Foto: Agatha Azevedo

Por Luiz Carlos de Freitas e Roseli Salete Caldart
Da Página do MST

Os historiadores russos fazem referência ao período de 1917 a 1931 como sendo o período dos “pioneiros da educação” na história da revolução socialista soviética. Foi uma época de intensa criatividade e experimentação destinada a fundamentar as bases de uma escola voltada para a formação da juventude que deveria enfrentar a tarefa de construir o socialismo. O legado político-pedagógico desse período passou a compor a história da educação mundial pensada e realizada pela classe trabalhadora com finalidades sociais e humanas emancipatórias.

O trabalho iniciado por esses “pioneiros” transcorreu em uma situação difícil, pois logo após a eclosão revolucionária de 1917, seguiu-se uma guerra civil que durou os quatro anos seguintes. A Rússia era um país agrário que em 1900 tinha 132 milhões de habitantes, sendo que apenas um quinto das crianças estudava e a proporção de adultos com ensino primário era de 61 em 1.000. No campo, apenas 8 a cada 1.000 habitantes tinham essa escolarização.

A revolução instituiu o Comissariado Nacional da Educação com a tarefa de reconstituir o sistema educacional russo e toda a vida cultural do país, tendo na coordenação Anatoli Lunatchárski, um dirigente político bolchevique muito ligado às questões da educação e da cultura. Entre o grupo de pioneiros que conduziram na prática essa tarefa de reconstrução estavam Nadezhda Krupskaya, Moisey Pistrak e Viktor Shulgin e os coletivos de educadores militantes dos quais tomavam parte.

Esse Comissariado (equivalente a um “Ministério da Educação”) incentivou a organização de diversos experimentos de escolas que atendessem aos objetivos de formação de lutadores e construtores necessários às transformações revolucionárias em curso e que precisavam ter o povo como protagonista. Entre as escolas experimentais desse período teve especial destaque a escola organizada pelo próprio Comissariado Nacional de Educação, a Escola-Comuna Lepeshinskiy, que também ficou conhecida como a Escola-Comuna do Narkompros – sigla do Comissariado Nacional da Educação em russo.

Moisey Mikhailovich Pistrak, a quem aqui se homenageia por ocasião do seu aniversário de nascimento, coordenou essa Escola-Comuna por cinco anos, junto com um grupo entusiasta de educadores que passamos a conhecer pelos registros que eles próprios fizeram de suas práticas. Especialmente o livro organizado por Pistrak em 1924, nos ajuda a entender o passo a passo dessa construção político-pedagógica, livro que hoje podemos ler na publicação, primeira em português, feita pela editora Expressão Popular no ano de 2009, “A Escola-Comuna”.

Pistrak nasceu em 15 de setembro de 1888 e foi morto em 25 de dezembro de 1937, em um período convulsivo do processo revolucionário na Rússia. Ele era doutor em ciências pedagógicas, professor com formação na área de física e matemática, passando a ser membro do Partido Comunista a partir de 1924. Anos antes de sua morte teve a função de direção do Instituto Central de Pesquisa Científica de Pedagogia junto ao Instituto Superior Comunista de Educação do Partido Comunista Russo. No período em que participou da construção político-pedagógica da Escola-Comuna, Pistrak também ocupava a posição de presidente da Subcomissão de Programas para o II nível de educação, na Comissão Estatal Científica do Narkompros.

Um dos livros mais conhecidos de Pistrak, “Fundamentos da Escola do Trabalho”, escrito em 1925, reflete os princípios e processos desse núcleo de pioneiros do início da revolução. Esse livro faz parceria com outro, do mesmo período, escrito por Viktor Shulgin, também do coletivo da Escola-Comuna do Narkompros, “Fundamentos da Educação Social”. Ambos os livros foram publicados pela Expressão Popular, o primeiro em duas edições, 2000 e 2018 e o segundo em 2022.

Foto: Divulgação

A construção prática de uma “escola única do trabalho”, nome que foi dado à forma de escola que ia se desenhando no processo de consolidação revolucionária, tinha como finalidade educativa central a formação humana multilateral das novas gerações de lutadores e construtores da sociedade socialista. Para essa construção o coletivo de Pistrak partiu da formulação original de Karl Marx (1818-1883) que defendia a educação da classe trabalhadora sustentada em três pilares formativos: educação intelectual, educação física e educação tecnológica ou politécnica. Esta última visando uma educação para o trabalho pelo vínculo a processos produtivos que permitissem a apropriação, desde a infância, dos princípios gerais da produção, iniciando crianças e jovens no uso e manuseio de instrumentos elementares de todos os ofícios.

As formulações iniciais que Marx deixou sobre a educação politécnica foram materializadas em experiências de escolas do trabalho realizadas nesse período inicial da revolução russa. As formulações pedagógicas a que chegaram nos servem de referência ainda hoje, sistematizadas por Pistrak no livro “Ensaios sobre a escola politécnica”, escrito em 1929. Este livro também foi publicado pela primeira vez em português pela Expressão Popular no ano de 2015.

Em Marx, fonte teórica e política inspiradora de todas as pedagogias que se colocam a serviço da classe trabalhadora e de uma transformação radical da ordem social capitalista, a afirmação do trabalho como princípio educativo se refere a seu sentido genérico de atividade humana criadora. Marx firmou a compreensão de que como atividade produtiva socialmente necessária na constituição do ser humano o trabalho tem uma força material insubstituível na formação humana. Ele define o modo humano de ser, criando e recriando o ser humano em qualquer tempo histórico, sendo princípio básico da sociabilidade humana: o trabalho não apenas como “meio de vida”, mas como necessidade da vida humana.

Por isso mesmo o trabalho sempre está no centro da educação, embora com finalidades e conteúdos diferentes conforme o tipo de relações sociais que predominem em cada época e em cada formação social. A pedagogia socialista busca fortalecer o potencial formativo do trabalho para confrontar a forma capitalista do trabalho explorado e alienado e preparar construtores de novas relações sociais do ser humano com a natureza de que é parte e entre os seres humanos.

Nessa visão não se trata de reduzir a educação à preparação para um determinado trabalho e sim de pensar a totalidade formadora do ser humano com base no trabalho, de modo a superar as condições concretas de trabalho que sejam deformadoras e preparar a classe trabalhadora para que assuma, com suas lutas e organização coletiva, a condução da produção social.

A partir dessa compreensão o trabalho passou a ser categoria central da organização do sistema educativo socialista. Na construção da escola do trabalho ponteada pelo coletivo de Pistrak, o trabalho é entendido como fundamento da vida humana, devendo ser pensado ao mesmo tempo como objeto de estudo e como método de formação. E o trabalho na escola, ou mediado por ela, precisa se ligar ao trabalho social, à produção real, com atividades concretas socialmente necessárias. Somente assim a participação dos estudantes no trabalho cumprirá a finalidade da educação socialista, na qual a escola ajuda a formar uma determinada atitude frente ao mundo, às questões da vida e leva ao conhecimento concreto dos fenômenos da realidade.

Na escola do trabalho dos pioneiros da educação socialista russa as categorias centrais do processo educativo enfatizavam o trabalho com significação social e no contexto da atualidade: trabalho tanto intelectual como manual que organiza e auto-organiza e ao qual se soma a categoria de coletivo de estudantes, instrumento prático de sua participação e auto-organização, habilidades fundamentais em uma construção social coletiva.

As práticas sistematizadas desse período rico da história da educação socialista vêm inspirando novas práticas em diferentes lugares, presentes especialmente nas ações educativas de movimentos populares que se vinculam à construção do projeto histórico da classe trabalhadora.

No MST, a relação entre escola e trabalho esteve desde o início como foco de construção pedagógica. Antes mesmo de conhecer esse legado da pedagogia socialista russa as comunidades dos assentamentos e acampamentos entenderam que não deveriam se conformar com uma escola que, como dizia Pistrak, ficasse aquém das exigências da vida. Foi com esta preocupação que as primeiras educadoras começaram a construir o que primeiro chamaram de uma “escola diferente”. Diferente da escola que conheciam e diferente a ponto de acolher as necessidades e os objetivos formativos da organização e das pessoas que conquistaram a terra em que essa escola agora se fazia.

Foto: Carla Batista

O primeiro encontro dos educadores do MST com a pedagogia socialista russa, ainda no final dos anos 1980, foi para ajudar a pensar um desenho de escola que permitisse seu vínculo orgânico aos processos de organização da produção nos primeiros assentamentos conquistados, e ajudasse no objetivo formativo de preparação da juventude para o trabalho cooperativo e a participação coletiva nas decisões sobre como organizar a vida social nas áreas de reforma agrária. Nesse primeiro momento a leitura foi limitada à única obra de Pistrak disponível em português (“Fundamentos da Escola do Trabalho”, Brasiliense, 1981) e algumas ideias compiladas de textos de Krupskaya publicados em espanhol, trabalhados nos cursos de formação de educadores.

O objetivo de vincular a escola à tarefa de implementação da cooperação agrícola nos assentamentos motivou especial interesse pelas formulações da pedagogia socialista sobre a auto-organização dos estudantes e a participação das crianças e dos jovens no trabalho produtivo e que se ligavam a outra categoria central no desenho da escola única do trabalho: a atualidade. As escolas precisavam garantir um modo de estudar que levasse a compreender a realidade atual para poder agir consciente e organizadamente sobre ela. Para isso era necessário quebrar o isolamento da escola em relação às questões da vida, do trabalho social. Era o que buscavam os educadores russos e o que se buscava agora ao vincular as escolas aos desafios de construção dos assentamentos.

A auto-organização dos estudantes logo foi associada ao princípio do MST de que todos os Sem Terra deveriam estar organizados em seus núcleos de base, para garantir sua participação efetiva nas diferentes instâncias da organização. E se entendeu que intencionalizar uma organização própria dos estudantes, que poderia avançar para a constituição de coletivos infantis ou juvenis e a sua participação efetiva na condução da vida escolar ajudaria na formação para o trabalho coletivo e a participação política. Algo que segue como desafio prático, no confronto cotidiano com a lógica dominante de escola, cuja função social a serviço do capital precisa excluir tanto o trabalho coletivo como o protagonismo dos/das estudantes.

Pistrak inspirou importantes experiências/ensaios de inserção orientada no trabalho social combinada com auto-organização dos estudantes e sua participação ativa na vida escolar, em escolas de assentamentos e acampamentos. E esse diálogo ajudou a construir uma primeira síntese do que seria a “escola diferente” pretendida pelas educadoras do MST: as escolas devem se inserir na atualidade pela relação entre estudo e trabalho, intencionalizando a auto-organização dos estudantes.

As finalidades educativas dessas escolas e o diálogo com as categorias pedagógicas sistematizadas especialmente por Pistrak motivaram experiências de redesenho dos tempos e espaços educativos e de mudanças nos processos de gestão da escola. Quando estudantes podem participar da gestão democrática de sua escola e experimentar a organização coletiva do trabalho estão se preparando para ajudar mais efetivamente no avanço das práticas de cooperação e da condução coletiva da vida social no assentamento.

Dois aspectos principais possivelmente tenham permitido aquela primeira aproximação das educadoras e educadores do MST às formulações pedagógicas russas, tão distantes no tempo e no espaço. O primeiro aspecto tem a ver com a linguagem direta do livro de Pistrak, o que agora sabemos ser uma característica do conjunto das obras dessa primeira geração dos pedagogos da revolução russa. Essa forma de escrita passa ao mesmo tempo uma firmeza de concepção e a defesa vibrante de ideias, mostrando, pelos exemplos simples e diversos, como essas ideias podem ser e já foram realizadas.

Nossas primeiras educadoras, protagonistas da criação pedagógica da “escola diferente”, conseguiam se enxergar em práticas que não pareciam tão diferentes do que estavam tentando fazer. Era então um diálogo entre processos de construção viva de uma nova escola e esta identificação facilitava a compreensão teórica. Até hoje, em relação ao conjunto dos livros, é possível perceber como são mais facilmente entendidos por quem está inserido em processos de transformação da escola.

O segundo aspecto é que esses textos conseguem transmitir uma ideia de criação viva e radical: não se está “reformando” a escola, mas buscando reconstruí-la dentro de uma revolução social. Isso além de alimentar a mística revolucionária, ajuda a dessacralizar a forma escolar: sendo ela uma construção histórica, pode sim ser transformada a partir de finalidades educativas diferentes daquelas que a desenharam como é.

Por sua vez a distância de realidades permite uma maior liberdade de síntese: não estamos em uma revolução socialista e nosso tempo é outro. Então não se trata de copiar a pedagogia russa, mas sim de aprender com ela e se inspirar no que esses pioneiros tentaram fazer. Não se fica pressionado a “aplicar” suas formulações nem se trata de filiação a uma corrente pedagógica. Importam mais os fundamentos e as questões que nos ligam a um mesmo projeto histórico de construção.

O livro “Fundamentos da escola do trabalho” continuou sendo estudado nos cursos de formação de educadores organizados pelo MST ao longo dos anos, o que levou a editora Expressão Popular a publicá-lo no ano 2000, depois de esgotada a edição da antiga editora Brasiliense. Não se tem a dimensão exata de quantas escolas ou quantos coletivos de educação do Movimento estudaram essas categorias pedagógicas. O que se sabe é que em boa medida elas foram incorporadas como chaves para pensar as transformações da escola na direção construída por esses coletivos. A relação estudo e trabalho, o vínculo com a realidade atual e a auto-organização dos estudantes tornaram-se princípios pedagógicos que orientam a construção pedagógica do MST até hoje.

No período mais recente os estudos da pedagogia socialista russa tiveram novo impulso a partir da ampliação de fontes sobre as práticas e reflexões desse coletivo de pioneiros. Foi no ano de 2005 que o MST soube da existência da obra “A escola-comuna”, organizada por Pistrak. Mas foi depois da sua publicação em 2009 pela Expressão Popular e das publicações seguintes, que estas leituras começaram a ser mais difundidas.

A partir da segunda década dos anos 2000, no bojo do VI Congresso Nacional do MST (fevereiro de 2014) e das formulações do projeto de Reforma Agrária Popular, os desafios de luta e construção vão se tornando mais complexos. Pela dureza da luta que enfrenta as forças do capital, mas também pelas novas possibilidades de reorganizar a vida nos assentamentos. Pelo encontro da reforma agrária com a agroecologia e as diferentes dimensões do modo de produção da vida que ela expressa e projeta, juntando-se com a cooperação e com as finalidades de uma produção voltada para a soberania alimentar, para novas relações sociais, de gênero, entre gerações e a superação da crise ambiental a que o sistema do capital nos levou como humanidade.

O encontro do MST com a pedagogia socialista russa possivelmente entre em um novo ciclo no contexto de construção da Reforma Agrária Popular porque especialmente a relação estudo e trabalho, ciência e produção se coloca em outro nível de complexidade e de exigências formativas. Segue, portanto, como uma questão a ser enfrentada pela construção político-pedagógica de seus coletivos e no diálogo com outros educadores.

Todos devemos muito ao diálogo com o coletivo de Pistrak a partir da leitura dos escritos que esse coletivo nos deixou. E ainda temos muito a aprender com o legado da revolução de 1917 e o trabalho dos seus “pioneiros da educação”. Honremos esse legado difundindo suas obras e, sobretudo, fortalecendo a luta pelo socialismo e continuando a criação social e pedagógica que lhe corresponde.

Para saber mais

Caldart, R. S. Caminhos para transformação da escola: pedagogia do MST e pedagogia socialista russa. In: Pedagogia Socialista: legado da revolução de 1917 e desafios atuais. Expressão Popular, 2017, p. 261-285.
Caldart, R. S. Sobre as tarefas educativas da escola e a atualidade. Expressão Popular, 2023.
Freitas, L. C. A luta por uma pedagogia do meio: revisitando o conceito. In: Pistrak, M. M. A Escola-Comuna. Expressão Popular, 2009.
Freitas, L. C. “Escola Única do Trabalho”. Dicionário da Educação do Campo. EPSJV/Expressão Popular, 2012, p. 337-341.
Krupskaya, N. K. A Construção da Pedagogia Socialista. Expressão Popular, 2017.
Lunatchárski, A. Revolução, arte e cultura. Seleção e organização de textos por Douglas Estevam e Iná Camargo Costa. Expressão Popular, 2018.
MST. Educação no MST: Memória – Documentos 1987-2015. Caderno de Educação, n. 14, São Paulo, junho 2017.

*Editado por Fernanda Alcântara

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Last Update: 15/09/2025