O ano era 1967. A Força Aérea Brasileira (FAB) atravessava a densa mata da serra do Cachimbo, no Pará, em missão oficial. Com ela, levavam um nome já conhecido entre os povos indígenas da região: o cacique Raoni Mẽtyktire, uma das maiores lideranças do século XX. Só décadas depois ele compreenderia o real motivo da missão: os militares buscavam pistas do guerrilheiro comunista Ernesto Che Guevara, morto naquele mesmo ano, em outubro, na Bolívia.

“Me disseram que era para ajudar caso encontrássemos outros parentes. Depois entendi que o que eles queriam era me usar para caçar o tal Che Guevara”, conta Raoni no recém-lançado “Memórias do Cacique”, publicado pela Companhia das Letras.

A revelação é apenas um dos muitos episódios narrados na obra que combina cosmologia, história oral e denúncia política, e que chega às livrarias nesta semana, após o cacique se recuperar de uma enfermidade.

Entre o mito ancestral e a geopolítica global

O livro reúne relatos etnográficos e espirituais, como o mito de origem dos mẽbêngôkre kayapó e do subgrupo mẽtyktire. Descreve o surgimento do mundo por Iprẽre, criador de tudo, e como o povo começou sua jornada após cavar um buraco que levava a uma floresta de buritis.

Raoni transita entre os dois mundos com a mesma naturalidade: narra interações com espíritos, animais encantados e pajés do céu tanto quanto reuniões com presidentes, artistas e reis europeus. De Lula a João Paulo II, de Sting a Collor, do papa ao monarca belga Leopoldo III, Raoni construiu pontes entre cosmologias e diplomacias.

A narrativa, em primeira pessoa, foi construída a partir de entrevistas em língua indígena feitas por seus netos — Patxon Mẽtyktire, Paimu Muapep Trumai Txukarramãe e Beptuk Metuktire — com tradução e organização do antropólogo Fernando Niemeyer.

A selva, os militares e a ironia

Durante a missão da FAB, Raoni conta que os militares estavam completamente despreparados: dormiam em formigueiros, passavam fome na floresta abundante e dependiam dele para caçar ou se localizar. Um dos soldados — um alemão — quase se afogou.

“Faltava comida mesmo cercado de caça. Por quê? Eu caçava, eu mostrava. Eles não sabiam viver ali”, ironiza.

Certa vez, os soldados o convenceram a interceder junto ao coronel para encerrar a missão. “Temos medo dele. Você consegue”, disseram. Raoni o fez — com sucesso. A tropa comemorou e até armou um mastro, onde o próprio cacique hasteou a bandeira nacional.

Guerra, memória e resistência

As memórias passam pela infância do cacique, pelas guerras intertribais, pela sua formação como pajé e pelas campanhas históricas em defesa do território e da floresta. Destacam-se a luta pela criação do Parque Indígena do Xingu, sua firme oposição à usina de Belo Monte e as campanhas internacionais que mobilizou em defesa da Amazônia.

Raoni lembra ainda de momentos tensos com o Estado: diz que já quase matou um presidente da Funai, enfrentou armas apontadas contra si e chegou a caçar brancos em tempos de conflito.

Tradição oral transformada em história

O livro se recusa a seguir a cronologia e cartografia do mundo ocidental. Os lugares são nomeados como pelos mẽbêngôkre. O tempo é subjetivo, determinado por eventos marcantes, como o nascimento no dia em que Tapiêt, cacique ancestral, chegou a uma aldeia.

“Era assim que vivíamos”, repete o cacique ao longo do texto — uma expressão que marca a fidelidade à oralidade mẽtyktire, mesmo na tradução escrita.

A obra é acompanhada de glossário, linha do tempo e textos explicativos, que ajudam a localizar os leitores não indígenas nos acontecimentos, como a própria operação militar da qual Raoni participou.

Raoni, um símbolo de muitos mundos

Natural da aldeia Kapôt Nhinore, no nordeste de Mato Grosso, Raoni não foi registrado ao nascer. O antropólogo Niemeyer estima que seu nascimento tenha ocorrido por volta de 1937, com base nos relatos do próprio cacique.

A trajetória que começa nas florestas do Brasil profundo hoje cruza a diplomacia internacional, o ativismo ambiental, a espiritualidade ancestral e a resistência política. Com “Memórias do Cacique”, Raoni entrega ao mundo uma obra monumental, que ecoa as vozes de seus antepassados e desafia os silenciamentos impostos à história indígena no Brasil.

Memórias do Cacique
Raoni Mẽtyktire
Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 89,90 (impresso) / R$ 39,90 (e-book)
Páginas: 296
Lançamento: Junho de 2025
Glossário, cronologia e textos de apoio incluídos

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Governo Lula,

Last Update: 28/06/2025