal, padrões estéticos, racismo, homofobia, misoginia, relacionamentos tóxicos e transfobia.

Na tradução do nome da novela para o inglês, Scars of Beauty (“Cicatrizes de Beleza”), é feita uma alusão crítica à obsessão contemporânea por procedimentos estéticos e à disposição inesgotável para manter um padrão de aparência, bem como ao papel da indústria da beleza na criação e exploração de inseguranças do público para fins lucrativos. A trama expõe como esse apelo pela “perfeição física” é impulsionado por discursos que vendem esses procedimentos como “necessidades”, ignorando os riscos e impactos psicológicos, econômicos, políticos e sociais envolvidos.

Por outro lado, a novela também apresenta outra face das intervenções estéticas, compreendendo-as para além de meros instrumentos de vaidade, podendo ser aliadas na superação de traumas e resgate da autoestima. Esse aspecto é trazido por personagens que recorrem às cirurgias não apenas por pressão social, mas para reconstruir a própria identidade e lidar com marcas do passado. Um caso que ilustra esse potencial é o de uma personagem travesti que busca a mamoplastia como parte fundamental de sua transição e afirmação de gênero.

A personagem Andrea Reys, interpretada por Kiara Felippe, é uma dançarina obstinada cujo sonho é abrir sua própria companhia de dança. Sua primeira aparição ocorre logo no início da série, indo atrás do aclamado par de silicone. Como travesti “não é bagunça”, como ela diz, a personagem vai até até a clínica mais renomada e confiável do país para fazer o procedimento, a Clínica Argento.

O personagem Tomás Argento (Murilo Rosa), genro do dono da clínica, é o cirurgião responsável pelo caso de Andrea, e lhe oferece um atendimento humanizado e respeitoso, com um certo toque de apaixonamento, tratando as necessidades da paciente e a importância daquele passo em sua vida com o devido cuidado. Tudo é retratado de forma sensível, buscando trazer ao espectador um tom de dignidade ao processo de transição de gênero, comumente horrificado.

Durante a consulta pré-operatória, o caso chega aos ouvidos do dono da clínica, Átila Argento (Herson Capri), que reage violentamente e ordena que Tomás não execute a cirurgia. Tomás busca argumentar que Andrea é uma paciente como todas as outras, disposta a pagar pelo procedimento e merecedora de respeito. Nesse momento, Átila “corrige” Tomás, recusando a transgeneridade de Andrea, chamando-a de “ele” e dizendo seu nome morto, aquele registrado em seu nascimento.

 É dedutível que, ao preencher o formulário da clínica, os dados constados não contemplaram o nome social e a identidade de gênero da paciente, tornando possível que o cirurgião chefe a referisse com seu nome morto. Durante a cena, é notável que, ao nomeá-la desse modo, Átila sente um tipo de satisfação, como quem revela um segredo ou a verdade encoberta de Andrea: “Viu!? Não sou eu quem diz, é o documento!”.

Para além do ato transfóbico em si, o que é retratado na cena é a vulnerabilidade do processo de transição de Andrea. Seu corpo e sua presença na clínica passam a representar uma ameaça à reputação dos médicos, apenas por tentar acessar procedimentos rotineiramente oferecidos por esses profissionais. Seus documentos não retificados funcionam como ferramentas que legitimam a moralidade preconceituosa mobilizada por Átila, conferindo-lhe um respaldo institucional para agir de forma discriminatória. Trata-se de uma vulnerabilidade que não é apenas física, mas também administrativa.

A análise do episódio tratado permite problematizar como o não reconhecimento institucional das identidades trans escancara as violências cotidianas sofridas por essas pessoas e, ainda mais, fornece justificativas formais para que tais agressões não sejam sequer nomeadas como tais, tornando parte do cotidiano delas.

Documentos como fronteiras da cidadania

Para a antropóloga Mariza Peirano, os papéis de identificação civil são marcos obrigatórios na inserção do indivíduo na coletividade representada pelo Estado, conferindo-lhe direitos, deveres e uma identidade singularizada. Eles reconhecem presenças e, sobretudo, determinam quem é visível aos olhos do Estado.

 Instrumentalizando os traços que singularizam o indivíduo a uma coletividade, os documentos atestam aquilo que diferencia uma pessoa das demais. Eles conciliam elementos indiciários, como a fotografia e a assinatura, com dados referenciais como nome, filiação e data de nascimento. Essa soma de fatores serve para incluir o sujeito em um repertório legal e jurídico estatal padronizado (burocrático), no qual, no processo de descrever quem é esse indivíduo, ele também é construído, para tornar-se único, como destaca Mariza Peirano.

Apesar das tentativas do Estado de manter uma identificação racional e impessoal (burocrática), não é possível controlar completamente a força social e simbólica que os documentos carregam para os cidadãos. Na cena descrita da novela “Beleza Fatal”, a satisfação do personagem Átila ao se referir a Andrea com seu nome morto mostra como, independentemente da apresentação da personagem, é o documento não retificado que “fala mais alto”, produzindo ele mesmo um ato de violência, inclusive por ser um registo oficial.

Essa percepção atesta que os documentos não são neutros. Ao registrarem um nome e um gênero que não correspondem à identidade de uma pessoa, eles podem atuar ativamente na produção de violência. A inacessibilidade à retificação dos registros civis também é uma ferramenta de desestruturação política. Isso porque impede que pessoas trans sejam reconhecidas plenamente como sujeitos de direitos, bloqueando o acesso a garantias básicas, como saúde, educação, trabalho e segurança.

A ausência de reconhecimento legal (ou o difícil acesso a ele) interdita a cidadania, desqualifica a existência dessas pessoas nos marcos institucionais e silencia suas demandas. Mais do que uma falha do sistema, esse apagamento reitera a função normativa do Estado – e de outros estratos de poder – de decidir quem pode ser reconhecido como sujeito legítimo e de que maneira um corpo trans pode existir no espaço público.

Nesse sentido, a dificuldade administrativa em atualizar os documentos não é uma simples questão que gera desconforto, mas um mecanismo de controle social, que reforça hierarquias de gênero e restringe a participação política das pessoas trans, sobretudo daquelas em situação de maior vulnerabilidade.

O direito à Requalificação Civil

“É como se sem a documentação eu não existisse”, disse Jake, uma pessoa negra, não binária, que mora e trabalha em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Relatos semelhantes, ouvidos por Gael durante sua pesquisa de Iniciação Científica, atestam a importância existencial da requalificação dos documentos.

Como o nome já sugere, a requalificação civil consiste em dar uma nova qualidade ao documento de identificação civil, alinhando-o de acordo com a forma que a pessoa cidadã se apresenta para a sociedade. Votado procedente em 2018 pelo STF e regulamentado pelo CNJ como Provimento 73/2018, este é um direito voltado para pessoas trans que desejam alterar o nome e/ou sexo atribuído no nascimento em seus documentos oficiais, sem precisar passar por procedimentos patologizantes, como cirurgias ou hormonização compulsória. 

É uma forma de possibilitar o acesso da população trans a serviços públicos, além de servir como instrumento para redução da violência incidente sobre este segmento, visto que em seus direitos sociais mais básicos ainda sofrem diversos entraves. É uma decisão que confere direitos vinculados à autonomia e à liberdade de expressão, bem como ao princípio da dignidade da pessoa humana, previstos pela Constituição Federal de 1988.

No caso de pessoas trans “binárias”, ou seja, aquelas que se identificam com os gêneros feminino ou masculino em oposição ao sexo que lhes foi atribuído ao nascer, é possível realizar essa alteração diretamente em cartórios, de forma extrajudicial. Para pessoas não-binárias, cuja identidade não se enquadra nas categorias convencionais de homem ou mulher, a requalificação enfrenta obstáculos mais complexos, sendo necessário dar entrada com uma ação judicial para a averbação de uma terceira opção.

Ainda que esse seja um direito de pessoas trans no geral, é relevante frisar como um grupo é contemplado por ele, enquanto o outro segue excluído. No entanto, o que há de comum na experiência desses segmentos é que o acesso a esse serviço ainda é extremamente precário.

Em uma pesquisa da Antra, em 2022, constatou-se que 65% das pessoas trans enfrentam dificuldades para retificar documentos devido a custos, burocracia e transfobia institucional. No caso de pessoas não-binárias, muitas continuam alheias ao próprio direito.

Com uma população estimada em mais de um milhão de pessoas, as articulações políticas não-binárias ainda são embrionárias e as políticas públicas são inexistentes, como destaca em sua pesquisa Gael Guerreiro. Essa lacuna reforça o ciclo de invisibilidade, já que a ausência de dados estatísticos contribui para a falsa noção de que a demanda para o reconhecimento civil é baixa.

Quando o Estado sustenta a exclusão

Nina, moradora do Rio de Janeiro, deu entrada em uma Unidade de Saúde com o pedido para retificar seu Cartão Nacional de Saúde (CNS) – Cartão SUS, Sistema Único de Saúde. Com apenas Certidão de Inteiro Teor e RG retificado em mãos, a alteração foi realizada sem impasses e Nina conseguiu ter seu cadastro atualizado. Contudo, ao ir tomar vacina, a atendente não achava o novo cadastro para lançar a vacina. Ao buscar seu CPF no sistema, aparecia o nome morto, e a atendente explicou que daria esse problema em todas as clínicas caso não fosse atualizado o CPF dentro do sistema do SUS.

Nina mostrou o comprovante da Receita Federal com o CPF atualizado, e outro atendente explicou que, por os sistemas não conversarem entre si, era preciso fazer essa solicitação manualmente ao SUS, gerando esse tipo de desconforto. A situação no sistema privado de saúde consegue ser ainda mais drástica. Nos planos de saúde, há relatos de pessoas que passaram anos sendo tratadas pelo nome morto devido à recusa das operadoras em atualizar nome e sexo, sob a justificativa de exigirem uma longa lista de documentos e, mesmo com esses documentos em mãos, a atualização não é realizada. Como afirmou  TH a Gael durante a pesquisa de campo: “A gente mata o nome morto 50 vezes (e parece que nunca morre)”.

Nina, TH e outras pessoas não binárias foram interlocutores da pesquisa realizada por  Gael, no curso de Antropologia da UFF, em que acompanhou durante os meses de abril a agosto de 2024 os casos de requalificação civil de 88 pessoas trans, nas sedes da Justiça Itinerante do Rio de Janeiro. Dentro desses casos, 55 casos foram de pessoas trans “binárias” e 6 de pessoas que se declaram não-binárias. O restante, contabilizado em 27 pessoas, participou de uma ação de retificação em massa para pessoas não-binárias, também na Justiça Itinerante, promovida pelo coletivo Encontro NB RJ, em parceria com a Defensoria Pública do estado e a Fiocruz.

Nesta pesquisa, a urgência da mudança de nome foi unanimidade entre as pessoas entrevistadas. Como uma pessoa interlocutora refletiu, o nome toca em um ponto existencial. A imposição do nome anterior, com o qual a pessoa já não se identifica, tem um potencial violento de apagamento subjetivo e material. Ter o nome respeitado não é capricho: é uma questão de dignidade humana.

Ainda assim, a burocracia para realizar a retificação é desgastante. Pela via extrajudicial, são exigidas pelo menos 18 certidões, que, mesmo com a possibilidade de gratuidade, nem sempre são concedidas, além de eventuais custas judiciais e cartoriais de acordo com cada caso. Para muitas pessoas trans, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade, o processo é inacessível desde o início.

Mesmo quando a retificação é concluída, o problema está longe de se resolver. Como foi dito por TH, o nome retificado não “morre” nos sistemas do Estado – continua reaparecendo em bancos de dados não atualizados, plataformas de saúde, educação e financeiras, revelando uma desintegração sistêmica e um descompromisso das instituições em garantir plenamente o direito reconhecido em sentença. Na maioria dos casos, ao ver o nome não retificado em registros oficiais ou plataformas virtuais, as pessoas ficam sem saber o que fazer, sem ter a quem recorrer, sofrendo com a falta de assistência.

Esses entraves revelam que o Estado, fundamentado pelo paradigma binário do mundo, resiste à transgeneridade e à não-binariedade não apenas pela omissão, mas por meio de políticas fragmentadas, desinteresse técnico e apagamentos simbólicos. A estrutura cissexista ainda opera com a ideia de que só há dois gêneros legítimos e reconhecíveis. O desvio dessa lógica é tratado como anomalia, patologia ou exceção – e a exclusão que isso gera não é acidental, mas estruturada.

A violência da recusa documental é institucionalizada. Como escreveu William Peres , as travestis brasileiras “vivenciam diversas humilhações físicas e verbais que reforçam sua condição de cidadãs de segunda categoria”. Antes da violência letal, vêm as mortes simbólicas: o nome morto que insiste em não morrer, os sistemas que deslegitimam sua existência e a burocracia que adoece.

O mutirão promovido pelo Encontro NB RJ, em articulação com instituições públicas, mostra que é possível fazer diferente – mas é preciso vontade política e investimento público. O direito à retificação é um direito fundamental à autodeterminação, ao livre desenvolvimento da personalidade e à vida com dignidade, como reconhece a própria LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados, art. 1º).

Enquanto o nome retificado e a identidade de gênero continuarem sendo ignorados nos sistemas que nos identificam e classificam, a cidadania plena continuará sendo negada às pessoas trans e não-binárias. Não se trata de erro técnico, mas de exclusão sistemática.

Gael Guerreiro é bacharel em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador do grupo de pesquisa GEPADIM e do INCT-InEAC.

Lucía Eilbaum é doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), coordenadora do GEPADIM e pesquisadora do INCT-InEAC. 

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Last Update: 13/05/2025