Cesar Neto e J.G. Hata
No dia 9 de outubro foram realizadas as eleições presidenciais em Moçambique. Observadores internacionais foram unânimes em afirmar que havia indícios de fraude. Venâncio Mondlane, um pastor evangélico adepto da teoria da prosperidade, admirador de Bolsonaro, Trump e do partido “Chega” de extração ultradireitista, derrotado, chamou uma greve geral para o dia 21 de outubro. Desde então, Moçambique ferve.
Parafraseando os chilenos que diziam em 2019: “não é por 30 pesos. É por 30 anos”, podemos dizer que não é por uma eventual fraude, é por 50 anos de governo da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), pobreza, miséria e paraíso do capital transnacional.
Dois meses de mobilizações e mais de 260 mortosMia Couto, grande romancista moçambicano disse: “Venâncio Mondlane é como Trump e Bolsonaro. Se ganharem as eleições, ganharam. Se perderem dizem que foi fraude”. Realmente parece que Mia Couto tem razão, parcialmente.
Na verdade, o ódio das massas vem se acumulando há alguns anos. Venâncio, com seu discurso em que se misturam orações pentecostais, ideias de prosperidade (em 10 anos Moçambique será igual aos países árabes), discurso de ódio contra a FRELIMO (e com muita razão), conseguiu combinar seu discurso com a rebeldia das massas juvenis. Moçambique, por conta da migração econômica, 50% de sua população são jovens e adolescentes. Desde que começaram as manifestações no dia 23 de outubro até 29 de dezembro tivemos: 11 desaparecidos; 586 baleados; 4.201 detenções e 278 mortos.
Os métodos de lutas
Nesse período, foram utilizadas diversas formas de lutas. Inúmeras passeatas; supermercados e comércio em geral foram saqueados; as fronteiras com a África do Sul foram fechadas impedindo a circulação de mercadorias; os manifestantes ocuparam os pedágios e decretaram a livre circulação de veículos; delegacias de polícia, casas de policiais e vários órgãos públicos foram incendiados. Depois que a Corte Constitucional reconheceu o resultado eleitoral, ainda que tenha alterado os números finais, a casa da presidente da Corte Constitucional e a própria Corte foram incendiadas.
A empresa Moma Titanium Minerals Mine, filial da irlandesa Kenmare, desde 2009, explora as chamadas “terras raras”, e superexplora os trabalhadores que não têm nenhuma forma efetiva de proteção sindical ou do Estado. A população que vive em volta da Kenmare, cansados de suas promessas, agiram por conta própria, colocaram fogo em uma de suas instalações como forma de cobrança pela não construção de uma ponte que há anos foi prometida e nunca construída. O caso Kenmare (e outros) mostram que o problema não é apenas a fraude mas a situação de miséria e pobreza da população.
A força das mobilizações dividiu o Exército e a polícia
Desde os Acordos de Roma, em 1992, que colocou fim à disputa armada entre a FRELIMO e a RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), houve uma readequação no papel dos aparatos repressivos. O Exército foi relegado a segundo plano e ganhou muita força o corpo policial UIR (Unidade de Intervenção Rápida).
O fato da UIR ser melhor preparada que o Exército é uma verdade que deve ser relativizada pela condição de Moçambique ser um dos países mais pobres do mundo. O Departamento de Estado dos EUA assim define a polícia moçambicana: “as delegacias de polícia locais não têm telefones fixos funcionando consistentemente; a maioria dos policiais depende de celulares particulares para comunicação, e esses números não são públicos; a polícia raramente entende/fala inglês; e a polícia frequentemente não tem transporte para responder à cena de um incidente. Se houver transporte disponível, em geral não há combustível, especialmente fora de Maputo”.
Nas atuais mobilizações há inúmeros vídeos que mostram soldados do Exército e policiais da UIR confraternizando com os manifestantes. Caminhões do Exército e carros policiais são vistos frequentemente apinhados de manifestantes. Por outro lado, há outros vídeos de militares e policiais reprimindo violentamente os manifestantes conforme podemos constatar pelos números acima. De fato, podemos dizer que há divisão no interior do Exército e da UIR frente à crise política e as mobilizações, agravado pelas precárias condições de trabalho e salarial dos militares e policiais.
A pequena burguesia defende seus negócios com lumpens retirados das prisões
Frente à impossibilidade do Exército e da UIR impedir os saques, ocupações de propriedades e incêndios de bens públicos ou privados, a pequena burguesia opta por formar suas milícias a partir de gangues formada por ex-presidiários. Assim, na noite de Natal, 1.500 presos fugiram da prisão de Maputo. Trinta e três detentos foram assassinados, uns 300 recapturados e um grupo grande saiu às ruas com facões ameaçando a população. A fuga foi no Natal, e imediatamente, os ex-detentos receberam os facões, o que nos leva a concluir que foi uma fuga orquestrada. Imediatamente os meios de comunicação começaram a noticiar atos de violência praticados pelos ex-detentos levando a população a ficar em casa para protegerem seus bens e famílias.
África do Sul apoia incondicionalmente a repressão
A África do Sul, através da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (CDAA) / Southern Africa Development Community, (SADC) há décadas vem realizando o trabalho sujo de apoiar os processos repressivos na África Austral e Oriental. A SADC foi criada ainda nos tempos do apartheid, em 1992. Membro dos BRICS e governado há trinta anos pelo CNA (Congresso Nacional Africano), a África do Sul se colocou ao lado da burguesia moçambicana, enviou armas para o Estado reprimir a luta da juventude e dos setores populares contra a ditadura da FRELIMO. Como presente de Natal, acabam de enviar 2 containers de bombas de gás lacrimogêneo. Assim, cai a máscara progressista do CNA e dos BRICS.
Ruanda, a versão africana do Estado de Israel, entra em cena
Cabo Delgado é a região mais pobre de um dos 10 países mais pobres do mundo. Lá, onde a população sobrevive do garimpo, transporte e do tráfico de rubi para grandes gangues, foi encontrado gás natural liquefeito.Essa importante fonte de GNL está recebendo o maior volume de investimento da África subsaariana. Somente a TOTAL pretende investir 14 mil milhões de dólares (12,7 mil milhões de euros). Além da TOTAL, outras empresas estão planejando e construindo suas instalações, entre elas estão: EXXON MOBIL, ENI e CNPC.
O plano de investimento e exploração esbarrou em uma questão: são terras onde vivem povos ancestrais. Era preciso fazer uma limpeza étnica e expulsar os moradores. Al-Shabab, um grupo fundamentalista islâmico apareceu na região, criou clima de terror com assassinatos de homens, sequestro de meninos e adolescentes para compor suas fileiras, sequestro de meninas e adolescentes para escravas sexuais e a violação de mulheres adultas e idosas. Al-Shabab, segundo alguns analistas, recebeu apoio da Tanzânia, empresas petrolíferas e contrabandistas de rubi para executar a limpeza territorial e expulsar quase um milhão de pessoas de suas terras. Criado o clima de caos, para retomar a situação anterior, foi convocado o Exército moçambicano e depois o Exército de Ruanda.
Vale a pena destacar que não é a primeira vez que Ruanda, um pequeno país de contrabandistas de recursos naturais, com um poderoso exército, intervém nos países africanos. No Congo, atualmente, financiam o poderoso grupo miliciano M23. Para lavar sua imagem, Ruanda financia equipes de basquetebol nos EUA e está se propondo para ser a sede de uma das etapas da Fórmula 1 em 2025. Não é exagero dizer que Ruanda é a Israel da África.
Nas ações repressivas em Nampula e Maputo, têm se observado evidências da presença de soldados ruandeses entre as forças repressivas de Moçambique.
Moçambique rumo a um novo Haiti?
Há uma instigante questão que está colocada por importantes analistas sobre a possibilidade de Moçambique vir a ser um novo Afeganistão ou Haiti. Tudo por conta do enorme peso do narcotráfico na economia e na relação direta com as altas esferas da FRELIMO, em especial com a Presidência da República.
Vários estudos apontam Moçambique como país de trânsito (e nos últimos anos de consumo) da droga vinda da Ásia e da América Latina. A droga, com particular destaque para heroína, chega a Moçambique tendo como destino a África do Sul, que consome e exporta para outros cantos do Mundo.
O Estado está completamente controlado pelo crime organizado, pois o negócio da droga se conecta com outras formas de crime, como o branqueamento de capitais, sequestros que se associam ao terrorismo em Cabo Delgado e a formação de grupos que atuam como milícias.
Como estamos falando de uma ditadura que teve seus inícios há cinquenta anos, o Presidente da República tem controle total do Estado e isto facilita os jogos ilícitos. A relação do Estado moçambicano com a heroína, por exemplo, há décadas é controlado diretamente pelo governo, isto significa que os (ex-presidentes) Joaquim Chissano e Armando Guebuza também sabem do negócio. Filipe Nyusi assumiu o poder em 2015 e seguiu o negócio da droga desenvolvido pelos ex-presidentes.
A localização de Moçambique como um importante centro de tráfico, depósito e controle do tráfico internacional de drogas, e o papel das altas autoridades da FRELIMO, é o que leva a supor a possibilidade de que o país mergulhe em uma situação análoga à do Afeganistão ou do Haiti.
O imperialismo clama por paz, isto é, clama para que o povo saia das ruas
Moçambique vive um momento excepcional de sua história. Os grandes ciclos de mobilizações não acontecem todos os dias na vida de uma nação. As ações coletivas de luta contra a opressão e a exploração requerem condições especiais, e quando elas acontecem, precisam ser tomadas com cuidado, preservadas e exige a discussão organizada de como fazer avançá-las.
As ações independentes causam pavor na burguesia e seus representantes. Todos falam em paz, quer dizer, todos aconselham a sair das ruas, deixar de lutar e, assim, dizem eles, as coisas se resolverão por si mesmas. Esse é o sentido da declaração do Vaticano e do Papa Francisco: “Sempre acompanho com atenção e preocupação as notícias de Moçambique, e desejo renovar a esse amado povo a minha mensagem de esperança, paz e reconciliação. Rezo para que o diálogo e a busca do bem comum, sustentados pela fé e pela boa vontade, possam prevalecer sobre a desconfiança e a discórdia”.
O Departamento de Estado dos Estados Unidos também diz que está “preocupado” e descaradamente declara: “Os Estados Unidos apelam a todas as partes interessadas para que se abstenham da violência e se envolvam em colaboração significativa para restaurar a paz e promover a unidade.”
A burguesia em tempos de crises mundial do capitalismo se dividem e lutam entre si
A luta pelo poder entre a FRELIMO de Daniel Chapo e o PODEMOS de Venâncio Mondlane precisa ser encarada nos marcos da crise mundial do capitalismo e das poucas migalhas que sobram para as burguesias locais. Esta é a razão primeira da disputa entre esses dois setores.
Os dirigentes da FRELIMO construíram um império ainda na época da guerra. Para que os EUA e demais países imperialistas aprovassem um acordo de paz, foi exigido pelo FMI e o Banco Mundial a privatização em massa das empresas estatais, entre elas o Banco Comercial de Moçambique e o Banco Popular de Desenvolvimento. As empresas lucrativas foram para as mãos do capital estrangeiro e as de menor importância para a nascente burguesia moçambicana do pós-independência. Os novos empresários moçambicanos receberam polpudos empréstimos do Banco Mundial. Relatórios internos do BM apontavam a incapacidade desses empresários restituírem o valor desses empréstimos, mas como o objetivo era o de cooptar esses novos empresários, o BM autorizou assim mesmo esses arriscados empréstimos.
Assim, velhos combatentes e seus descendentes receberam generosos empréstimos do BM. As minas de rubis de Cabo Delgado são controladas por Raimundo Pachinuapa, um ex-guerrilheiro da luta anticolonial. Outro ex-combatente, Alberto Chipande, atualmente membro da Comissão Política do FRELIMO, é o padrinho dos negócios em Cabo Delgado. Pachinuapa, com armas nas mãos, expulsou os moradores da região, se associou à Gemfields, de capital inglês, ficou com 25% das ações e o grupo inglês ficou com 75% . A direção da empresa ficou nas mãos de Samora Machel Júnior, Samito.
Pachinuapa, Chipande e Samito são apenas alguns dos exemplos de como os ex-guerrilheiros da FRELIMO e seus descendentes abocanharam as riquezas dos país.
O tráfico de drogas, como dissemos acima, é outro elemento de sustentação dos membros da FRELIMO e seus descendentes.
Venâncio Mondlane não faz parte diretamente desse processo, é quase um outsider. O fato de ser um estranho no ninho da usurpação dos bens nacionais, do tráfico de drogas e seus negócios ilícitos praticados pela FRELIMO, não quer dizer que ele seja um adversário desse modelo. Em nenhum momento vimos Mondlane defender acabar com as privatizações do FMI e do Banco Mundial, defender a reestatização dos recursos naturais e seus lucros serem usados para tirar o povo da miséria. Mondlane jamais disse que pelo menos suspenderia o pagamento da dívida externa com objetivo de auditar se eram reais ou não os supostos valores devidos. Mondlane jamais fez uma live em apoio aos trabalhadores da saúde em greve, dos que lutam pela terra, etc.
Os heróis de Mondlane são inimigos do povo. Entre seus heróis declarados está a extrema direita portuguesa do CHEGA; Bolsonaro e Trump. O CHEGA defende uma Portugal para os portugueses e fora os imigrantes (milhares deles moçambicanos); Bolsonaro, um racista que disse que um negro quilombola era tão gordo como um boi, é também responsável pela não compra de vacinas e a morte de 700 mil pessoas, além de fazer a reforma da Previdência que praticamente acabou com a previdência social das futuras gerações. Trump, defende a expulsão dos estrangeiros (e novamente, milhares de moçambicanos) e o massacre do povo palestino por parte de Israel.
A disputa entre a FRELIMO de Nyusi-Chapo e o PODEMOS de Modlane não está a nível do projeto de país que se quer construir, e da defesa incondicional dos trabalhadores, da juventude e do povo pobre. A diferença se dá na medida que as migalhas que hoje são controladas pela FRELIMO, em caso de vitória de Mondlane, deixarão de ser controladas e usufruídas pelos Nyusi-Chapo e passarão a para as mãos do Mondlane e sua gente. A disputa é essa!
A burguesia em tempos de crise mundial do capitalismo se unifica contra as massas
Trump, o Papa Francisco, Nyusi e Mondlane, entre outros, têm importantes diferenças entre eles, mas estão unidos e dizem que o lugar dos trabalhadores e da juventude é dentro de casa caladinho e sem fazer protestos nas ruas. Quando os manifestantes saquearam supermercados, seguramente, pela primeira vez na vida tiveram acesso a alimentos que os baixos salários e o desemprego não lhes permitem sonhar em ver em suas mesas. Quando saqueiam lojas e levam aparelhos diversos estão tendo acesso aos bens que a miséria não permite que compartilhem com suas famílias. Justiça social, nesses casos, deixam de ser uma frase e se materializa na ação direta das massas. Trump, o Papa Francisco, Nyusi e Mondlane estão contra a ação direta através das mobilizações e dos saques. Os trabalhadores do mundo sabem que os saques não resolvem nossos problemas, mas estamos com os explorados e oprimidos contra os exploradores e opressores. Afinal, só a luta muda a vida.
Moçambique em uma encruzilhada: avançar na luta ou ser derrotado
Moçambique tem uma encruzilhada à sua frente. A dicotomia se expressa em a) derrotar a direção burguesa, construir organizações independentes da classe trabalhadora e da juventude; ou b) ver a burguesia desmontar as lutas, retroceder e descobrir que suas centenas de mortos e mutilados foram em vão.
O país vive uma situação completamente excepcional, uma situação revolucionária, uma situação que parafraseando Lênin: “os de cima já não podiam governar como antes e os debaixo já não se deixam governar como antes” Mas não basta que os debaixo já não aceitem ser governados como antes, e que os cima já não possam governar.
É preciso construir organizações dos debaixo, ou melhor, é preciso construir organizações do explorados e dos oprimidos. E esse não é o caso de Moçambique. Mondlane é parte dos “de cima” dos exploradores e dos oprimidos. Além de que, não existe nenhuma organização sindical ou política da classe trabalhadora que reúna as massas e, de forma democrática, discuta os rumos do processo. Se a ditadura da FRELIMO decide os rumos do país e impõe suas vontades, o mesmo acontece com Mondlane que impõe suas verdades pelos seus canais. Ele até tenta dissimular essa situação ao pedir que enviem sugestões aos seus canais. Sugestão não significa discussão democrática e decisão entre todos.
É preciso construir uma direção revolucionária para uma situação revolucionária
Qualquer negociação que tire o povo das ruas significará um retrocesso violento e, talvez, tenhamos que esperar décadas para retomar o nível de luta que hoje vivemos. Nesse sentido, é imperioso derrubar a ditadura da FRELIMO, mas também é preciso definir que tipo de país queremos construir. Não temos dúvidas que é preciso:
- Reestatizar as riquezas naturais. O lucro dessas empresas tem que estar a serviço do combate à pobreza;
- Suspender o pagamento da dívida externa, auditar a dívida e ver o quê se deve e o que não se deve. As poucas riquezas do país devem estar a serviços da educação e da saúde pública gratuita e de qualidade;
- Fora a Frelimo. Convocação de uma Assembleia Constituinte que organize a sociedade a serviço dos trabalhadores e da juventude;
- Por um governo dos trabalhadores e jovens, sem patrões nacionais ou estrangeiros. Povo no poder!
- Pela construção de um partido de trabalhadores e da juventude que lute pelos pontos acima.