Recentemente, dois militantes do MRT (Movimento Revolucionário dos Trabalhadores), a seção brasileira da FT (Fração Trotsquista), escreveram um longo artigo “Debate Os dilemas da LIT-QI em sua autocrítica a Nahuel Moreno e a atualidade da Revolução Permanente” partindo de polemizar com o artigo “Sobre as situações da luta de classes em nivel nacional e internacional”, um entre vários textos de atualização programática que a Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI) vem produzindo nos últimos anos.
Eles retomam neste longo artigo suas diferenças teóricas com Moreno formuladas desde os anos 90, e as entrelaçam com as diferenças programáticas e políticas concretas com a LIT e o PSTU, para reafirmar suas concepções e também a política que aplicaram em cada caso.
No início dos anos 90, um extenso trabalho da FT (Polêmica com a LIT-QI e o legado teórico de Nahuel Moreno) apresentou o que seriam os eixos ordenadores da sua crítica a Moreno: o “objetivismo”; a sua contribuição à teoria da Revolução Permanente, que seria “etapista”; sua interpretação do que é uma revolução, que acabaria por levá-lo a ser partidário de qualquer revolução sob qualquer direção; e, subsidiariamente, sua interpretação da Segunda Guerra Mundial e da etapa entre 1945/1989.
A partir desta base teórica, em mais de uma ocasião, a FT criticou as correntes que se reivindicam morenistas, em especial a LIT, diante dos muitos acontecimentos da luta de classes. Sobre a Palestina, no enfrentamento ao governo Chávez, nas revoluções Árabes, no Brasil, na revolução e Guerra Civil Síria, na guerra da Ucrânia, etc.
Em nossa opinião, em que pese não haver uma ligação mecânica entre teoria e política, podemos buscar na teoria os erros políticos que alguém, alguma corrente ou organização cometa. No entanto, não vemos que nossa intervenção, na grande maioria dos casos que os companheiros citam, estavam equivocadas, e muito menos, que, no geral, o corpo teórico do morenismo ou a atualização e contribuição que Moreno faz à teoria da Revolução Permanente esteja errada. Pelo contrário, Moreno, ao nosso ver, foi quem melhor defendeu e deu sequência à elaboração da teoria da Revolução Permanente de Trotsky nos pós-Segunda Guerra Mundial
A FT diz que Moreno não defende a teoria da Revolução Permanente, e sim a “Revolução Democrática”, que ele seria “etapista”. Isso não corresponde à verdade. Queríamos registrar que consideramos essa metodologia de fazer a discussão muito ruim, porque, ao debater com uma inverdade ou uma péssima caricatura, acaba por interditar o debate, ou o diálogo que os companheiros nos cobram estabelecer com sua corrente e suas elaborações teóricas.
Seria impossível em um artigo que não fosse muito grande responder sem superficialidade a todas as diferenças que temos com a FT. Vamos, portanto, nos centrar em alguns aspectos.
Faremos adiante um artigo mais aprofundado apenas sobre a teoria da Revolução Permanente, no qual pretendemos demonstrar a riqueza das elaborações de Moreno sobre as revoluções concretas que ele buscou responder, e intervir.
1 – A importância de não jogar a criança junto com a água do banho, nem fazer esquemas reversos
Moreno, evidentemente, não é isento de erros, como nenhum marxista o é. Ele, aliás, sempre foi muito autocrítico, e o primeiro a reconhecer e corrigir erros dos quais se autocriticava. Nós, da LIT-QI e do PSTU, com certeza cometemos muito mais erros do que cometeu Moreno. E não vemos problema em nos autocriticarmos por eles. Pelo contrário, é preciso aprender com os erros.
E também não somos dogmáticos. Assim como Moreno criticou e atualizou Trotsky, nós não vemos problema em criticar e atualizar Moreno ou Trotsky, ou em atualizar a teoria e o programa perante mudanças na realidade. Do contrário, não seríamos morenistas, trotskistas e leninistas.
Vivemos, aliás, um intenso processo de atualização e de elaboração programática na LIT-QI e no PSTU, que os companheiros talvez desconheçam ou não acompanhem. O texto de 2020 com o qual os companheiros polemizam é um entre vários produzidos e publicados nos últimos anos, tais como “Eleições” (2015) “Sobre as Etapas” (2017), “Questão Nacional”, “Opressões”, “China – uma potência imperialista emergente”, “Rússia imperialista”, “Meio Ambiente”; “Debates sobre Materialismo Histórico”, “Agitação e Propaganda”, “Relação Partido e Sindicato”, entre vários outros.
Nesse processo, e também em anteriores processos de elaboração, temos desenvolvido críticas e apontado erros nossos, em primeiro lugar, e também erros de Moreno.
Vemos traços e problemas de objetivismo e esquematismo em alguns textos destinados especialmente à popularização, ou à tentativa de categorizar momentos específicos de processos de forma pedagógica, como em “Revoluções do Século XX” ou “Conceitos Políticos Básicos”, que, se lidos e assimilados ao pé da letra, como um manual, podem levar a um esquematismo, a um determinismo e ao objetivismo.
Mas não é isso o que caracteriza a maioria ou a totalidade da elaboração programática e política de Moreno para intervenção na luta de classes, e nos processos revolucionários do pós-Guerra até os anos 80 do século passado. Muito pelo contrário. Embora haja também erros de prognósticos (o que é muito comum em todos autores marxistas) e de análise, que independem de formulação teórica. Alguns processos lhe escaparam, talvez um dos mais importantes tenha sido não ter visto que, na China, a restauração capitalista havia ocorrido em 1978.
A crise e a divisão do MAS (Movimento ao Socialismo) argentino, e da própria LIT-QI no final dos 90, levaram várias organizações a uma leitura dogmática e a uma visão objetivista, apoiando-se em prognósticos que não se cumpriram, ou levando ao pé da letra alguns textos, convertendo-se, no nosso modo de ver, em caricaturas do morenismo. Muitas vezes distorcendo a realidade para expressar desejos ou forçá-la a entrar em esquemas objetivistas.
Não é, porém, um bom caminho tentar corrigir esses tipos de erros com um esquema subjetivista reverso, que, na nossa maneira de ver, com todo o respeito, impregna a armação teórica da FT, que também tem origem na corrente morenista, tendo nascido da ruptura nos anos 80 de uma parte da juventude do MAS argentino (partido de Nahuel Moreno).
Isso porque um esquema subjetivista, igualmente, nos distancia da realidade, da dialética e de uma formulação revolucionária capaz de unir estratégia e tática para dar uma resposta fecunda e eficaz, especialmente a processos revolucionários que sempre são muito mais ricos do que qualquer esquema.
A questão da Revolução Permanente e a atualização de Moreno
Em 1930, Trotsky escreveu seu livro, a Revolução Permanente. Foi um longo processo onde ele incorporou e ajustou sua teoria às experiências concretas da luta de classes e das diversas revoluções que presenciou. Em sua primeira versão, de 1905/1906, a teoria da Revolução Permanente era uma explicação/programa para a Revolução Russa que se desenrolava, e foi apresentada na sua primeira forma final em Balanço e Perspectiva.
Era, num sentido, a continuação da elaboração de Marx, que em 1850, ao escrever sobre a Revolução Alemã, termina com a frase, “nosso grito de guerra será viva a revolução permanente”. Vale a pena destacar que apesar do nome coincidente, a teoria da Revolução Permanente de Marx e Trotsky eram diferentes.
Essa teoria da revolução debateu com outras, como a de Lênin, que, concordando com Trotsky sobre o papel da burguesia, dava um peso maior à participação do campesinato na revolução, e via a necessidade de uma ditadura democrática do proletariado e do campesinato, como etapa burguesa revolucionária, antes da revolução proletária socialista, com o objetivo de cumprir todas as tarefas democrático burguesas. Ainda que, quando a revolução Russa de 1906 chegou em seu momento auge, Lênin escreveu: “Nós somos partidários da revolução ininterrupta. Não haveremos de parar na metade do caminho.”
E também com a de Bukharin, que via a Revolução Permanente como um salto sobre as tarefas democráticas, passando direto para as tarefas socialistas da revolução.
A Revolução de 1917 passou as teorias, e as práticas, em revista. Lênin, nas Teses de Abril, adere, de conteúdo, à lógica da Revolução Permanente. Trotsky, por sua vez, se incorpora ao partido Bolchevique, e, na prática, incorpora esse elemento à sua teoria da revolução.
Mas, quando a III Internacional discute a revolução nos países coloniais e semicoloniais, nas Teses do Oriente, a versão que sai vitoriosa é um retorno à compreensão da Ditadura Democrática do Proletariado e do Campesinato, especialmente porque nem Lênin, e nem Trotsky, pensavam que o Oriente estaria maduro para a revolução socialista.
A versão final da teoria da Revolução Permanente será fruto da segunda Revolução Chinesa, quando Trotsky se enfrentará com a politica da III Internacional, já sob Stálin, de capitulação ao partido burguês nacionalista chinês, o Koumitang.
Em sua versão final, Trotsky concluirá que não existem países não maduros para a revolução proletária, que nos países atrasados ela se dará em uma aliança do proletariado com o campesinato pobre, contra a burguesia local e o imperialismo, dirigida socialmente pelo proletariado e, politicamente, pelo partido revolucionário do proletariado e vinculada à revolução mundial, que definirá o futuro da humanidade. Portanto, a teoria da Revolução Permanente, foi, até aí, incorporando novos elementos a partir de acontecimentos e experiências. Não poderia ser de outra forma, pois, como não cansamos de repetir, mas nem sempre de compreender, a teoria não é um dogma, mas um guia para a ação.
No Programa de Transição, Trotsky abre uma outra possibilidade para a dinâmica da revolução. Ele dirá:
“Não se deve negar categórica e antecipadamente a possibilidade teórica de que, sob a influência de uma combinação de circunstâncias excepcionais (guerra, derrota, quebra financeira, ofensiva revolucionária das massas etc.), os partidos pequeno-burgueses, incluídos aí os stalinistas, possam ir mais longe do que queriam no caminho da ruptura com a burguesia.”
Quando a dominação nazifascista colapsou na Europa, emergiu um mundo onde, por um lado, os EUA se firmaram como potência imperialista hegemônica, e, por outro, a União Soviética que, ao mesmo tempo que fazia um contraponto político aos EUA, era sua principal parceira na manutenção da ordem mundial. E havia dezenas de novos Estados Operários, conquistas importantes. Mas que, por sua vez, ao terem chegado a esta condição pela via da ocupação militar russa (no caso do Leste Europeu), ou de revoluções feitas por camponeses e exércitos guerrilheiros dirigidos por partidos stalinistas ou reformistas, reforçaram o prestígio dessas direções e dificultaram o surgimento de direções revolucionárias.
A Quarta Internacional se reorganizou neste contexto, depois de ter passado a maioria dos anos da guerra sem um funcionamento orgânico, e tendo sofrido uma extensa sangria de quadros, principalmente vítimas do stalinismo e do fascismo.
Era necessário explicar e intervir nesse novo mundo e atualizar a teoria da revolução. E essa tarefa levou, como era inevitável, a crises e rupturas. Pelo menos três grandes respostas foram dadas.
Houve aqueles que negaram o surgimento dos novos Estados Operários, uma vez que seu surgimento e o regime que eles expressavam não estariam dentro das normas estabelecidas pela teoria da Revolução Permanente. Houve os que concluíram que o que se havia dado era exatamente aquilo que o corpo teórico da Revolução Permanente previa. E houve os que, admitindo que havia tido revoluções e expropriações, reconheceram que essas não se deram da forma como estava sendo esperada, que se havia dado a hipótese menos provável, com a qual Trotsky trabalhou no Programa de Transição, e que era preciso encarar de frente esta nova realidade.
A Revolução Cubana, por exemplo, foi emblemática: um setor, vendo corretamente que a direção não era revolucionária, considerou que Cuba não fez uma revolução socialista, não originou um novo Estado Operário e continuou capitalista; um outro setor, reconhecendo que houve revolução e havia um novo Estado Operário, chegou à conclusão que sua direção era revolucionária. E os que, como Moreno, analisaram, não sem grande dificuldade no início, que houve uma revolução que expropriou a burguesia e criou um novo Estado Operário, porém que sua direção era pequeno-burguesa e contrarrevolucionária; portanto Cuba era um novo Estado Operário burocratizado.
A esses processos se somaram outros: As revoluções anticoloniais na África que levaram ao poder grupos guerrilheiros armados, mas que não expropriaram a burguesia (ainda que em alguns casos como o da Argélia um governo operário e camponês retrocede ao capitalismo). Várias revoluções políticas derrotadas na Alemanha, Hungria, Tchecoslováquia e Polônia. Finalmente, houve revoluções que derrubaram ditaduras, regimes bonapartistas e, em seu lugar, colocaram democracias burguesas.
Diante desses acontecimentos que atravessaram a segunda metade do Século XX foi necessário resgatar o legado de Trotsky, mas também atualizá-lo, e foi isso que Moreno fez.
Nahuel Moreno
É no contexto do Pós-guerra, de mudanças estruturais importantes no mundo, que atualizaram o problema do imperialismo, da crise de direção revolucionária, da relação entre países coloniais, semicoloniais e as metrópoles, que Nahuel Moreno surge como um dos dirigentes da Quarta Internacional.
É bom que se diga que a crise de direção revolucionária tinha dois pólos: de um lado as vitórias sobre o nazifascismo na Segunda Guerra Mundial fortaleceram o stalinismo como direção de amplos setores do movimento de massas e da classe trabalhadora, e, neste mesmo polo, da contrarrevolução, na Europa Ocidental se fortalecem os partidos sociais democratas que fizeram uma série de concessões às massas, no que seriam os Estados de bem-estar social.
No outro pólo, o da construção de uma direção revolucionária e alternativa a estas duas potentes organizações que se ancoravam no controle dos Estados do Leste (o stalinismo) ou na administração dos Estados burgueses da Europa (social democracia), a IV Internacional saiu da guerra praticamente destruída. Seus quadros haviam sido perseguidos, presos e mortos por todas as potências beligerantes, inclusive antes da guerra eclodir. O imperialismo democrático, o imperialismo nazifascista e o stalinismo, todos eles participaram, com distintos pesos e medidas, da perseguição à IV Internacional.
Moreno foi parte da direção que elaborou a explicação correta sobre os novos Estados operários burocraticamente deformados (pois já nasciam com uma deformação), diferenciando-os do russo que havia se degenerado. Ao mesmo tempo, foi parte daqueles que reconheceram que na Iugoslávia e China haviam ocorrido revoluções, e que, na medida que expropriavam a burguesia, se tornavam Estados Operários, mas que suas direções não eram revolucionárias, apesar de avançarem além do que eram suas intenções.
Mas foi a Revolução Cubana a grande prova pela qual passou Moreno, em que ele, no início, cometeu uma série de erros, do qual se autocriticou, mas não o erro de não reconhecer ou de negar uma revolução. Ele reconhecerá que Cuba é o primeiro país socialista das Américas, que sua revolução é um marco na história do continente e buscará, incessantemente, dialogar com a poderosa vanguarda que surge deste processo. Como o esquema subjetivista da FT explicaria a Revolução Cubana?
2 – As Revoluções do Século XX (o livro e a elaboração de Moreno)
A interpretação de Nahuel Moreno sobre as revoluções do Pós-Segunda Guerra Mundial constitui um dos eixos centrais da crítica elaborada pela Fração Trotskista. Seu leque de objeções é amplo, abrangendo desde o conceito de revolução em si e a extensão da noção de excepcionalidade, até a discussão sobre a “revolução democrática”, vista pela FT como uma nova forma de etapismo ou semi-etapismo.
Para fundamentar essa crítica, as fontes primárias da FT são a obra “As Revoluções do Século XX” e o Curso de Quadros ministrado por Moreno sobre o tema, publicado postumamente.
Antes, porém, de adentrar o mérito da discussão, é necessário destacar um problema recorrente nas críticas: um aparente desconhecimento da teoria morenista. Um exemplo recente está expresso em artigo de militantes do MRT/FT no Brasil, que afirma que a Moreno teria “escapado” à análise dos impactos da política imperialista gestada a partir dos anos 1970, que se aprofundou com o fim da Guerra Fria. Segundo o artigo, os EUA, para compensar o declínio de sua hegemonia pós-Vietnã, passaram a apoiar “transições democráticas” pelo mundo. Essa acusação só pode derivar de um desconhecimento da obra de Moreno, pois foi ele quem cunhou e desenvolveu o conceito de “reação democrática” para explicar precisamente essa política “democratizante” do imperialismo como um mecanismo para desviar e conter processos revolucionários.
A complexidade do período torna-se ainda mais evidente ao analisar as revoluções políticas que então ocorreram. Embora a classe operária tenha sido o sujeito social de muitas delas, em nenhuma esteve presente como sujeito político da forma prevista pela teoria da Revolução Permanente.
Ademais, a análise da FT sobre os processos de descolonização na África mostra-se profundamente insuficiente. Eles resumem, por exemplo, que movimentos como o Mau Mau (Quênia) e a luta de Patrice Lumumba (Congo) lograram apenas uma “independência formal como semicolônias”, e que a Argélia, após alcançar um “governo operário e camponês”, retrocedeu para um Estado burguês semicolonial. Sobre as colônias portuguesas, afirmam que as lideranças pequeno-burguesas (como o MPLA) não instauraram Estados operários nem mesmo deformados.
Essa leitura nos parece equivocada por ser teleológica e determinista, como se o resultado final estivesse contido de forma inelutável no início do processo, julgando-o com a lente de hoje, cinquenta anos depois. Ao fazê-lo, a FT desconsidera o contexto histórico real: o que chamam de “apenas independência formal” representou, em seu momento, gigantescas vitórias táticas. Essas revoluções, que antecederam e sucederam a Revolução Portuguesa (outro evento crucial ignorado pela FT), foram grandes acontecimentos históricos que, dentro dos marcos da revolução permanente, se desenrolaram de forma inesperada.
Elas não avançaram e posteriormente retrocederam devido precisamente à ausência de uma direção revolucionária com influência de massas. No entanto, influenciaram milhões mundialmente e exigiam uma resposta política correta. Era necessário reconhecer seu caráter progressivo para disputar a direção política naqueles países e dialogar com os setores de vanguarda em todo o mundo tocados por elas, com o objetivo final de construir uma alternativa revolucionária. Em suma, foram processos que, embora no final tenham sido derrotados, desviados ou congelados, foram em sua origem eventos monumentais da luta de classes.
O exemplo da Revolução dos Cravos – Portugal
Para tomar um exemplo, a revolução portuguesa foi outro grande desafio do trotskismo no pós-guerra. Um levante militar de jovens capitães cansados da guerra colonial desencadeou um amplo processo revolucionário. O imperialismo reagiu com um leque de políticas que ia de um plano bonapartista contrarrevolucionário do Movimento das Forças Armadas-PC, por um lado, à proposta de uma normalização democrático-burguesa parlamentarista com o PS e seus aliados da burguesia imperialista portuguesa, por outro, e ao mesmo tempo a tentativa de estrangulamento econômico provocado pela sabotagem imperialista de conjunto.
Isso tudo nos marcos de uma situação que, de conjunto, se caracterizava como revolucionária e um regime com importantes germes de poder dual, ainda que só abarcasse um setor minoritário do movimento de massas.
Neste contexto, uma parte do movimento trotskista apresentava um programa mínimo e democrático para a revolução portuguesa, de retirada das tropas de Angola, sem ligar essas tarefas democráticas defensivas aos germes do poder operário.
Moreno, ao contrário, como pode ser lido no seu livro “Revolução e contrarrevolução em Portugal”, orientou que era preciso que os revolucionários tivessem como centro defender, desenvolver e centralizar as comissões operárias e os comitês de soldados, dar-lhes a perspectiva da revolução socialista, combiná-los com todas as tarefas que as massas portuguesas enfrentavam. Ele dizia que qualquer política que não fosse fortalecer os germes de organismos de duplo poder, em direção à revolução socialista, não era trotskista, mas “poumismo” de diferentes tipos, que, apesar de na forma defenderem aparentemente um programa bolchevique-leninista, no conteúdo defendiam a democracia burguesa e se negavam a enfrentar o governo contrarrevolucionário do MFA-PC.
Moreno, que apostava no aprofundamento das conquistas democráticas como forma de desenvolver os elementos de duplo poder e a organização da própria classe operária, afirmava que
“se a revolução operária não chega a impor-se, a tendência de Portugal imperialista não deixa dúvidas: o seu atraso condená-lo-á a se transformar em submetrópole, ou seja, sócio-menor de outros impérios mais poderosos na exploração da classe operária e das colônias; e a curto prazo, não está descartada a perda total da sua influência nas colónias, que o levará a transformar-se diretamente numa semicolônia. Portugal, para manter a sua atual independência do capital estrangeiro, só tem uma alternativa: o socialismo, que o faria superar o seu atraso sem cair sob o domínio dos grandes monopólios internacionais.”.
Dessa visão não existe qualquer possibilidade de se concluir que Moreno trabalhava com uma estratégia de “revolução democrática”, ou que qualquer revolução valia.
Na revolução portuguesa, como na intervenção nas outras revoluções, pode-se encontrar erros de Moreno, mas com certeza não se encontrará nenhuma pista que leve à conclusão de que ele tinha uma concepção e estratégia etapista do processo que se desenvolvia. Ao contrário, o que se vê é a busca de Moreno por encontrar os caminhos que permitam o desenvolvimento permanente da revolução portuguesa. Como a FT explicaria a revolução portuguesa? Não existiu uma revolução em Portugal? O 25 de abril foi irrelevante? Pelo fato de que ela acabou sendo congelada e depois retrocedeu via reação democrática, os revolucionários não deveriam intervir nela?
A Revolução dos Cravos confirmou na prática a tese de Moreno: as revoluções frequentemente começam sob bandeiras democráticas e só podem se completar sob direção proletária. A ausência de um partido revolucionário com peso de massas permitiu que o processo fosse canalizado para a institucionalidade parlamentar, mas nem por isso deixou de ser um marco revolucionário de alcance internacional.
O mesmo tratamento superficial, ou pouco atento, é dado aos múltiplos processos de derrubada de ditaduras que se dão a partir dos anos 70, em especial depois da derrota do Vietnã. Em uma série de países, ditaduras mais ou menos longas foram derrubadas, em processos distintos: Portugal, Espanha, Nicarágua, Argentina, Brasil, para citar alguns casos. Era preciso entender esses processos para intervir neles.
Não nos parece que esses fenômenos sejam iguais, e Moreno não os tratou como se fossem. Não os tratou genérica e superficialmente, pelo contrário, ele buscou entendê-los a fundo na sua especificidade, para intervir na realidade e construir tanto as pontes necessárias para Outubro, como para disputar contra as saídas bonapartistas, de “reação democrática” ou reformistas no concreto, não em abstrato, e para construir partidos revolucionários de vanguarda com incidência e influência de massas.
É necessário, portanto, olhar para o conjunto destes processos e se perguntar, primeiro, se ocorreram nas revoluções da segunda metade do Século XX as previsões estritas de Trotsky da mecânica da revolução, e, se não, o que houve? As revoluções da segunda metade do século rejeitaram a teoria da Revolução Permanente?
A questão da direção
Pensamos que Moreno está correto em constatar que as revoluções não aconteceram tal qual previu Trotsky em seu último livro dedicado ao tema, nem tampouco que essa teoria foi rejeitada pelas novas revoluções. Elas reafirmaram e enriqueceram a teoria da Revolução Permanente, confirmando um aspecto que aparece no Programa de Transição. Ou seja, de que as revoluções, por uma série de fatores, podem ir além daquilo que desejavam suas direções. Mas também, como diz Moreno, isso tem um limite. Porque, diz ele na tese II do livro Atualização do Programa de Transição:
“enquanto os aparatos sigam controlando o movimento de massas, todo triunfo revolucionário se transforma inevitavelmente em derrota […] nesta época todo avanço que não seja seguido de outro avanço significa um retrocesso. Daí que a burocracia com sua política de freio por um lado, de defesa de seus privilégios frente às massas, por outro, está obrigada a lutar contra a mobilização permanente dos trabalhadores, a transformar seus triunfos em uma derrota da revolução permanente”.
Então, esse processo que pode ocorrer em nível nacional, em sua essência coletiva, ou, do ponto de vista da revolução mundial é impossível, o que só reafirma, nas palavras de Moreno, que somos ainda mais defensores da teoria da Revolução Permanente, e de que consideramos que a crise da humanidade é a crise da direção revolucionária.
Querer reduzir, portanto, a interpretação de Moreno ao texto Revoluções do Século XX é um reducionismo tremendo, por vários motivos. Em primeiro lugar este livro foi escrito originalmente como uma série de notas para ajudar em um curso que estava sendo preparado sobre o tema e só foi publicado na forma de livro em 1986. Em segundo lugar, porque ignora os livros, textos e contribuições de Moreno sobre o tema. Há no mínimo dezenas (senão centenas) de textos de Nahuel Moreno sobre a Revolução Cubana, a Revolução Portuguesa, angolana, nicaraguense, o processo revolucionário na América Central, as revoluções políticas na Hungria, Polônia, e um vasto etc.
No conjunto destes textos pode se encontrar muita coisa, pode-se concordar ou discordar de Moreno, mas com certeza não está plasmado neles a idéia de “qualquer revolução com qualquer direção”. Muito menos a idéia objetivista de que estes processos avançavam sem contradição a nosso favor. Pelo contrário, pari passu com o entusiasmo militante pelo ascenso das massas e os triunfos de suas lutas, Moreno sempre aponta os limites e contradições destes mesmos processos.
Moreno expressou diversas vezes em sua obra que a dialética entre derrotas e vitórias era invertida frente à dialética que sustentava a visão evolutiva da social democracia e do stalinismo, que diziam que o caminho do proletariado estava cheio de derrotas que levavam ao triunfo. Para Moreno, “enquanto o proletariado não superar a sua crise de direção revolucionária não poderá derrotar o imperialismo mundial. E todas as suas lutas, como consequência disso, estarão cheias de triunfos que nos levarão inevitavelmente a derrotas catastróficas” (Atualização do Programa de Transição). Quer dizer, vitórias táticas e grandes conquistas, mas que se converterão em derrotas estratégicas, se reforçarem o peso das direções contrarrevolucionárias e não proletárias.
Contudo, ao mesmo tempo, não há nenhuma possibilidade de superar as direções contrarrevolucionárias confundindo o movimento de massas com suas direções, ou as revoluções com as direções que eventualmente as conduzam.
Isso, no entanto, não nega o fato de que esse livro, Revoluções do Século XX, no afã de tentar categorizar e tornar didáticos vários momentos específicos de processos concretos, realmente peca por esquematismo e simplificações que devem ser superados. O livro de fato não expressa a obra de Moreno sobre estes mesmos processos.
Outra coisa é a crítica feita ao curso de 1984, também sobre esse tema, e que foi transcrito e publicado como livro em 1992. Ao contrário do que expressa a FT, independente do acerto de algumas ou de todas as críticas que faz Moreno a algumas das teses da Revolução Permanente de Trotsky, nos parece sumamente correta a forma aberta e a metodologia com a qual ele encara o debate sobre a revolução permanente nesta escola e sobre como atualizá-la, sem esquematismo ou determinismo.
Sem medo de chamar as revoluções pelo seu nome
A FT chamou os grandes levantes árabes do início da década de 2010, de Primavera Árabe, mas nunca de revoluções árabes.
Antes de mais nada, várias correntes morenistas, muitas vezes abusaram do conceito de revolução, e neste contexto, também de “revolução democrática”, transformando qualquer crise do regime ou ascenso do movimento de massas em revoluções, e a queda destes regimes em revoluções democráticas. Isso, porém, repetimos, é uma caricatura do morenismo, e não tem nada a ver com o conceito cunhado por Nahuel Moreno, nem com os fenômenos políticos que ele buscava explicar.
Moreno quando chama um fenômeno de revolução aplica o mesmo conteúdo de Trotsky na sua introdução à História da Revolução Russa quando diz:
“A característica mais incontestável da Revolução é a intervenção direta das massas nos acontecimentos históricos. Comumente, o Estado, monárquico ou democrático, domina a nação; a História é feita pelos especialistas da matéria: monarcas, ministros, burocratas, parlamentares, jornalistas. Todavia, nas curvas decisivas, quando um velho regime se torna intolerável às massas, estas destroem as muralhas que as separam da arena política, derrubam os seus representantes tradicionais e, intervindo deste modo, criam uma posição de partida para um novo regime. Seja isto um bem ou um mal, cabe aos moralistas julgarem-no. Quanto a nós, tomamos os fatos tal como se apresentam em seu desenvolvimento objetivo. A história de uma Revolução, para nós, inicialmente, é a narrativa de uma irrupção violenta das massas nos domínios onde se desenrolam seus próprios destinos.”
Ou seja, para Moreno, assim como também para Trotsky e para Lênin, revolução é a ação das massas, sua irrupção na história, quando criam uma posição de partida para um novo regime. Não é à toa que Trotsky, diferente do MRT/FT, diz que “As revoluções são impossíveis até que se tornem inevitáveis”.
No texto “Argentina: Uma revolução democrática triunfante”, Moreno tenta explicar justamente por que o que está ocorrendo na Argentina é uma revolução. Ele vai demonstrar que o processo argentino se dá sem condicionamento, sem controle da oligarquia e do exército; que abriu uma crise nas forças armadas, houve uma forte mobilização popular e esta forte mobilização popular foi o que precedeu à derrubada do regime e a crise nas forças armadas.
Comparando com outros processos da própria Argentina, onde tinha havido a passagem de governos reacionários, bonapartistas ou semi-bonapartistas para governos democráticos, Moreno observa que na maioria, senão em todos os casos anteriores, pese haver mais ou menos mobilizações populares, o que ocorreu foi o controle, a dosificação, a passagem controlada pelas instituições burguesas. Um tipo de “reforma” democrática.
Moreno observa, além disso, que pode haver ainda um outro exemplo, que é que o próprio regime organize sua substituição, mantendo os elementos centrais que o compunham, o que ele chamou de Bismarkismo Senil. Uma transição controlada desde cima e mantendo elementos centrais do regime bonapartista.
Para Moreno esta revolução democrática, que faz cair um regime ditatorial e faz subir um regime democrático, é por sua composição social, operária e popular, uma revolução que objetivamente tem impulso anticapitalista e está diretamente ligada à revolução socialista. Objetivamente, não há um interregno entre uma e outra, não é necessário esperar consolidar as conquistas democráticas, ao contrário, se deveria começar imediatamente a aproveitar as mobilizações das massas e as conquistas democráticas para levar adiante a luta pela revolução socialista, embora seu devir, seu desenvolvimento e continuidade tenha várias possibilidades, caminhos e alternativas em disputa.
E alerta para os problemas que surgem dessa vitória democrática, o que ele chamará primeiro de contrarrevolução democrática, e logo de reação democrática, mas cujo conteúdo é a política da burguesia e do imperialismo, de buscar esvaziar as mobilizações e as lutas diretas dos trabalhadores, e com isso frear a revolução, canalizando tudo para as eleições e os organismos e instituições do regime.
Moreno aqui não está defendendo revolução por etapas. Está constatando que se iniciou uma revolução que avançou uma fase e obteve conquistas parciais, que serão usadas pela burguesia para que não seja permanente, para que seja congelada, para que se desvie, para que retroceda; e para a necessidade de se enfrentar a reação democrática, de lutar pela permanência da revolução.
Obviamente, como toda revolução que não tem à frente um partido revolucionário, este processo tende a ser desviado, congelado ou derrotado em algum momento. Vejamos, se não existisse o Partido Bolchevique na Rússia, o mais provável é que a Revolução de Fevereiro tivesse parado aí e retrocedido; ou tivesse sido derrotada por Kornilov, ou afogada no pré-parlamento (nesse terreno, o livro Lições de Outubro do Trotsky, publicado pela Sundermann, é uma aula contra a espera de “revoluções puras”, facilismos, determinismos e esquemas gerais).
Contudo, outras revoluções, como a cubana, por exemplo, não parou nas tarefas democráticas como a Argentina, parou na expropriação da sua própria burguesia, mas, por falta de uma direção revolucionária, proletária e consequente, em seguida se transformou num freio para que as demais revoluções latino-americanas avançassem para outras Cubas ou novos Vietnãs.
Ao ver o processo brasileiro, em que milhões tomaram as ruas em 84, Moreno vaticina que estava iniciando a revolução (democrática) brasileira, achava que havia se aberto uma crise revolucionária e que os militares e a ditadura haviam perdido o controle do processo, embora avaliasse ter sido um processo menos profundo que o argentino, porque não colocou em completa crise as Forças Armadas, pilar do Estado burguês. Não existiu uma crise revolucionária e nem completo descontrole, e Moreno errou nisso. Mas, de fato, foi aberto ali um processo muito menos controlado do que o da Espanha, por exemplo (que tinha uma direção de massas firmando o Pacto de la Moncloa). No Brasil, ao contrário, esse momento não foi o começo do ocaso de um PC de massas e da reconstrução de um PSOE pelas mãos da burguesia, mas sim do surgimento do único partido de massas com corte de classe do pós-Guerra, como constata Perry Anderson. O PT nascente, votou contra a Constituição que saiu da Constituinte de 88 (a mais avançada que o Brasil já teve). O processo acabou sendo controlado, as Forças Armadas saíram intactas e, inclusive, mantiveram um entulho autoritário na Constituição, que hoje faz diferença, como vimos na tentativa de golpe de Bolsonaro, quase 40 anos depois.
A transição brasileira não foi, com certeza, como a argentina. Mas isso não significa que tenha sido a transição pactuada por cima, sem mais, preparada milimetricamente pelos militares e a burguesia. Ao contrário, os anos que vão de 84 a 89 são os que alcançaram os mais altos índices de participação direta da classe operária e do “povo” na vida do país.
Moreno erra ao confundir, ou dar a entender, que a situação pré-revolucionária já é revolucionária e que se abriu uma crise revolucionária. Mas tem toda a razão sobre a dinâmica da luta de classes no Brasil, e por isso foi capaz de armar a construção de uma das organizações trotskistas mais operárias e mais enraizadas num processo objetivo e histórico de um país.
A situação pré-revolucionária de fato foi desviada pelos mecanismos da reação democrática, mas com idas e vindas foi se fechar anos depois, tendo participação decisiva do PT, que, do papel relativamente progressivo que cumpriu nos 80, passou a cumprir um papel totalmente contrarrevolucionário pós-89, indo ao pacto com Collor.
Erros de Moreno, erros nossos (da LIT e do PSTU) e erros da FT/MRT
O texto dos companheiros do MRT/FT diz que “não vamos à raiz” dos nossos erros, que eles debitam à sua interpretação de que Nahuel Moreno não defenderia a teoria da Revolução Permanente e sim da “Revolução democrática”, sendo, portanto, etapista.
Por outro lado, dizem que a Moreno teria escapado a política de reação democrática do imperialismo. Mas, como dissemos, não é verdade que Moreno não defende a teoria da Revolução Permanente, e também nos parece até um desconhecimento das obras de Moreno afirmar que tenha escapado a Moreno a política de reação democrática do imperialismo (quando esse termo foi inclusive cunhado por ele).
Avaliamos na LIT-QI (e no PSTU), que um dos erros importantes de Moreno, contraditoriamente, adveio de lhe ter escapado um fato perante o qual, devemos dizer, ele estava teoricamente mais preparado. Até a FT reivindica o livro A Ditadura Revolucionária do Proletariado, onde Moreno, contra Mandel, defende que a burocracia não tem uma dupla natureza, e que a restauração do capitalismo deve partir dela.
Moreno viveu um enorme ascenso de massas na América Latina, no qual ergueu importantes partidos, sem descuidar de processos como a Revolução dos Cravos ou o processo da Espanha. Mas Moreno não viu a restauração capitalista na China em 78 e nem na URSS em 86, apesar da grande elaboração e acerto teórico que tinha sobre esse tema.
Avaliamos na LIT que um dos nossos erros datam das Teses de 1985 e de uma análise histórica, da terceira etapa, na qual, supostamente, teria se mantido uma correlação de forças estável em escala mundial desde 1943 até 1989-1990.
Em “Sobre as Etapas”, um texto votado em 2017 pela LIT-QI e que pode ser acessado aqui, é possível ao leitor ter acesso à totalidade dessa avaliação, a qual reproduzimos a seguir apenas uma parte, de maneira muito resumida.
Ocorre, que há um aspecto do qual não fomos conscientes até muito tempo depois e que teve uma importância decisiva para o desenvolvimento dos acontecimentos: o giro restauracionista da burocracia stalinista, primeiro na China, a partir de 1978, com as Quatro Modernizações, e depois na URSS, a partir 1986, com a Perestroika.
A partir do momento em que a burocracia colocou em marcha um plano consciente de restauração do capitalismo, sua política exterior deixou de se basear na manutenção do pacto de coexistência pacífica do final da Segunda Guerra Mundial para buscar, diretamente, um pacto de integração, sem disfarces, ao sistema mundial de Estados e à divisão mundial do trabalho, dominados pelo imperialismo.
Assim, após a viagem do então primeiro-ministro da República Popular da China, Deng Xiaoping, a Washington, em 1979, produziram-se dois fatos fundamentais: os investimentos da Coca-Cola e da Boeing na China, abrindo caminho para uma onda generalizada de investimentos das grandes transnacionais, e a invasão do Vietnã pelo exército chinês, atuando como apoio direto ao imperialismo norte-americano para estabilizar o Sudeste da Ásia.
O “esforço de modernização da economia chinesa” não era nada além de um plano consciente de destruição dos pilares econômicos do Estado operário burocratizado. Já não estávamos diante de um Estado operário, mas sim de um Estado burguês a serviço direto da restauração capitalista (O Veredito da História, Martín Hernández). “O bilhete de entrada da China na ordem capitalista mundial”, que teve seu pacto de sangue na invasão ao Vietnã, teve, da mesma forma, outras expressões, como a colaboração militar com o imperialismo na África (Angola) ou o reconhecimento da ditadura de Marcos, nas Filipinas, e a de Pinochet no Chile.
O plano de restauração na URSS, colocado em marcha com a Perestroika, em 1986, logo teve seu reflexo também na política exterior da burocracia soviética, que empreendeu uma linha ativa de normalização das relações internacionais com o imperialismo norte-americano, que culminaria nos Acordos de Washington em 1987. A assinatura do Acordo de Esquipulas nesse mesmo ano, liquidando a revolução nicaraguense e centro-americana, foi uma importante peça desta política.
A plena incorporação de milhões de trabalhadores chineses ao mercado mundial não só permitia às grandes corporações imperialistas baratear notavelmente o custo de seus produtos e incrementar seus lucros, mas pressionou decisivamente a baixa dos salários dos trabalhadores de todo o mundo, nos países imperialistas e nos países semicoloniais.
Era o início da globalização, que inaugurava uma nova divisão mundial do trabalho, integrando a China e sua enorme classe operária ao mercado mundial. O decálogo da globalização seria sacramentado em 1988 no conhecido Consenso de Washington, que unificou os organismos multilaterais imperialistas (FMI, Banco Mundial etc.), definindo as medidas do programa neoliberal: liberação do comércio e das travas para investimento estrangeiro, corte dos gastos públicos, garantia do superávit primário para assegurar o pagamento da dívida, privatizações generalizadas e desregulamentação do sistema financeiro.
Uma vez que a burocracia colocou em marcha os planos de restauração capitalista, sua ação mudou de natureza. Já não se tratava da continuidade da velha política contrarrevolucionária para cumprir os pactos com o imperialismo, mas sim de uma política diretamente a serviço de sua plena inserção no mercado mundial imperialista. Se a China já não era um Estado operário desde 1978, a invasão do Vietnã e o apoio militar à guerrilha contrarrevolucionária angolana já eram atos de um Estado burguês restauracionista. A partir de 1986, a atuação da burocracia russa nos “conflitos regionais” da “guerra fria” obedecia ao mesmo padrão. Um dos pilares do período aberto em 1943, o pacto contrarrevolucionário entre o imperialismo e a burocracia era substituído por um “novo pacto” de submissão, que afetou por completo os aparatos burocráticos que estavam encabeçando os principais enfrentamentos na América Latina, na África e na Ásia.
A contraofensiva liderada por Reagan e Thatcher, iniciada nos anos 1980, foi colhendo vitórias por pontos que, combinadas com o giro restauracionista da burocracia chinesa em 1978 (e, mais tarde, 1986, da russa), conseguiu vitórias importantes do imperialismo que mudaram a situação. Isso começou a inverter a curva descendente do final do boom, deu andamento a uma recuperação das taxas de lucro e preparou a decolagem dos anos 1990 (que incluiu a semicolonização – via União Europeia – dos países do Leste Europeu, onde o capitalismo tinha sido restaurado).
Nesse contexto subvalorizamos também a forte derrota da greve mineira britânica pelas mãos do governo de Margaret Thatcher. Essa derrota golpeava profundamente uma das classes operárias mais importantes da Europa e incidia com força no continente inteiro. Vinha, além disso, depois da grave derrota dos controladores aéreos, em 1981, nos EUA, no início do mandato de Reagan.
Ao não enxergar esse processo, víamos que mesmo os ataques de Reagan e Tatcher tinham um tempo curto de validade, diminuindo a devida importância ao fator chave da crise de direção revolucionária. Por outro lado, mesmo se a situação fosse revolucionária na América Latina, os resultados da luta sempre devem estar sujeitos a prognósticos alternativos, já que dependem, de maneira decisiva, da direção política das classes em luta. As Teses de 85 são unilaterais, Moreno morre em 1987 e o MAS elabora as Teses objetivistas de 90.
Nós da LIT só identificamos corretamente a restauração capitalista após alguns anos da explosão do MAS, precisamente em 95 (ver o livro Veredicto da História). O que significou um importante avanço na nossa elaboração.
Mas custamos em ver, além de outras questões ou limites importantes, todo efeito da mudança da divisão mundial do trabalho ocorrida no mundo e, o papel de exportador de commodities especialmente da América do Sul e como isso (junto com os sucessivos “ajustes neoliberais”) teria profundas consequências estruturais nos países, nas classes sociais, etc.
Recentemente, em 2023, também com atraso, chegamos à conclusão de que a China é uma potência imperialista emergente, assim como a Rússia, a segunda potência militar do planeta, é uma potência imperialista regional. E no Brasil, também com certo atraso, estamos construindo um programa de transição mais concreto para o país, a partir de atualizar os desafios da revolução permanente brasileira.
Pensamos que a FT/MRT estão mais atrasados do que nós em toda elaboração sobre o mundo de hoje, o que leva a erros graves, como, por exemplo, não defender uma mobilização democrática da juventude cubana (e LGBTI’s) contra uma ditadura capitalista, associada a diversos imperialismos (exceto o norte-americano).
Não somos arrogantes, nem consideramos que temos todas as respostas. Ao mesmo tempo, consideramos que a nossa direção, e também as demais direções de todas as demais organizações que vieram do morenismo, somos todos muito inferiores ao que foi Moreno em sua época. Somos passíveis de cometer muito mais erros e unilateralidades do que Moreno. Isso não quer dizer que nos conformemos com isso, pelo contrário. Mas nós levamos muito a sério que precisamos ser cada dia mais operários, mais marxistas e mais internacionalistas. E que, para isso, precisamos ter capacidade de encarar de frente nossos erros e lutar para corrigi-los.
Contudo, sinceramente, e com todo o respeito, não vemos que basta apontar, como faz a FT, que não estamos em uma etapa (ou o nome que queiramos dar), em que não vai haver “fevereiros que expropriam” e voltar à norma de Trotsky (o que todos já sabemos), para responder os desafios do nosso tempo. Não vivemos hoje nos anos 50 e 60. Mas também não vivemos nos anos 30 e 40. Defendemos a atualidade da Revolução Permanente, como Moreno também o fez. Mas, insistimos que esquemas, sejam objetivistas ou subjetivistas, como avaliamos serem as formulações do MRT/FT, não respondem à realidade, e à necessidade de forjar uma direção revolucionária e operária nos processos tais quais ocorrem hoje, formulando um verdadeiro programa de transição para a realidade tal qual ela é.
E pensamos que as respostas da FT e do MRT aos principais desafios postos hoje no mundo, especialmente às revoluções, são equivocadas. A ambição de Moreno de responder de forma revolucionária à realidade, buscando construir partidos revolucionários com influência e capacidade de incidência no movimento de massas é nossa ambição, e um desafio enorme.
3 – Nossas polêmicas sobre Palestina, Ucrânia, Revoluções Árabes e Brasil
Para a FT, ao contrário de Lênin e Trotsky, não se pode falar de revoluções se forças pequeno-burguesas ou até burguesas lideram a luta das massas, ou se forças imperialistas nelas intervém. Com esse critério não reconheceram as revoluções árabes e têm uma postura abstencionista nos processos revolucionários.
Lênin dizia: “Quem espere a revolução pura não a verá jamais. Será um revolucionário de palavra, que não compreende a verdadeira revolução”.
A FT trabalha com a concepção de revolução pura e se abstém de disputar os rumos das revoluções reais, dos processos revolucionários que podem ter inúmeros desfechos: serem aplastadas, derrotadas por pontos, obterem alguma vitória parcial ou incompleta, ou se tiverem uma direção revolucionária que seja capaz de acertar no processo e influenciar a maioria da vanguarda e das massas, pode ser vitoriosa.
A FT transforma a teoria da Revolução Permanente em um dogma normativo. Se o processo não corresponde ao “modelo clássico”, não é revolução.
A LIT-QI reconhece que cometeu um erro grave no Egito no decorrer do processo, do qual faz autocrítica. Mas isso não nega que houve uma revolução no Egito e também que Líbia, Síria, Tunísia, etc., viveram um processo revolucionário, e que era preciso estar com as massas na revolução para disputar a sua direção.
Por uma Palestina livre do rio ao mar
Consideramos erradas também as posições da FT e do MRT sobre a Palestina e sobre a guerra da Ucrânia. Em ambos processos a FT demonstra que tem enorme dificuldade em trabalhar com as questões democráticas. E na Palestina, especialmente, na nossa opinião, demonstra não entender a Teoria da Revolução Permanente e nem a metodologia do Programa de Transição.
A nossa polêmica, da LIT, com a FT sobre a Palestina é tomada muito bem nesse artigo de Victor Salay, do qual extraímos uma parte para esse nosso artigo.
Pensamos que, em abstrato, todos temos acordo em ser parte da Resistência Palestina e, unidos no seu campo militar, não implica em acordo e apoio político à direção do Hamas. Mas, isso não quer dizer, que qualquer crítica ao Hamas é válida.
Um aspecto que a FT critica duramente é a tomada de prisioneiros de guerra (mal chamados reféns) pelos milicianos palestinos. Mas a crise política em Israel, provocada pelos familiares dos prisioneiros demonstra a utilidade política desse método.
Os companheiros argumentam que um dos grandes motivos dessa sua crítica aos “métodos do Hamas” é porque considera estes um grande obstáculo para a confraternização entre os palestinos e a classe trabalhadora israelense. E, apesar de reconhecerem que a classe trabalhadora israelense é majoritariamente sionista, e que joga um papel fundamental na colonização e no regime de apartheid, em apoio à limpeza étnica, dizem que a confraternização entre os palestinos e os trabalhadores e a juventude israelense é “a única possibilidade de emancipação para ambos povos”.
O problema dessa tese da FT é que o sionismo é, sobretudo, um Estado colonial e terrorista criado sobre o roubo das terras dos palestinos e da sua limpeza étnica, um Estado com um sistema de apartheid. A maioria dos israelenses, incluindo seus trabalhadores, é uma população que veio do exterior e que vive sobre uma terra roubada. O Estado de Israel é um enclave militar dos EUA em uma região estratégica do mundo.
Uma Palestina laica, democrática e não racista, do rio ao mar, só pode ter lugar sobre a destruição do Estado de Israel (uma formulação necessária que não vemos nos textos da FT), como diz Peter Salay. Isto significa que só haverá uma minoria de judeus não sionistas que aceitarão conviver em paz e igualdade de direitos com os palestinos, em uma Palestina laica, democrática e não racista.
A vitória sobre o Estado de Israel virá da luta do povo palestino, incluída a luta armada, da solidariedade ativa dos povos dos países árabes e islâmicos da região (que deverão se enfrentar com suas covardes burguesias) e da solidariedade dos trabalhadores e da juventude do resto do mundo. Por suposto, a colaboração de uma pequena minoria israelense anti-sionista será sem dúvida relevante, mas defender que a confraternização é “a única possibilidade de emancipação de ambos povos” é um erro grave.
Tão ou mais grave é o rechaço da FT em defender a consigna “Palestina laica, democrática e não racista, do rio ao mar”. A FT não se sente cômoda com esta palavra de ordem histórica e central do trotskismo ante o conflito palestino e a substituiu por uma “Palestina Operária e Socialista”.
Os companheiros da FT pensam que defender a palavra de ordem “Palestina laica, democrática e não racista, do rio ao mar” equivale a defender uma “etapa democrática” e renunciar ao caráter socialista da revolução palestina. Mas se equivocam totalmente, porque essa palavra de ordem na atualidade é a principal palavra de ordem do programa para a revolução socialista na Palestina e em toda a região.
Ao invés de integrar esta palavra de ordem em um programa de transição, de combiná-la com demandas econômicas e sociais, transitórias e socialistas, e de dar uma dimensão regional e internacional à revolução palestina (que culmina na luta por uma federação socialista do Oriente Médio e Norte da África), a FT a substitui por uma “Palestina operária e socialista”. Isso representa um ultimato sectário que impede construir a unidade e a luta das massas palestinas, da região e a unidade destas com as massas pró-palestinas de todo o mundo e, também, com a pequena e valente minoria judaica israelense antissionista. Equivale a lhes impor como condição que estejam de acordo com uma Palestina operária e socialista, em lugar de dar passos juntos e conduzi-las pelo caminho da revolução socialista a partir da luta comum por uma Palestina democrática, laica e não racista, do rio ao mar. Na verdade, essa posição da FT reflete uma profunda incompreensão do que significa a revolução permanente, e se choca com a metodologia do Programa de Transição.
Trotsky diz no Programa de Transição que nos “países atrasados” temos que “combinar a luta pelas tarefas mais elementares da independência nacional e da democracia burguesa com a luta socialista contra o imperialismo mundial”. E agrega “as demandas democráticas, transitórias e as tarefas da revolução socialista não estão separadas em épocas históricas distintas, e sim surgem imediatamente umas das outras”.
Esta mesma metodologia aplicou Trotsky na Espanha em princípios dos anos 30, em plena luta contra a monarquia, quando escrevia aos trotskistas espanhóis chamando-os a pôr-se à frente da luta pelas reivindicações democráticas: “Não compreender isto seria cometer a maior falta sectária. Colocando à frente as consignas democráticas, o proletariado não quer com isso dizer que Espanha vai para a revolução burguesa. Só poderiam colocar assim a questão frios pedantes recheados de fórmulas rotineiras”.
Ucrânia
Ninguém pode negar a intervenção dos EUA e da UE na guerra da Ucrânia, assim como o caráter pró-imperialista e anti-operário de Zelensky. Mas o problema é que isso não elimina o fato de que estamos perante uma guerra de agressão nacional da segunda potência militar do mundo contra uma nação semicolonial à qual quer submeter pela violência. Uma guerra, cujo objetivo é o controle militar, econômico e político de um país, que tem recursos, os quais Putin considera essenciais para seu projeto imperialista de Grande Rússia, inspirado no antigo império Czarista. Estamos perante uma guerra justa de libertação nacional contra um imperialismo regional e seu exército invasor.
Os revolucionários devem, portanto, estar incondicionalmente no campo militar da Ucrânia e lutar pela vitória militar da nação oprimida e invadida, sem que isto implique nenhum tipo de apoio político a Zelensky, nem à Otan. Pelo contrário, é preciso denunciar seus planos e manobras e trabalhar pela organização independente do proletariado ucraniano frente à Zelensky, à Otan, à UE e ao FMI.
Mas esse enfrentamento político com Zelensky, e pela independência política e organizativa do proletariado ucraniano, devemos fazer, sendo no campo militar, “os melhores soldados contra Putin”. Não é possível desmascarar a Otan, nem Zelensky fora das trincheiras ucranianas, ou com uma postura de “nem-nem”.
A FT denuncia a guerra da Ucrânia como uma guerra reacionária desde o início, como uma guerra interimperialista (ou uma “guerra por procuração” dos EUA e da UE/Otan contra a Rússia de Putin), como se não existisse uma guerra justa de libertação nacional. Ao ponto de se colocar contrária à entrega de armas à Ucrânia. Fez, inclusive, campanha de agitação na Europa em defesa de “nenhum tanque para Ucrânia”. São coisas muito diferentes o envio de tropas imperialistas, o que todo mundo deve se opor frontalmente, e envio de armas para os combatentes de uma guerra justa. Putin deve ter ficado agradecido com a campanha da FT.
Nem a UE, nem os EUA entregaram as armas necessárias à defesa da Ucrânia. Isso fica ainda mais nítido agora, com a intervenção de Trump e dos EUA em favor de Putin e de uma “paz com anexações”. Para aprofundar sobre essa questão, indicamos este artigo.
Brasil 2016: não teve golpe
O MRT reproduz a narrativa do PT de que ocorreu um “golpe” no Brasil em 2016, quando Dilma Rousseff sofreu impeachment (um mecanismo do regime democrático burguês para mudar governos e impedir maior crise do regime).
O MRT soma-se ao PT e ao PSOL e calunia o PSTU como apoiador de um golpe no Brasil. O que o MRT não faz é explicar a realidade do Brasil em sua totalidade. Omitindo partes centrais da história, ajuda a livrar a cara do PT que governou por 14 anos ininterruptos o país, nos marcos do Consenso de Washington.
O que o MRT omite na sua narrativa e na sua análise? Primeiro que a classe operária e a classe trabalhadora se voltaram de vez contra Dilma porque o seu governo promoveu um verdadeiro estelionato eleitoral. Depois de prometer, na campanha eleitoral de 2014, que não retiraria direitos “nem que a vaca tussa”, nomeou um ministro banqueiro para aplicar o projeto neoliberal que a burguesia exigia, retirando direitos trabalhistas (isso se somou às denúncias de corrupção). A classe operária, especialmente do Sul e do Sudeste, se virou em mais de 80% contra o governo, assim como o grosso da classe trabalhadora. O governo Dilma se tornou um dos governos mais impopulares da história do país, caindo para apenas 6% de popularidade. Os setores médios saíram às ruas em 2015 sob direção dos liberais contra Dilma (ainda que não pela pauta dos liberais; a maioria era contra as privatizações e a favor dos serviços públicos). A direita bolsonarista, com 1,5% de apoio e muito minoritária entrou também nas manifestações (o que tinha feito de outra forma também em 2013).
A maioria da burguesia que, de início, era contra o impeachment, se deslocou majoritariamente em favor do impeachment, para colocar no lugar de Dilma, seu vice, do MDB, Michel Temer, na medida em que Dilma perdeu a capacidade de seguir aplicando todo o receituário que ela queria. O PSTU foi contra o impeachment, porque significaria tirar um governo de colaboração de classes para colocar um democrático burguês pela ação do parlamento e disse isso aos trabalhadores; mas concordamos com os trabalhadores que esse governo era muito ruim e que precisaríamos nos mobilizar para tirar todos eles, incluindo o vice e permitir, no mínimo, novas eleições.
Temer (MDB), o vice da Dilma (PT), diga-se de passagem, não foi evidentemente escolhido pelo PSTU, mas pelo PT. E como diz o ditado popular, “Jabuti não sobe em árvore, se algum estiver em cima de uma é porque alguém o colocou lá”.
O impeachment e as manobras parlamentares e mesmo a luta judicial estão dentro das regras do regime democrático burguês. Tanto não teve golpe algum, que fica difícil ao MRT explicar como após um golpe (brando?) a correlação de forças, ao invés de retroceder avança? Como o MRT explica a maior Greve Geral do Brasil em 2017, após a grande derrota imposta por “um golpe”? Acontece que o MRT usa a mesma narrativa do PT de que Bolsonaro é produto do “golpe de 2016”.
Mas, na verdade, Bolsonaro, se do ponto de vista histórico é produto de mais de 20 anos de governos do PSDB e do PT e da decepção com o PT, do ponto de vista específico da conjuntura, é produto direto da não continuidade da Greve Geral de 2017, por responsabilidade da burocracia sindical e especialmente da CUT e do PT.
Essa narrativa de que impeachment é golpe, e de debitar essencialmente a um movimento reacionário a crise do governo Dilma, além de tudo o mais, não ajuda a armar corretamente a vanguarda e a classe trabalhadora, para quando aparece na realidade um verdadeiro projeto golpista e uma tentativa verdadeira de golpe, como foi a tentativa bolsonarista de 8 J.
Mais impressionante ainda é que não consiga explicar porque o PT se dá tão bem com tantos supostos “golpistas”, como Renan Calheiros (MDB) ou Geraldo Alckmin, atual vice de Lula (ex PSDB, hoje PSB) e tantos outros, que hoje compõem o seu governo.
4 – Porque somos Morenistas
Ser morenista não significa repetir fórmulas prontas nem negar erros eventualmente cometidos. Significa reivindicar um método antidogmático profundamente enraizado no marxismo revolucionário, que parte da realidade viva da luta de classes para formular o programa e a política. Essa herança é o oposto do formalismo que caracteriza a FT.
A FT diz que supera Moreno dialeticamente, porque reivindica duas de suas obras, A Ditadura Revolucionária do Proletariado e A Traição da OCI (publicada no Brasil pela editora Sundermann com o nome “Os governos de Frente Popular na História”).
São dois grandes livros, mas não são as únicas elaborações de Nahuel Moreno que nós reivindicamos. Moreno foi, do nosso ponto de vista, o trotskista do pós-Guerra que não cedeu ao revisionismo e que melhor respondeu à realidade do seu tempo.
Achamos que prescindir das “4 teses sobre a colonização espanhola e portuguesa da América”, por exemplo, implica em um déficit muito importante para compreender a América Latina. Deixar de lado o “Morenaço”, editado no Brasil com o título “O Partido e a Revolução” é prescindir de conhecer e estudar não apenas uma análise marxista de inúmeros países da América Latina nos anos 70 e toda polêmica com o Mandelismo sobre a sua capitulação ao guerrilheirismo, mas, especialmente, deixar de ter acesso à uma aula sobre política e sobre a metodologia do programa de transição. Uma visão dialética em que as tarefas mínimas, democráticas e transitórias não cumprem tal papel em si mesmas, independente das circunstâncias, e sim que “tarefas mínimas podem cumprir papel transitório e tarefas transitórias podem ter papel mínimo”, a depender da luta de classes. Neste livro, Moreno também comete alguns erros. Ao envergar a vara na polêmica política (o livro é um documento de Congresso) dá uma ênfase equivocada às palavras de ordem para a ação e apresenta uma visão limitada do papel da teoria e da propaganda. Mas, esses erros não inviabilizam o livro e são corrigidos em A Traição da OCI (publicada no Brasil no livro “Os governos de Frente Popular na História” pela Editora Sundermann). Ambos os livros juntos são uma importante aula sobre a metodologia do programa de transição e sobre como fazer política.
As escolas de Moreno, ou livros como Revolução e Contra Revolução em Portugal, confirmam um trabalho para nada esquemático, em que a revolução permanente é aplicada em processos revolucionários não como um dogma. Preocupado em intervir na realidade e construir partidos revolucionários com capacidade de incidência no curso dos acontecimentos e da história. E também em construir uma Internacional revolucionária, justamente porque a revolução permanente bate de frente com a teoria stalinista do socialismo em um só país.
Moreno não era para nada alguém que achava ter uma receita ou um esquema no qual enfiar a realidade dentro. Não operava com um esquema objetivista, nem subjetivista. Antes de mais nada, Moreno, com erros e acertos, buscou sempre entender e intervir concretamente nas revoluções reais.
Para procurar estar à altura do nosso tempo, da mesma forma como devemos voltar a Marx, Lênin e Trotsky, devemos aprender também de Moreno.
Mesmo os que nos consideramos morenistas, e devemos a ele o tributo da nossa existência, estamos muito longe de superar a sua capacidade para responder ao mundo de hoje, como ele, com acertos e erros, respondeu ao seu tempo.
Mas reivindicando Moreno e sendo morenistas, não deixaremos de criticar ou atualizar Moreno, pois ele também faria isso.
E, sim, procurando não cair num esquema subjetivista reverso, é preciso afastar os traços de objetivismo que, repetimos, não marcam a totalidade da obra de Moreno e nem a sua atuação.
O desafio que temos diante de nós é o mesmo que orientou a vida de Moreno: construir partidos revolucionários enraizados na classe, capazes de intervir nas revoluções reais e de disputar a sua direção até o final.