Monroe x Sun Tzu
por Túlio Muniz
Um acerto de contas, tardio mas necessário, entre o ‘Ocidente’ e o ‘Oriente’, parece ser o que ocorre nas últimas semanas com a guerra econômica deflagrada por Donald Trump com um alvo evidente, a China. A começar da conceituação de polos supostamente opostos, e que agora exigem novas compreensões.
Edward Said já á advertia desde o título de sua obra prima: Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. O “Oriente” de Said foca no que conhecemos por Oriente Médio e Norte da África, mas também nos serve de instrumental valioso para se compreender o que os EUA intentam contra a China neste momento, reificando a imagem do ‘oriental’ enquanto ‘inimigo real’ da (des)ordem neo-liberal.
Ocorre que falta, a Trump e a seu staff, sustentação teórico-histórica para imposição de uma nova era econômica, sobretudo por implodir o que até aqui se concebeu como Ocidente, tendo os EUA como carro chefe de uma Europa a reboque, e ora atordoada.
Escapa-lhes o que Otávio Ianni chamou de orientalização do Ocidente, dada as influências e consequências da industrialização da China e reindustrialização do Japão no pós-Segunda Guerra, que alterou não só o fornecimento de mercadorias, mas também as relações de trabalho, capital e comportamentos (vide o crescente consumo de mangá por jovens brasileiros) no tal Ocidente no contexto da tal globalização
A globalização aconteceu, por mais “problemática, fragmentária e contraditória”, segundo Ianni, que foi dos mais importantes intelectuais brasileiros a se debruçar sobre o tema, e estabeleceu contatos multipolares irreversíveis e imprevistos, ainda em curso. É o que possibilita, por exemplo, a recente aproximação econômica entre China, Japão e Coreia do Sul, que vão de encontro à estratégia incerta e isolacionista de Trump.
O anacronismo de Trump se explícita nas afirmações de seu o secretário de Defesa, Pete Hegseth: “‘O governo Obama tirou os olhos do alvo e permitiu que a China se infiltrasse em toda a América do Sul e Central com sua influência econômica e cultural. O presidente Trump disse: ‘Isso não vai mais acontecer, estamos retomando o nosso quintal’ (…) O conceito é de 1823, dois séculos atrás, quando a Doutrina Monroe foi criada nos Estados Unidos, em uma missão de expandir os territórios e tomar o controle dos países do Caribe.” ( ver https://jornalggn.com.br/internacional/trump-retrocede-200-anos-ao-chamar-america-latina-de-quintal/).
A Doutrina Monroe (de James Monroe, presidente entre 1817-1825) traz em seu cerne os primórdios do imperialismo dos EUA, que se estenderá pelos séculos XX e XXI, em domínio territorial, financista e principalmente bélico (é o país que mais tem bases militares fora de seu próprio território: quase 800 bases em 80 países, cf Sputnik Brasil, em https://noticiabrasil.net.br/20231127/onde-os-eua-tem-bases-militares-31703188.html).

Entretanto, se há excesso de argumento militar e econômico, falta sustentação histórica aos EUA, o que a China tem em abundância.
É consenso de que a China atual não se fez da noite para o dia, tampouco seu escopo político e econômico advém somente a partir da Revolução Chinesa (1949) e do salto de industrialização dos anos de 1970 (paradoxalmente, a partir da aproximação diplomática com os EUA, com Nixon visitando Pequim em 1972) e com a mudança de rumo decretada pelo slogan “Enriquecer é glorioso”, de Deng Xiaoping, que rompe de vez com qualquer obscurantismo que advinha da Revolução Cultural sob Mao Tse Tung.
A China de hoje tem, pelo menos, 2.500 anos. O sistema de partido único no controle da política e da economia tem viés marxista, mas também influência da filosofia de Confúcio (551 a.c. – 479 a.c), nos seu princípios de ‘humanidade compartilhada e benevolência’ (conforme Calebe Guerra, em “Confúncio e a nossa vida”, Café Filosofico, 2023, https://www.youtube.com/watch?v=XTKGWfVwYms&t=46s), e do contemporâneo do filósofo, o general, Sun Tzu (544 a.C. – 496 a.C.) e em sua obra A Arte da Guerra (CulturaBrasil, 2010, dowload gratuito em https://www.baixelivros.com.br/download-gratuito).
A compilação de algumas frases de Sun Tzu demonstram que Trump nunca o leu, e não tem consciência exata da enrascada na qual se meteu:
-“A Glória Suprema é quebrar a resistência do inimigo sem lutar”.
-“Diante de uma larga frente de batalha, procure o ponto mais fraco e, ali, ataque com a sua maior força”.
-“A vitória está reservada para aqueles que estão dispostos a pagar o preço”.
-“Comandar muitos é o mesmo que comandar poucos. Tudo é uma questão de organização”.
-“Triunfam aqueles que:
Sabem quando lutar e quando esperar.
Sabem discernir quando utilizar muitas ou poucas tropas. Possuem tropas cujas categorias tem o mesmo objetivo.
Enfrentam com preparativos os inimigos desprevenidos.
Tem generais competentes e não limitados por seus governos civis. ”
-“As considerações da pessoa inteligente sempre incluem o analisar objetivamente o benefício e o prejuízo”.
-“Cansa os inimigos mantendo-os ocupados e não deixando-lhes respirar. Porém antes lográ-lo, tens que realizar previamente teu próprio labor. Esse trabalho consiste em desenvolver um exército forte, um povo próspero, uma sociedade harmoniosa e uma maneira ordenada de viver”.
– “Se fores capaz de ver o sutil e de perceberes o oculto, irrompendo antes da ordem de batalha, a vitória assim obtida é uma vitória fácil”.
Trump não se baseia em nenhuma referência histórica, social e econômica relevante e consistente. Tem um Governo cujos equivalentes aos Ministérios da Saúde e da Educação negam a Ciência em geral (Humanas, Biomédicas etc), e papagueia o que lhe sopram gente como Steve Bannon e Elon Musk, ora notórios neo-facistas em gestos e ações.
No Ceará temos a certeira expressão popular para definir a influência dos assessores sobre Trump: ele vem sendo ‘emprenhado pelos ouvidos’ por aqueles.
Não fosse um analfabeto político, Trump teria lido e compreendido Sun Tzu: “Se não conheces aos demais nem te conheces a ti mesmo, correrás perigo em cada batalha”. Seria demasiado esperar que ele lesse Eric Hobsbawm e o seu livro Era dos Extremos. Em trecho no qual aborda a Guerra Fria, Hobsbawm afirmou que “de 1949 em diante a China esteve sob um governo que (…)se dispunha de fato a enfrentar um holocausto nuclear e sobreviver”.
Num encontro entre Mao Tse Tung e seu homólogo italiano, ao tratarem de uma eventual guerra nuclear, o chinês, conforme Hobsbawm, “declarou ao líder italiano Palmiro Togliatti: ‘Quem lhe disse que a Itália deve sobreviver? Restarão 3 milhões de chineses, e isso será bastante para a raça humana continuar’” (Era dos Extremos, pg. 226).
O pragmatismo de Mao permanece firme na diplomacia chinesa. Na esteira da ofensiva de Trump, Han Zheng, vice-presidente chinês, declarou recentemente: “A China está aqui há 5.000 anos, na maior parte do tempo não havia EUA, e nós sobrevivemos. Se os EUA querem intimidar a China, nós vamos lidar com essa situação sem os EUA e nós esperamos sobreviver por mais 5 mil anos”.
Nesse embate Monroe X Sun Tzu, dificilmente Trump prevalecerá.
TÚLIO MUNIZ, professor na Universidade Federal Rural do Semi Árido (UFERSA), Historiador (Graduação e Mestrado pela UFC), Doutor na Área de Sociologia (Universidade de Coimbra) e Jornalista Profissional.
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