Ministério da Fazenda e Big Techs

por Paulo Kliass

            O protagonismo que o bilionário Elon Musk vem exercendo no início da administração Trump nos Estados Unidos tem colocado muita luz no debate a respeito das relações incestuosas entre dirigentes do setor público e representantes do grande capital privado. Além de representar os interesses de seus próprios conglomerados nas diferentes áreas em que atua, o empresário de origem sul africana conquistou em espaço importante na equipe do Presidente e teve um cargo de natureza ministerial especialmente criado para si mesmo. Trata-se do Departamento de Eficiência Governamental.

            Junto com Musk passaram a ganhar relevância na cena política norte-americana outros líderes empresariais do setor que tangencia a esfera digital, as comunicações e o sistema financeiro. Passaram a ser conhecidas como “bigtechs” e constituem o grupo de maiores conglomerados na cena global. Na posse de Trump estavam, em lugar de destaque na cerimônia transmitida para centenas de milhões de pessoas por todo o mundo, indivíduos que representam parcela expressiva do PIB da Terra. São eles: Mark Zuckerberg (Meta), Sundar Pichai (Google), Tim Cook (Apple), Jeff Bezos (Amazon), Shou Zi Chew (TikTok) e Sam Altman (Open AI).

            A tentativa de parcelas e setores das classes dominantes em influenciar decisões de políticas públicas existe desde há muito tempo na história do capitalismo. No entanto, ao longo das últimas décadas a prática do lobby foi se sofisticando para se transformar em uma presença mais direta dos representantes dos grandes conglomerados em postos estratégicos da própria administração do Estado. Esse movimento tem ocorrido em diferentes países e tem permitido ao grande capital obter favorecimentos extraordinários em suas iniciativas.

Brasil: relações incestuosas entre capital e Estado.

            O caso brasileiro tampouco fugiu à regra geral. O que mais surpreendeu os analistas foi a continuidade de tal procedimento nos governos presididos pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Em 2003, por exemplo, Lula convidou o ex-presidente internacional do Bank of Boston para ocupar o importante cargo de Presidente do Banco Central (BC). Ou seja, o principal dirigente de um dos maiores credores da dívida externa brasileira passou a ocupar o posto de responsável pela política monetária e pela política cambial, além das fundamentais missões de regulação e de fiscalização do sistema bancário e financeiro. Henrique Meirelles abriu mão de exercer o mandato de deputado federal pelo PSDB ao aceitar o convite de Lula. Além disso, foi presenteado com os termos de uma Medida Provisória para equiparar o seu futuro cargo ao de Ministro de Estado.

            Em 2015, a Presidenta Dilma Roussef nomeou para ser o Ministro da Fazenda (MF) de seu segundo mandato um diretor do banco privado Bradesco, Joaquim Levy. Mais uma vez, um importante cargo da administração pública federal foi oferecido a um representante direto dos interesses do financismo. Além de implementar um programa de ajuste macroeconômico de natureza austericida e monetarista, o banqueiro tinha em sua agenda cotidiana contatos e espaços de decisão de política econômica onde sua condição de agente direto de um dos maiores grupos do financismo privado. Esse tipo de apropriação privada do espaço público deveria ser proibido.

            Dentre os inúmeros Presidentes e diretores do BC diretamente vinculados aos interesses da banca privada, chamam a atenção os mais recentes. Ilan Goldfajn (2016-19) havia sido alto executivo dos bancos Credit Suisse e Itaú, ao tempo em que Roberto Campos Neto (2019-24) havia ocupado postos de direção nos grupos bancários Bozano Simonsen e Santander.

MF, BC e STN: portas giratórias e interesse público.

            Além disso, o essencial cargo de chefia da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) também tem sofrido com a chamada “política de portas giratórias” entre o capital privado e setor público. Os exemplos mais recentes são de ex titulares da STN que atualmente ocupam os postos de sócio e de economista-chefe de bancos privados. É o caso de Ana Paula Vescovi (2016-18), atualmente dirigente do Banco Santander, e de Mansueto Almeida (2018-20), que ocupa hoje em dia a direção do Banco BTG Pactual. Chama a atenção o processo de “normalização” de tal procedimento por parte dos formadores de opinião, como se esse tipo de promiscuidade de relação de interesses não ferisse princípios básicos da natureza republicana de nossa formação social.

            Ao longo das últimas semanas tem recebido destaque também a presença de representantes das “bigtechs” na estrutura do governo federal brasileiro. A divulgação da nomeação de Pablo Bello Arellano para o cargo de assessor especial de Fernando Haddad surpreendeu negativamente a maior parte dos analistas. Até a antevéspera de sua indicação para ocupar este importante cargo na Esplanada dos Ministérios, este economista de origem chilena era um alto executivo da Meta, um dos grandes conglomerados globais dessa área digital, comunicação e financeira. Não apenas representava os interesses do grupo, como costumava participar de audiências em Brasília tendo como contraparte os funcionários do MF. A partir de agora, ele mudou de lado do balcão. Resta saber que tipo de proposta ele vai passar a defender no cargo.

            Por outro lado, também merece destaque a presença de Dario Durigan em cargo estratégico no mesmo MF. O atual Secretário Executivo responde como o segundo homem na hierarquia do Ministério. Mas ele também era alto funcionário da Meta até às vésperas de sua nomeação para o cargo em junho de 2023. Aliás, um mês antes ele estava no mesmo prédio defendendo os interessas da “bigtech” de Zuckerberg em reuniões com a equipe e Haddad.

As “bigtechs” dentro do governo: escândalo silenciado.

            Ora, parece mais do que evidente que a situação de crise internacional e da necessidade de se elaborar e defender medidas que apontem para um projeto de soberania digital para nosso País são contraditórias com a participação de pessoas com tal perfil e passado comprometedor. O Brasil precisa conquistar espaço dentre os grandes atores no cenário global, mas sem se render aos interesses dos grandes conglomerados privados. Já passou do momento de avançarmos na definição de projetos e programas da área digital, comunicação e informática com conteúdo e segurança nacionais. Mas, para tanto, é fundamental romper com a lógica e os interesses das grandes “bigtechs”.

Existem alternativas de mais curto prazo para atenuar a dependência que o Brasil mantém com relação a tais oligopólios da tecnologia digital. A conquista da soberania nesse domínio é um processo lento, ainda que ultra necessário e urgente. Uma possibilidade concreta que se abre é a ampliação de contatos com os países membros dos BRICS, cuja presidência neste ano de 2025 é exercida exatamente pelo Brasil. Rússia, China e Índia, entre outros, podem oferecer condições para que a dependência extrema e absoluta que temos com relação a conglomerados estado-unidenses seja flexibilizada.

            Para dar cabo de tal tarefa, o mais indicado é afastar dos centros de decisão do governo brasileiro indivíduos que estejam claramente defendendo o ponto de vista destes oligopólios privados, que agora contam com assento na Casa Branca. Com a palavra, mais uma vez, o Presidente da República. Afinal, Lula disse que gostaria de fazer mais e melhor em seu terceiro mandato. Que pretendia realizar 40 anos em 4. O tempo passa rápido e não há mais espaço para postergar esse tipo de decisão estratégica.

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

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Last Update: 25/02/2025