Mobilidade do Capital sem Migração do Trabalho
por Fernando Nogueira da Costa
Uma primeira afirmação de Branko Milanović, em seu livro “Capitalismo Sem Rivais: O futuro do sistema que domina o mundo” (São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2020, 376 páginas), já provoca polêmica. Defende ter existido capitalismo – produção organizada com vistas ao lucro, ao uso de mão de obra assalariada livre, ao capital majoritariamente privado, à coordenação descentralizada – desde a Antiguidade.
“No passado, seja no Império Romano, na Mesopotâmia do século VI, nas cidades-estados da Itália medieval ou nos Países Baixos da Era Moderna, o capitalismo sempre teve de conviver — por vezes em uma mesma unidade política — com outras formas de organização da produção”. Cita a caça e as colheitas, os diferentes tipos de escravidão, a servidão na qual os trabalhadores eram legalmente ligados à terra e proibidos de oferecer seus serviços a outros senhores, e a produção simples de mercadorias por parte de artesãos independentes ou pequenos camponeses.
Quando se pode falar do primeiro capitalismo globalizado, no século XIX, o mundo ainda abrigava todos esses modos de produção. A partir da Revolução Russa, o capitalismo passou a dividir o mundo com o comunismo. Imperava em países com aproximadamente um terço da população humana. Hoje, para Branko Milanović, só o capitalismo ainda perdura.
A atual globalização coincide com o triunfo mais absoluto do capitalismo. O predomínio inconteste do modo de produção capitalista tem sua contrapartida na visão ideológica, igualmente inconteste, de ganhar dinheiro não só ser algo respeitável, mas também ser o objetivo mais importante na vida das pessoas, um estímulo compreendido por gente de todas as partes do mundo e de todas as classes.
Não há nenhuma dificuldade para alguma pessoa entender a linguagem do dinheiro e do lucro. Se seu objetivo for fazer o melhor negócio possível, ela terá condições de decidir facilmente se a melhor estratégia econômica a ser adotada é a cooperação ou a competição.
A ideia de os sistemas de crenças e valores individuais estarem alinhados com os objetivos do capitalismo não implica todas as ações individuais serem sempre total e obrigatoriamente motivadas pela obtenção de lucro. Há atividades genuinamente altruístas.
Mas é errado chamar de “filantropos” alguns bilionários com uma fortuna gigantesca, adquirida por meios escusos, quando destinam a outros uma pequena fração dela. Igualmente, também é errado se concentrar apenas em um pequeno conjunto de gestos altruístas individuais e simplesmente ignorar o fato de a maior parte do tempo é gasto em atividades voltadas para melhorar o padrão de vida, buscando sobretudo ganhar dinheiro.
Defensores ideológicos do capitalismo explicam esse alinhamento entre os objetivos individuais e os objetivos do sistema como algo decorrente do caráter “natural” do capitalismo. Ele refletiria com perfeição um “instinto humano”: o desejo de negociar, de obter ganhos, de batalhar por condições econômicas melhores e por uma vida mais agradável.
Branko Milanović não acha correto falar em “desejos inatos”, como se eles existissem de forma independente da sociedade na qual se vive. Muitos desses anseios são produtos da socialização, neste caso, dentro das sociedades capitalistas, as únicas existentes hoje.
“O capitalismo tem sido notavelmente bem-sucedido em incutir nas pessoas os seus objetivos como sistema, induzindo-as ou persuadindo-as a adotarem suas metas e construindo, assim, uma convergência extraordinária entre o que o capitalismo necessita para sua expansão, de um lado, e as ideias, os anseios e os valores das pessoas, do outro”. Em suas ações cotidianas, os indivíduos expressam — e assim reforçam — os principais valores nos quais se baseia o sistema social.
O domínio do capitalismo no mundo todo se dá, porém, com dois tipos diferentes de capitalismo: o Capitalismo Meritocrático Liberal, desenvolvido progressivamente no Ocidente ao longo dos últimos duzentos anos, e o Capitalismo Político ou Autoritário, liderado pelo Estado, cujo exemplo maior é a China, mas existente também em outras partes da Ásia (Singapura, Vietnã, Burma) e em regiões da Europa e da África: Rússia e países do Cáucaso, Ásia Central, Etiópia, Argélia, Ruanda.
Na história, a ascensão e o triunfo aparente de um determinado sistema ou religião são rapidamente seguidos por algum tipo de cisma entre as diferentes variantes do mesmo credo. Por exemplo, o cristianismo se dividiu entre o catolicismo e o protestantismo, o islamismo dividiu-se entre os ramos sunita e xiita, o comunismo dividiu-se entre a versão liderada pela União Soviética e a versão chinesa e, atualmente, o capitalismo se divide na competição entre os capitalismos liberal e político.
O novo balanceamento econômico do mundo não é apenas geoeconômico. É também geopolítico. “O sucesso econômico da China põe abaixo a crença ocidental de existir uma ligação obrigatória entre capitalismo e democracia liberal. A rigor, essa crença vem sendo derrubada dentro do próprio Ocidente através dos desafios lançados à democracia liberal pelos populismos [de direita] e pela plutocracia”.
O mal-estar causado no Ocidente pela globalização se deve, em parte, à distância existente entre as elites bem-sucedidas com ela e muitos trabalhadores com perda de empregos industriais e pouco se beneficiando de bens de consumo mais baratos propiciados pela globalização. Os nativistas ressentem-se dela e, com ou sem razão, veem o comércio e a migração global como a causa de seus males.
Os dois tipos de capitalismo, o meritocrático liberal e o político, agora competem entre si. Eles são liderados, respectivamente, pelos Estados Unidos e pela China.
O Capitalismo Político é atraente para as elites políticas do restante do mundo, e não apenas na Ásia, pois esse sistema está proporcionando uma autonomia maior para elas explorarem o maior mercado interno mundial em número de consumidores. O Capitalismo Liberal possui como a mais importante vantagem a democracia e a prevalência do Estado de Direito serem valores em si mesmos.
Porém, há negação de alguns aspectos cruciais desse sistema implícito de valores, sobretudo o movimento de criação de uma classe alta em busca de se autoperpetuar, inclusive no poder político. Junto com a polarização entre as elites e o restante da população, esses fatores representam a ameaça mais importante à viabilidade do capitalismo liberal a longo prazo.
A globalização aumentou a mobilidade do trabalho, com pessoas se deslocando de países mais pobres para países mais ricos em busca de melhores oportunidades de emprego e renda. Essa migração é uma resposta às grandes diferenças de ganho entre países, criando um “prêmio por cidadania” para os habitantes em países ricos e uma “punição por cidadania” para os moradores em países pobres.
Esse “prêmio por cidadania” reflete a diferença de renda nominal em moeda forte (dólar ou euro), recebida por uma pessoa simplesmente por ser cidadã de um país rico, mesmo caso tenha a mesma qualificação e realize o mesmo trabalho de um colega em um país pobre. A globalização aumentou essa disparidade, tornando a migração uma opção mais atraente para muitos.
A migração é vista como um movimento de um fator de produção, o trabalho, em busca um retorno maior em outros lugares, similar ao movimento do capital. No entanto, ao contrário da mobilidade do capital, a do trabalho gera tensões sociais e políticas nos países de destino, devido a diferenças culturais e econômicas.
Apesar do aumento da migração, existem restrições à movimentação da força de trabalho, com países ricos impondo barreiras à imigração dos pobres. Essas restrições são mantidas para proteger os empregos e os benefícios sociais dos cidadãos nativos, ainda se a mobilidade da força de trabalho for vista como algo positivo para a economia global.
A combinação da mobilidade do capital e do trabalho gera tensões entre o Estado de Bem-Estar Social, vinculado à cidadania, e a livre movimentação da força de trabalho. As restrições à migração são vistas como necessárias para preservar os benefícios dos cidadãos nativos. Essa tensão leva a reações políticas, como o nativismo de direita e o nacionalismo xenófobo. Até alguns partidos de esquerda, na Europa, se opõem à imigração e à terceirização da produção, em uma ruptura com o tradicional internacionalismo.
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected].
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