Em meio à sensível piora no quadro de feminicídios e violência contra as mulheres no Brasil, uma nova pesquisa reforça o quanto o ambiente virtual também é hostil, especificamente para aquelas que resolveram atuar na política — e isso se estende para mulheres de diferentes perfis, inclusive ideológicos, mas com reforço sobre determinados marcadores, como raça, etnia e identidade de gênero (sobretudo no caso de mulheres trans).
Tendo como base a análise de 6 mil mensagens do Telegram — um dos espaços mais utilizados por grupos misóginos — e entrevistas com 28 mulheres (entre eleitas e lideranças) de 13 partidos, a pesquisa, feita pelo Data-Pop Alliance e ODI Global, com pesquisadores da DesinfoPop da Fundação Getúlio Vargas, constatou que “a violência digital contra mulheres na política é impulsionada por misoginia, racismo, transfobia e estereótipos coloniais, e amplificada pelas próprias dinâmicas das plataformas digitais”.
O estudo mostra que mulheres negras, por exemplo, enfrentam abusos racializados que combinam misoginia e racismo. Já as indígenas são alvo de estereótipos de caráter colonial, enquanto as trans sofrem violências agravadas que articulam misoginia, transfobia e, em alguns casos, racismo.
Leia também: Estudo revela explosão de conteúdos de ódio contra mulheres em rede social
“O que a gente mostra nesse relatório é que não se trata de ódio solto na internet, mas de padrões muito claros de ataque: mulheres negras, indígenas, trans e brancas são atingidas de formas distintas, sempre a partir de normas de gênero e raça profundamente enraizadas. A violência digital é usada como ferramenta para lembrar o tempo todo quais mulheres ‘podem’ falar e quais devem ser punidas por ocupar espaço político”, explica Julie Ricard, pesquisadora do DesinfoPop/FGV, pesquisadora associada da Data-Pop Alliance e coordenadora do estudo.
Um ponto comum a todos os grupos são os ataques voltados à aparência e a julgamentos morais. De acordo com o levantamento, esse tipo de abordagem é recorrente, “ainda que se manifestem de maneiras distintas conforme linhas raciais e políticas, sendo as mulheres brancas, em particular, as que mais frequentemente enfrentam críticas estéticas e policiamento moral”.
No gráfico abaixo, é possível perceber, por exemplo, que percentualmente, as mulheres não brancas de esquerda sofrem principalmente com ataques às políticas e ao alinhamento político e ideológico (37%); de juízo moral (30%) e com os ataques baseados na sua identidade (20%).
No caso das mulheres brancas de direita, os ataques às políticas e ao alinhamento político e ideológico são mais evidentes (48%). Em seguida vêm os de juízo moral (40%) e, diferentemente do outro grupo, em terceiro estão aqueles ligados à aparência e à personalidade (15%).

O estudo aponta como principais achados o fato de que a violência digital atinge mulheres de forma diferenciada; que atores políticos e extremistas, sobretudo de extrema-direita, coordenam ataques digitais e que a visibilidade é o principal gatilho dos ataques (ou seja, quanto maior a exposição pública dessas mulheres, maior a intensidade de violência).
“A principal engrenagem da violência de gênero digital na política é a visibilidade — quanto mais uma mulher ocupa espaços de poder, lidera debates ou ganha projeção pública, mais ela é atacada. Esses ataques são frequentemente coordenados por atores políticos e extremistas, mas também operam dentro dos próprios partidos, como mecanismo de controle e silenciamento”, salienta Anna Spinardi, pesquisadora e Diretora do Programa de Feminismo de Dados da Data-Pop Alliance
Ela acrescenta que essa situação confirma “um padrão estrutural da nossa sociedade: mulheres que se posicionam e fazem suas vozes serem ouvidas são constantemente alvo de tentativas de silenciamento por um sistema machista e patriarcal”.
Além disso, o estudo destaca outros aspectos relevantes, como os impactos desses ataques ultrapassarem o ambiente digital, gerando danos emocionais, ameaças inclusive a familiares, custos de segurança e adoecimento; a falta de estratégias específicas por parte dos partidos para lidar com a violência digital e o fato de que a violência digital contra mulheres na política constitui ameaça sistêmica à democracia.
Recomendações
A partir das informações colhidas e analisadas, o estudo propõe algumas medidas para enfrentar o problema, que tem se mostrado um mecanismo bastante eficaz de transbordamento da violência de gênero e de afastamento das mulheres da política, colocando em xeque a própria democracia brasileira.
No curto prazo, o relatório propõe que os partidos adotem protocolos que integrem medidas legais, psicossociais, de segurança e de interação com plataformas; fortaleçam capacidades de monitoramento e resposta rápida; e que as plataformas sejam responsabilizadas pela contenção desse tipo de violência, especialmente quando se mostra coordenada. Além disso, recomenda a capacitação em segurança digital e estratégias de comunicação para mulheres na política.
No horizonte temporal mais amplo, elenca como prioridades o fortalecimento de sanções legais e mecanismos de proteção; a expansão das medidas para o nível municipal (como a criação de promotorias especializadas em questões de gênero nas Câmaras Municipais) e a promoção de normas sociais mais igualitárias em toda a sociedade.