No dia 6 de maio, o repositor de supermercado, Lourivaldo Nepomuceno, beijou sua mulher como se fosse a última. E cada um dos três filhos seus como se fossem únicos. Atravessou a estação Campo Linha do Metrô com seu passo tímido. E se acabou no chão feito um pacote flácido. Agonizou no meio do passeio público. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.
A célebre canção “Construção”, de Chico Buarque, ficou marcada não só por seus versos dodecassílabos e a sofisticada estrutura das estrofes, mas também por, em plena ditadura, retratar o descaso e a indiferença em relação à vida do operário naquele contexto. Vivia-se os anos do chamado “milagre”, em que a economia crescia à custa do brutal aumento da desigualdade, e o país se industrializava e urbanizava. O corpo do operário, uma peça substituível e descartável na engrenagem do capitalismo, era tão somente um transtorno em meio ao trânsito.
Lourivaldo Ferreira Silva Nepomuceno contava os dias para festejar seu aniversário de 36 anos, celebração que também marcaria o aniversário de 62 anos do pai. Preparava-se ainda para completar o curso de Educação Física no final do ano. Um jovem trabalhador, com sonhos e projetos, abruptamente encerrados no momento em que seu corpo foi prensado entre a porta de segurança da plataforma e a do trem na estação da Linha 5-Lilás. Para a Via Mobilidade, a concessionária que administra a linha privatizada, porém, tratava-se de apenas mais um dos recorrentes acidentes que a empresa precisaria gerir.
Toda grande empresa, principalmente as que administram um grande público, conta com um protocolo de “gerenciamento de crises”, acionado a fim de minimizar o impacto de determinado fato negativo junto à opinião pública. Assim, enquanto o corpo de Lourivaldo era rapidamente retirado, diante de dezenas de passageiros traumatizados, uma nota tão protocolar quanto cínica era enviada às redações de todo o país. Respingos do sangue de Lourivaldo, porém, permaneceram por horas nas portas do trem. Mas o importante era recolocar o sistema para funcionar. Afinal, o show não pode parar. A engrenagem do capitalismo precisa prosseguir, o movimento da concessionária não poderia ser comprometido, e as empresas, bancos e o comércio precisavam que seus empregados chegassem ao trabalho.
Nos dias seguintes à morte de Lourivaldo, o tema foi pautado na imprensa, com direito a matéria no Fantástico, e ganhou as redes sociais. No centro do debate, a segurança no metrô. As portas instaladas recentemente na plataforma para garantir mais segurança, ironicamente, causara a morte do passageiro. Pouco se lembrou dos sucessivos “acidentes” ocorridos nas linhas administradas pela mesma Via Mobilidade, com direito a incêndio no trem e descarrilamento que poderiam ter provocado tragédias de proporções bem maiores. Bom, enquanto essas linhas são escritas, o tema praticamente saiu dos holofotes. A Via Mobilidade continua atuando normalmente até que outra tragédia aconteça novamente.
Se a sanha privatizante que coloca nas mãos de uma concessionária privada a vida de centenas de milhares de pessoas diariamente, porém, é tratado como um tema secundário, mais ainda é a lógica do transporte público e a própria dinâmica das cidades ditada pelo capitalismo. Vejamos, mais de 4 milhões de pessoas circulam diariamente no metrô de São Paulo, uma capital de 11 milhões de habitantes. Faz sentido, do ponto de vista econômico, mover essa proporção de pessoas diariamente de um ponto, em geral das áreas periféricas, às regiões centrais? Para o capital sim, pois a especulação imobiliária expulsa a classe trabalhadora para a periferia, mas continua precisando da sua mão-de-obra. Pobre que resiste pelo direito à moradia é tratado à base do porrete e da bomba, como na Favela do Moinho.
O transporte público é pensado seguindo essa lógica. Trata-se de deslocar uma gigantesca massa humana de um ponto a outro para atender o capital. Ponto. Para quem passa por um metrô da Sé às 18h, não há “sinal sonoro” para o fechamento das portas que signifique um mínimo de segurança. Chega a ser ridículo falar em segurança num ambiente em que uma massa de pessoas, nos horários de pico, desafia as leis da física provando que dois corpos podem sim ocupar o mesmo espaço. E quem paga por isso é o próprio trabalhador, como Lourivaldo. A classe trabalhadora é explorada em seu emprego, em jornadas extenuantes como a escala 6×1, e ainda no próprio trajeto, pagando caro por um serviço cada vez mais sucateado e privatizado (já pedindo desculpa pela redundância).
Ninguém está pensando em colocar mais trens e funcionários a fim de atender a classe trabalhadora com o mínimo de dignidade e segurança. Neste momento, a Via Mobilidade, ou a própria direção do Metrô, não estão preocupados com segurança. O governo Tarcísio planeja privatizar o que resta das linhas de trens e metrôs, enquanto a concessionária faz um balanço de seu protocolo de gerenciamento de crise, pensando em como aperfeiçoar uma resposta mais ágil e eficiente na próxima tragédia.
E Lourivaldo, que fazia reposição num supermercado, a essa altura já foi, ele próprio, reposto.