O Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública solicitando que o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) seja condenado a pagar 500 mil reais em danos morais coletivos por condutas irregulares contra a realização do aborto legal na rede pública de saúde.
Segundo o MPF, o Cremesp abriu procedimentos disciplinares indevidos contra médicos que efetuaram o procedimento em grávidas com idade gestacional superior a 20 semanas no hospital municipal Vila Nova Cachoeirinha, na capital paulista. Os casos referiam-se a gestações originadas de estupro, nos quais a legislação prevê a possibilidade do aborto, independentemente do tempo de gravidez.
Ainda de acordo com o Ministério, o órgão efetuou uma vistoria no hospital, em dezembro de 2023, e requisitou os prontuários de mulheres que haviam se submetido ao procedimento de aborto legal nos dois meses anteriores. Durante a apuração do MPF, o Conselho não conseguiu demonstrar que havia justa causa para as diligências e instauração de procedimentos ético-disciplinares, tampouco para utilização dos dados sensíveis das pacientes acessados irregularmente.
O entendimento do MPF é o de que, ao acessar os documentos sem consentimento das pacientes e dos profissionais e utilizá-los para embasar os atos administrativos, a entidade violou o sigilo médico, garantido pela Constituição, pelo Código de Ética Médica e pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Acrescenta que, de acordo com a legislação, os dados pessoais das pacientes deveriam ter sido protegidos pela Secretaria Municipal de Saúde e pelo Cremesp, e não poderiam ter sido utilizados nas sindicâncias e procedimentos do Conselho. A Secretaria teria que ter ocultado os dados pessoais dos documentos antes de disponibilizá-los ao Cremesp, que deveria ter garantido a proteção dos dados em seus procedimentos, o que não ocorreu.
No último dia 3, o Supremo Tribunal Federal determinou, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1141/DF, a impossibilidade de utilização de dados sensíveis para instrução de procedimentos éticos disciplinares.
Para a autora da ação do MPF, a procuradora regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, Ana Letícia Absy, o pedido de indenização por danos morais coletivos se justifica pela extensão dos prejuízos que o Cremesp causou. “Tudo isso gerou um dano moral indiscutível aos médicos sujeitos aos processos ético-profissionais indevidos, às pacientes que tiveram seus prontuários médicos devassados e a toda a coletividade de meninas e mulheres que precisam realizar o abortamento legal e ficam desamparadas do atendimento médico necessário, pelo receio gerado entre os profissionais da área médica em realizar o procedimento abortivo, bem como pela criminalização indevida de conduta autorizada no ordenamento jurídico e que configura a melhor prática médica”, afirmou.
A legislação autoriza o aborto em quadros de risco à saúde da gestante e anencefalia fetal, assim como nos casos de estupro, mas algumas entidades médicas têm atuado indevidamente contra a realização do procedimento. Em abril deste ano, o Conselho Federal de Medicina editou uma resolução proibindo profissionais de todo o país de realizar a chamada assistolia fetal a partir de 22 semanas de gestação, quando a gravidez for originada de violência sexual e houver probabilidade de sobrevida do feto.
A assistolia é um procedimento que viabiliza a realização do aborto em gestações avançadas. A norma foi suspensa após uma liminar do STF em ação civil pública do MPF que questionou a legalidade da resolução.