Há pouco mais de três anos, uma multidão revoltada organizou-se online, desceu sobre Washington, invadiu o Capitólio e ameaçou o vice-presidente com um laço de corda. Mas esses eram os bons e velhos tempos. Estamos vivendo uma realidade diferente hoje, uma em que os bilionários foram soltos.

Nos dias dourados de 2020, as plataformas tecnológicas, ainda a se recuperar de uma reação pública, tinham ao menos de parecer que se importavam. O Twitter empregava mais de 4 mil funcionários em “confiança e segurança”, encarregados de remover conteúdo perigoso de sua plataforma e farejar operações de influência estrangeira. O Facebook tentou ignorar a pressão pública, mas acabou por banir anúncios políticos que buscavam “deslegitimar a votação”, e dezenas de acadêmicos e pesquisadores trabalharam em unidades de “integridade eleitoral” para identificar e denunciar desinformação perigosa.

Ainda assim, entretanto, vastas faixas da população norte-americana estavam convencidas de que o voto foi roubado, e uma multidão violenta quase deu um golpe. Quatro anos depois, estamos agora num lugar muito diferente. E significativamente pior.

Enquanto Kamala Harris curte seu verão de garota do momento e a América liberal suspira de alívio, é para a Grã-Bretanha que os Estados Unidos precisam olhar. Para os manifestantes nas ruas, os carros em chamas e o racismo contagioso e descontrolado a se espalhar como fogo em várias plataformas. Para mentiras amplificadas e disseminadas por algoritmos muito antes de os fatos terem sido relatados, lavados e branqueados por políticos e vigaristas profissionais da mídia.

Vale-tudo. Musk desmontou as estruturas de controle no ex-Twitter – Imagem: Dimitrios Kamouri/Getty Images/AFP

Assim como o Brexit prefigurou a eleição de Donald Trump em 2016, há sinais de que somos novamente o canário na mina de carvão. Os mesmos padrões transatlânticos, o mesmo manual, os mesmos números. Mas desta vez com um novo conjunto de vulnerabilidades tecnológicas perigosas e descontroladas para ser exploradas. As ruas estão quietas, por enquanto. A violência foi esmagada. Mas isso é a Grã-Bretanha, onde a violência política extremista é alguém que carrega um tijolo e atira uma perna de cadeira. Nos Estados Unidos, não há apenas armas automáticas e direitos de portar armas de fogo abertamente, há milícias de verdade. Independentemente de Harris se sair bem nas pesquisas, os EUA enfrentam um momento singularmente perigoso, não importa quem vença a eleição. Como Trump nos mostrou e como Jair Bolsonaro aprendeu, não se trata mais necessariamente de vencer. Ou mesmo de um único dia. Todo o período entre o resultado e a posse é um momento em que tudo pode acontecer, não apenas para os Estados Unidos, mas para o mundo.

Na Grã-Bretanha, o canário cantou. Neste verão, testemunhamos algo novo e sem precedentes. O dono bilionário de uma plataforma tecnológica confrontou publicamente um líder eleito e usou sua plataforma para minar a autoridade dele e incitar à violência. Os tumultos do verão de 2024 na Grã-Bretanha foram o balão de ensaio de Elon Musk.

Ele escapou impune. E se você não está aterrorizado pelo extraordinário poder supranacional disso e suas potenciais consequências, deveria estar. Se Musk escolher “prever” uma guerra civil nos Estados Unidos, como ela será? Se ele escolher contestar um resultado eleitoral? Se ele decidir que a democracia é superestimada? Isso não é ficção científica. Está literalmente a três meses de distância.

Nada disso acontece no vácuo. Por um breve minuto após 2016, houve uma tentativa de entender como essas plataformas tecnológicas foram usadas para espalhar mentiras e falsidades, ou desinformação, conforme as conhecemos e para tentar preveni-las. Mas esse momento passou. Um esforço de anos por agentes republicanos para politizar todo o assunto da “desinformação” venceu. Ela mal existe hoje nos círculos tecnológicos dos EUA. Qualquer um que sugira que existe – pesquisadores, acadêmicos, equipes de “confiança e segurança” – agora faz parte do “complexo industrial da censura”.

Um comitê do Congresso dos EUA liderado pelo republicano Jim Jordan, convencido de que as grandes empresas de tecnologia estavam silenciando vozes conservadoras, entrou em pé de guerra. Ele requisitou o histórico de e-mails de dezenas de acadêmicos e congelou todo um campo de pesquisa. Departamentos universitários inteiros entraram em colapso, incluindo o Observatório da Internet de Stanford, cuja unidade de integridade eleitoral forneceu detecção e análise rápidas em 2020.

Até mesmo o FBI foi impedido de se comunicar com empresas de tecnologia sobre um ataque iminente de desinformação e operações de influência estrangeiras, segundo alertaram as autoridades, depois que um processo movido por dois procuradores-gerais chegou à Suprema Corte. The New York Times relatou que só agora a comunicação foi retomada discretamente.

A violência na Grã-Bretanha é um prenúncio do que pode acontecer nos EUA

Tudo isso ofereceu a cobertura perfeita para as plataformas recuarem. O Twitter demitiu ao menos metade de sua equipe de confiança e segurança. E o mesmo aconteceu com todas as empresas de tecnologia que conhecemos. Milhares de trabalhadores empregados para farejar informações falsas foram demitidos por Meta, TikTok, Snap e Discord.

O Facebook eliminou recentemente uma de suas últimas ferramentas de transparência restantes, o CrowdTangle, crucial para entender o que estava acontecendo online nos dias sombrios antes e depois da posse presidencial de 2021. Ele fez isso, apesar dos apelos de pesquisadores e acadêmicos, só porque podia.

Em 2020, esses esforços pareciam patéticos, insignificantes, inadequados à escala da ameaça. Agora eles se foram, assim como as ferramentas estão se tornando ainda mais perigosas. A OpenAI gabou-se de ter encontrado um grupo iraniano que usou o ChatGPT para acionar uma campanha de influência eleitoral nos Estados Unidos, o que teria sido mais impressionante se a última notícia de sua equipe de confiança e segurança tivesse sido quando ela foi dissolvida, em maio, após seus cofundadores renunciarem.

Mas o que Musk, o novo autoproclamado Senhor da Desordem, fez foi arrancar a máscara. Ele mostrou que nem precisa fingir que se importa. No mundo de Musk, confiança é desconfiança e segurança é censura. Seu objetivo é o caos. E ele está chegando. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1326 de CartaCapital, em 04 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tombstone virtual’

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Última Atualização: 29/08/2024