Sexta-feira Santa, 18 de abril, a missa na Capela de Nossa Senhora Aparecida do Moinho – Aliança Misericórdia deveria começar às 15 horas. O clima na comunidade era de festa, os moradores na rua bebiam cerveja, as crianças brincavam. Das cozinhas vinha o cheiro do peixe preparado para o almoço de feriado. O dia ensolarado e com vento fresco prometia um clima de tranquilidade. Não durou muito. Por volta das 13h40, uma operação policial invadiu a favela com truculência. “Moiô, moiô! A polícia tá aí entrando nas casas, jogando spray de pimenta”, anunciou uma adolescente, aos gritos pelas vielas. O pânico é geral. Ninguém sabia o motivo da operação. Alguns moradores relataram que ao invadir suas casas, os policiais perguntavam: “Quando você vai sair?”

A Favela do Moinho está marcada para desaparecer. É a última do Centro da capital paulista, localizada embaixo do viaduto Engenheiro Orlando Murgel, entre as linhas de trem da CPTM 7–Rubi e

8–Diamante, no limite dos bairros Campos Elísios e Bom Retiro. As 800 famílias que vivem nesse vale escondido atrapalham os planos do governador Tarcísio de Freitas, potencial candidato da extrema-direita à Presidência da República. Freitas pretende mudar a sede do governo do Palácio dos Bandeirantes, no Morumbi, para o Centro, e construir o Parque do ­Moinho, a despeito de quem vive na área.

Muitos temem não ter condições de arcar com o financiamento de imóveis em outras áreas

Para fazer frente à violência policial, os moradores convocaram uma manifestação às pressas e armaram uma barricada com fogo sobre as linhas do trem, cuja operação foi interrompida por cerca de uma hora. Depois de uma longa negociação, os policiais recuaram, com a promessa de voltar. Nos dias seguintes, a comunidade não teve descanso. A ronda ostensiva da polícia bloqueou as ruas do entorno, impediu que os moradores entrassem de carro e não deixou nem as vans escolares se aproximarem para buscar as crianças na terça-feira 22, quando estavam previstas as primeiras remoções. O capitão G­rams, da PM, disse que a presença de dezenas de viaturas era para “guardar as vagas para os caminhões de mudança”.

A fim de remover a comunidade, a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação ofereceu uma série de opções: Carta de Crédito Individual, Carta de Crédito Associativo, Apoio ao Crédito em parceria com os programas federais e Auxílio-Moradia Provisório de 800 reais, até que os conjuntos habitacionais estejam prontos, alguns previstos para o fim de 2027. De acordo com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano, a CDHU, 86% dos moradores aderiram. Muitos se dizem, porém, arrependidos, ou porque não querem afastar-se do Centro, ou porque temem não conseguir honrar a dívida, a ser quitada ao longo de 30 anos.

Teresa Quispe, de 59 anos, escolheu um apartamento em Guaianases, há 30 quilômetros de onde mora atualmente. “Era o mais barato, no fim vai ficar 180 mil reais, e o condomínio vai custar 220.” No Centro, a taxa de condomínio não baixa de 400 reais, e ficaria inviável para ela, que, três vezes por semana, sai no meio da noite e estende um tapete na Feira da Madrugada do Brás, onde vende roupas de ginástica. O que ganha na feira, somado ao Bolsa Família, não chega a um salário mínimo, para sustentar a si mesma e ao filho mais velho, de 32 anos, cego e portador de ecolalia, um transtorno autista que o leva a repetir tudo que escuta, mesmo sem saber o sentido do que está dizendo. “Não posso deixá-lo sozinho nunca. Trabalho de madrugada porque ele fica dormindo.”

Insegurança. Teresa Quispe e o filho, Daynner Leonardo Quispe, temem não conseguir honrar a dívida de um novo apartamento – Imagem: Luca Meola

“Quando fui assinar o contrato, expliquei que não ganhava um salário mínimo. Me disseram para declarar mesmo assim, para ter como base, porque a parcela será de 20% desse valor”, revela a peruana, que vive no Brasil há mais de 30 anos. “E se eu não conseguir pagar, vou ser despejada de novo?”, questiona. A casa onde mora foi construída aos poucos, via um empréstimo no banco que levou anos para ser quitado. O terreno custou 8 mil reais, e a dívida para a construção, mais 5 mil. “Agora querem que eu passe mais 30 anos pagando? Nem sei se vou viver até lá.”

Um levantamento da própria CDHU demonstrou que 47% dos moradores são trabalhadores informais, e 61% têm renda entre um e dois salários mínimos. Fernando Ferrari, mediador da Associação de Moradores do Moinho, confirmou a denúncia de Quispe. “Muitos foram orientados por agentes da CDHU a burlar a renda, para acelerar o despejo.” Uma servidora que preferiu não se identificar alegou que “de forma alguma trabalhamos assim”.

Cíntia Bonfim, 40 anos, mora no Moinho há 18 anos. É dona de uma das três padarias da comunidade. Desde que assinou o contrato, no começo de abril, tem crises de pânico. “Agora tomo remédio controlado.” Sem a padaria, Bonfim perderá a fonte de renda que sustenta ela, dois filhos e as esposas deles. “Desde pequenos, eles têm diagnóstico de TDAH. Já tentaram trabalhar fora, mas nunca conseguiram se manter num emprego fixo”, conta. Oriunda de uma família extremamente pobre, a padeira pedia dinheiro no sinal antes de viver no Moinho. “Aqui eu conheci o que é comunhão. Lembro da primeira vez que me deram uma cesta básica, ninguém nunca tinha me estendido a mão.”

“Quem não puder pagar, vai para onde?”, pergunta Alessandra Cunha, da associação de moradores

A comunidade tem mesmo fama de acolhedora. Lucas, de 21 anos, chegou em junho de 2024. Saiu de São Leopoldo, uma das cidades mais atingidas pelas enchentes que assolaram o Rio ­Grande do Sul no ano passado, em busca de oportunidades em São Paulo, onde gostaria de viver de seu talento artístico. É compositor, desenhista e estiliza roupas. Ele e o irmão fizeram o trajeto de carona e, ao chegar na capital, dormiram na rua até conhecer alguém que indicou a favela do Moinho. Enquanto constrói sua trajetória artística, trabalha como entregador de aplicativo e paga aluguel de 800 reais na favela. “Aqui tem muita oportunidade, o problema é moradia”, avalia. Em pouco tempo, foi acolhido por artistas da comunidade. MC Charada comoveu-se com a situação do recém-chegado. “Ele saiu de lá porque perdeu tudo, chega aqui e tem esse processo de despejo. O irmão preferiu voltar, ele ficou sozinho. A gente tem chamado pra encostar junto, porque aqui todo mundo se ajuda.”

A presidente da Associação de Moradores, Alessandra Moja Cunha, defende a negociação “chave a chave”. Ou seja, só sair quando o apartamento estiver pronto. “Quem não puder pagar, vai para onde?” O secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação do estado, Marcelo Cardinale Branco, acredita ser impossível uma família não ter condições de arcar com as parcelas do financiamento. Segundo ele, das 700 adesões, 400 pagam aluguel. “Se têm dinheiro para pagar o aluguel, vão ter para pagar o financiamento”, declarou em coletiva à imprensa. Para os 38 comércios da comunidade não há plano de realocação. “Como o nome diz, é a Secretaria de Habitação”, ironizou.

O vice-governador, Felício Ramuth, explica que a população vive em condições insalubres, por isso “o governo quer dar dignidade a essas famílias”. Para a deputada Mônica Seixas, do PSOL, o cenário que ela presenciou na favela foi outro. “Estou vendo coação de gente pobre, obrigada a aceitar uma imposição.” A parlamentar protocolou um pedido na Assembleia Legislativa para interromper o despejo até todas as unidades habitacionais estarem prontas.

Sem chão. Com a padaria, Cíntia Bonfim sustentou a família por uma década. O governo não tem plano de realocar comerciantes da Favela do Moinho – Imagem: Luca Meola

Josefa Flor da Silva, 74 anos, é uma das moradoras mais antigas, e também uma das primeiras a sair. Fez a mudança no dia 22, rumo a Itaquera, a 25 quilômetros do Centro. A paraibana chegou à comunidade em 2001 com sete filhos. Sustentou a família e construiu sua casa, de três andares, com a venda de materiais recicláveis. “Vou levar muitas lembranças ­boas das minhas amigas. Mas vou embora tranquila, porque eu sempre soube que esse terreno não é nosso, e um dia eu teria de sair”, disse com a voz embargada. Está aliviada com a possibilidade de deixar uma herança aos netos. Garante, porém, que, se tivesse escolha, preferiria ficar e receber o título da propriedade.

A área está em disputa desde o fim dos anos 1980, quando o Moinho Central encerrou as atividades. Durante 50 anos, foi a maior fábrica de farinha e rações da capital. O advogado Vitor Goulart Nery, do Escritório Modelo da PUC–SP, que atende os moradores, informa que o terreno foi comprado pela Rede Ferroviária Federal, e depois foi a leilão, devido a dívidas de ­IPTU. Atualmente, está sob responsabilidade da Secretaria do Patrimônio da União. Segundo ele, o ideal seria requalificar a área e manter os moradores. “O governador chegou a dizer que poderia alterar a linha do trem. A partir disso, seria possível fazer a regularização fundiária.” Nery define a remoção forçada como um crime contra a humanidade e a Constituição.

Em princípio, a SPU havia concordado em ceder a área ao governo do estado, desde que as famílias tivessem suas necessidades atendidas. Depois da violência policial denunciada nos últimos dias e do arrependimento de inúmeros moradores, a secretaria, vinculada ao Ministério da Gestão, mudou as tratativas. Apoia a mudança, desde que ocorra por vontade dos moradores, e sem intervenção policial. Para a secretaria federal, as informações sobre a realocação, o endereço efetivo, e o prazo de entrega das unidades habitacionais não estão claras, por isso aguarda ajustes da CDHU. •

Publicado na edição n° 1359 de CartaCapital, em 30 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Moinho de vento’

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Last Update: 24/04/2025