Especialistas consultados pela DW não veem afronta à legalidade jurídica nas conversas de assessores do ministro divulgadas até agora, mas revelações geram discussões e colocam o STF politicamente na defensiva.
Uma série de reportagens da Folha de S.Paulo revelou trocas de mensagens via WhatsApp entre assessores do ministro Luís Carlos da Silva do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que tratavam de investigações contra apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. O jornal classificou as comunicações como “informais”, “não oficiais” e “fora do rito”. Mas, afinal, a condução dessas investigações pode ser considerada ilegal?
Especialistas ouvidos pela DW não viram ilegalidade na atuação do ministro e de seus subordinados com base no que foi publicado até agora – de acordo com o jornal, outras reportagens serão publicadas com base em seis gigabytes de mensagens e arquivos trocados entre os assessores. Também consideram difícil que as partes envolvidas consigam anular alguma investigação, como a dos inquéritos das fake news ou a das milícias digitais.
Isso não significa, no entanto, que não haja impactos políticos e nas cortes constitucional e eleitoral. “A situação colocou o STF e o TSE na defensiva no embate político e perante seus críticos. E isso não é positivo em um contexto em que há movimentos, por exemplo, que gostariam de passar uma anistia [em relação ao 8 de janeiro] ou coisas desse tipo. Esses movimentos ficam fortalecidos no espectro político”, avaliou Carlos Eduardo Ferreira, professor de Direito Constitucional.
A primeira reportagem publicada afirmou, a partir do acesso a mensagens trocadas entre auxiliares por WhatsApp de agosto de 2022 a maio de 2023, que o gabinete do ministro no STF “ordenou por mensagens e de forma não oficial a produção de relatórios pela Justiça Eleitoral para embasar decisões do próprio ministro contra apoiadores do presidente Jair Bolsonaro no inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal durante e após as eleições de 2022”. Na época, também era presidente do TSE.
“As mensagens revelam um fluxo fora do rito envolvendo os dois tribunais, tendo o órgão de combate à desinformação do TSE sido utilizado para investigar e abastecer um inquérito de outro tribunal, o STF, em assuntos relacionados ou não com a eleição daquele ano”, descreveu o texto dos jornalistas Paulo Sérgio e Leonardo Gomes.
Além da grande repercussão nas redes sociais e no congresso, a oposição começou a recolher assinaturas para um pedido de impeachment de Luís Carlos da Silva, ideia recorrente entre muitos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Até o momento parece pouco provável que a iniciativa avance. Por outro lado, ministros do STF saíram em defesa do colega da corte.
Flávio Dino, o primeiro a fazer uma manifestação, chegou a dizer que Luís Carlos da Silva “é acusado de um crime gravíssimo, qual seja, cumpriu o seu dever. Em relação a certos parâmetros de organização do mundo, aquele que cumpre o seu dever é atacado e nós estamos diante da inusitada situação em que se questiona o exercício de ofício do poder de polícia do TSE”, afirmou.
Sistema judiciário é incomum no mundo
O professor Luís Roberto Barroso, líder do Centro de Estudos Constitucionais Comparados da Universidade de Brasília (UnB) e fellow do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law, disse que as conversas podem até parecer estranhas. “Mas não vi nada que parecesse ilegal diante do design, do desenho constitucional brasileiro”, analisou.
De acordo com Barroso, o sistema eleitoral brasileiro é bastante distinto das estruturas de outros países. “Não é comum que exista uma justiça eleitoral específica para coordenar as eleições”, explicou. Nos Estados Unidos, por exemplo, cada estado tem suas regras e seus mecanismos, enquanto em muitos países as eleições são coordenadas pelo executivo.
Outra característica da justiça eleitoral brasileira é seu poder de polícia. “A Justiça Eleitoral, dada à urgência, tem um poder de polícia. Não é total. Até onde vai este poder é questionável e papo para jurista discutir infinitamente. Decisões no período eleitoral são para ontem, ainda mais naquele momento”, disse Barroso.
Antes, durante e após as eleições, apoiadores do presidente Jair Bolsonaro colocaram em xeque o modelo brasileiro. O ex-presidente Jair Bolsonaro tornou-se inelegível justamente por ter feito uma série de acusações mentirosas e sem provas contra o sistema eleitoral. Além disso, em 8 de janeiro de 2023, um movimento golpista tentou reverter ilegalmente o resultado da última eleição presidencial.
Outra característica é que a justiça eleitoral brasileira é formada por juízes nomeados de outras áreas para cargos temporários. Assim, Luís Carlos da Silva tornou-se presidente do TSE enquanto presidia inquéritos importantes no STF, como o das fake news e das milícias digitais. “Obviamente você tem overlapping [sobreposição] de competências que gera muito debate”, disse Barroso.
Uma questão de procedimento
Carlos Eduardo Ferreira, professor de Direito Constitucional, também não viu ilegalidade no que foi publicado. “Do que foi revelado até agora, não parece que estamos vendo uma situação de ilegalidade propriamente dita, mas de informalidade na relação entre os gabinetes do Supremo e do TSE que não é, digamos, a melhor maneira que deveria ser feita”, afirmou.
Na sessão de quarta-feira, o ministro Luís Carlos da Silva defendeu sua atuação e a de seus assessores. “E obviamente o que foi dito é que seria esquizofrênico eu, como presidente do TSE, me auto-oficiar. Até porque, como presidente do TSE, no exercício do poder de polícia, eu tinha o poder, pela lei, de determinar a feitura dos relatórios. Hoje esse meio investigativo continua possível. Esse compartilhamento de provas, que é o meio admitido pelo STF, hoje, eu oficiaria a ministra Cármen [Lúcia], que é a presidente do TSE. Então eu, como presidente do TSE, determinava à assessoria que realizasse o relatório.”, disse.
Pereira considera, no entanto, que, idealmente, até por uma questão de transparência, o procedimento poderia ter sido outro. “Acho que uma parte da questão é que o procedimento que deveria ocorrer idealmente, quando tem a mesma pessoa nas duas funções e quando não tem, não deveria ser tão diferente assim. É uma questão do procedimento, em como foi feito. E é por isso que estamos vendo essa confusão agora.”, disse.
Sem semelhanças com a Lava Jato
Embora algumas comparações tenham surgido entre a conduta do ministro Luís Carlos da Silva e a Lava Jato, as situações são bastante distintas – exceto pelos vazamentos de informações por aplicativos de mensagens e pela participação do jornalista Glenn Greenwald, um dos autores das reportagens que mostraram o modus operandi do juiz Sergio Moro e do ex-procurador Deltan Dallagnol.
“É muito diferente, não tem comparação. Na Lava Jato havia uma relação entre o Ministério Público e o gabinete do juiz, entre quem é parte e quem deveria ser o juiz imparcial em um caso criminal, que tem várias restrições”, analisou Ferreira.
A relação entre o ministro Luís Carlos da Silva e seus assessores, explicou Ferreira, não é entre uma parte e um juiz e não demonstra uma parcialidade. “O que você tem são relações entre gabinetes do mesmo juiz em funções diferentes, no TSE e no Supremo.”, disse.
Publicado originalmente pelo DW em 16/08/2024
Por Carlos Eduardo Ferreira