O presidente argentino Javier Milei sofreu neste domingo (7) sua derrota mais expressiva desde que chegou à Casa Rosada. Nas eleições legislativas da província de Buenos Aires, que concentra cerca de 40% do eleitorado nacional, a coalizão peronista Força Pátria, liderada pelo governador Axel Kicillof, venceu com 46,93% dos votos, contra 33,83% da Liberdade Avança. 

Outros partidos, como Somos (5,41%) e a esquerda (4,37%), ficaram em posições secundárias.

A eleição é tratada na Argentina como um verdadeiro plebiscito antecipado sobre o governo de extrema direita.

O resultado garantiu ao peronismo 34 das 46 cadeiras em disputa na Legislatura provincial. Nas eleições anteriores, realizadas em 2021, o bloco havia conquistado 29 desses assentos e, portanto, ampliou sua representação em cinco cadeiras. A Liberdade Avança ficou com 26 postos. 

O placar consolidou a vantagem peronista em seis das oito seções eleitorais, incluindo as duas mais populosas.

Projeção do canal C5N mostra vitória da coalizão peronista Força Pátria nas eleições legislativas da província de Buenos Aires, com 46,9% dos votos, contra 33,8% da Liberdade Avança de Javier Milei — Reprodução/C5N

Foi a primeira vez desde o retorno da democracia no país que a eleição provincial ocorreu em data separada do calendário nacional, decisão de Kicillof que contrariou setores do kirchnerismo, mas lhe rendeu dividendos políticos.

A derrota libertária teve efeito imediato sobre o equilíbrio político nacional. O revés em Buenos Aires, somado ao desempenho limitado em províncias como Jujuy, Santa Fe e Corrientes, coloca em xeque a capacidade de Milei de sustentar sua agenda de cortes e reformas. 

A eleição que virou termômetro nacional

As eleições em Buenos Aires foram legislativas, destinadas a renovar parcialmente a Câmara de Deputados e o Senado provinciais. Ao todo, 46 cadeiras estavam em disputa. 

Em quatro seções eleitorais foram escolhidos senadores; nas outras quatro, deputados. Ainda que se tratasse de uma eleição local, o peso político do distrito transformou a disputa em um episódio nacional.

O governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof (Força Pátria), comemora a vitória peronista nas eleições legislativas deste domingo (7), em Buenos Aires — Foto: Reprodução/Agência Argentina

Na primeira seção eleitoral, que reúne o norte e o oeste do conurbano, Gabriel Katopodis (Força Pátria) derrotou Diego Valenzuela (Liberdade Avança) por 47% a 37%. Já na terceira, considerada bastião histórico do Partido Justicialista (partido kirchnerista), Verónica Magario (Força Pátria) impôs um triunfo por 53% a 28% sobre Maximiliano Bondarenko (Liberdade Avança), candidato lançado pelo governo nacional. 

Em La Plata, capital da província, o peronismo venceu Francisco Adorni (Liberdade Avança), irmão do porta-voz presidencial.

A Liberdade Avança conseguiu vitórias apenas na quinta e sexta seções, onde contou com o apoio de aliados do PRO. 

Em Bahía Blanca, Oscar Liberman (Liberdade Avança/PRO) derrotou a lista de Kicillof e assegurou cinco cadeiras de senador para o governo. Ainda assim, o saldo final expôs a fragilidade da estratégia oficial, baseada em alianças improvisadas e na aposta em influenciadores digitais, que não se converteram em votos.

O resultado eleitoral transformou Buenos Aires no epicentro da resistência ao governo nacional. Ao mesmo tempo, projetou Kicillof como principal figura do campo oposicionista, com forte presença territorial e respaldo popular.

Resultados por seção eleitoral – Buenos Aires 2025

  1. Primeira Seção (Deputados – 8 cadeiras)
    Força Pátria (peronismo): 47% → 5 cadeiras
    Liberdade Avança (governo): 37% → 3 cadeiras
  2. Segunda Seção (Deputados – 8 cadeiras)
    Força Pátria: 35% → 4 cadeiras
    Liberdade Avança: 29% → 4 cadeiras
    (Hechos/Passaglia: 23%, sem cadeiras)
  3. Terceira Seção (Deputados – 18 cadeiras)
    Força Pátria: 53,8% → 10 cadeiras
    Liberdade Avança: 28,5% → 6 cadeiras
    Frente de Esquerda: 5,7% → 2 cadeiras
  4. Quarta Seção (Senadores – 5 cadeiras)
    Força Pátria: 40% → 3 cadeiras
    Liberdade Avança: 30% → 2 cadeiras
    (Somos Buenos Aires: 19%, sem cadeiras)
  5. Quinta Seção (Senadores – 5 cadeiras)
    Liberdade Avança/PRO (Guillermo Montenegro): ~44% → 3 cadeiras
    Força Pátria: ~40% → 2 cadeiras
  6. Sexta Seção (Deputados – 9 cadeiras)
    Liberdade Avança (Oscar Liberman): 41% → 5 cadeiras
    Força Pátria: 34% → 4 cadeiras
  7. Sétima Seção (Senadores – 3 cadeiras)
    Força Pátria: maioria absoluta → 3 cadeiras
  8. Oitava Seção (Deputados – 6 cadeiras, La Plata)
    Força Pátria (Julio Alak): 43% → 3 cadeiras
    Liberdade Avança (Francisco Adorni): 37% → 3 cadeiras

Desgaste antecipado e peso histórico da derrota

O fracasso governista não foi um raio em céu azul. Pesquisas realizadas semanas antes já indicavam perda de apoio. Um estudo da consultora QSocial, concluído em 20 de agosto, mostrou que apenas 35% dos argentinos consideravam Milei honesto e menos da metade mantinha algum vínculo afetivo com ele. 

A popularidade do presidente havia caído para 39%, o índice mais baixo desde o início do mandato.

Posteriormente, esse desgaste foi agravado por turbulências econômicas e por escândalos que atingiram diretamente o núcleo do governo. O chamado KarinaGate, revelado por áudios sobre supostas propinas em contratos de medicamentos para pessoas com deficiência, colocou a irmã do presidente no centro de uma crise de credibilidade. 

A associação entre corrupção e descaso com setores vulneráveis teve peso simbólico na percepção pública.

O peso histórico da derrota é evidente. O peronismo não vencia uma eleição intermediária em Buenos Aires desde 2005, quando Cristina Kirchner derrotou Chiche Duhalde. Desde então, o campo havia sofrido sucessivos reveses, inclusive com nomes centrais como Néstor Kirchner, derrotado em 2009, e a própria Cristina, em 2017. A vitória deste domingo foi, portanto, um marco na retomada de protagonismo.

A leitura predominante é que a votação funcionou como um freio político ao governo libertário, corroendo sua narrativa de hegemonia e abrindo espaço para uma reorganização da oposição.

Cinco conclusões e os fatores do revés

Em análise publicada no Página/12, o jornalista Martín Granovsky resumiu o resultado em cinco conclusões: Milei perdeu; Karina perdeu; o governo foi derrotado em seu primeiro grande plebiscito; o peronismo venceu; e Kicillof venceu.

Em sua análise, Martín Granovsky afirma que Milei lidera “o primeiro governo desde o nazismo que transformou os deficientes em alvo humano e orçamentário”, em referência ao escândalo KarinaGate. 

O jornalista lembra que o presidente também é acusado de banalizar o Nunca Mais — relatório da CONADEP, publicado em 1984, que documentou os crimes da ditadura militar e se tornou um dos principais consensos democráticos da memória argentina.

A derrota foi explicada por uma combinação de fatores que se retroalimentaram: o precipício econômico da vida cotidiana, o ataque brutal contra o salário direto e indireto, a crueldade como sistema, a perda de confiança no presidente e, por fim, o escândalo de corrupção envolvendo sua irmã.

Cada um desses elementos corroeu parcelas distintas da base social que sustentava o governo. O resultado final foi uma rejeição em bloco, expressa nas urnas da maior província do país.

Reação presidencial e autocrítica controlada

Diante da derrota, Milei adotou um tom inicial de autocrítica. “Tivemos uma clara derrota e é preciso aceitá-la. Tivemos um revés eleitoral”, declarou em seu bunker em La Plata. Cínico, atribuiu a vitória peronista ao “aparato de 40 anos executado de maneira eficiente” e disse que o resultado representava apenas “o teto do peronismo”.

Acompanhado por ministros como Patricia Bullrich e Federico Sturzenegger, além de sua irmã Karina, o presidente prometeu corrigir erros políticos, mas deixou claro que não alterará sua agenda econômica. 

“O rumo não vai se modificar, será redobrado. Não se retrocede nem um milímetro”, afirmou, listando como pilares o superávit fiscal, a política cambial e as reformas de desregulação.

No discurso, Milei defendeu o legado de seus primeiros meses: disse ter reduzido a inflação de 200% para 20% e tirado 12 milhões de pessoas da pobreza. A avaliação, porém, contrasta com a percepção social de estagnação e queda de renda, reforçada pelas urnas.

A frieza com que cumprimentou Martín Menem, presidente da Câmara de Deputados e aliado estratégico, expôs também tensões internas em sua coalizão, já desgastada por disputas entre diferentes grupos de poder.

Impacto nacional e perspectivas

A eleição em Buenos Aires registrou participação de 63% do eleitorado, bem abaixo da média histórica de 76% para eleições intermediárias. O dado reforça a ideia de apatia eleitoral e crise de representação, que agora atinge também Milei, antes beneficiado pelo desencanto social com a política tradicional.

O resultado amplia a fragilidade do governo às vésperas das eleições legislativas nacionais de 26 de outubro, primeiro grande teste da gestão libertária em nível nacional. O peronismo chega fortalecido, com Kicillof consolidado como liderança e já apontado como potencial candidato à Presidência em 2027.

Internamente, a derrota aprofunda a disputa pela condução da estratégia entre Karina Milei, Sebastián Pareja e os irmãos Menem, criticados pela escolha de candidatos frágeis e pela aposta em influenciadores digitais sem densidade política. A fragmentação de alianças no interior também contribuiu para o revés.

Do outro lado, o peronismo se sente fortalecido e fala em “retomar o caminho da unidade” para projetar um retorno ao poder. Cristina Kirchner, mesmo em prisão domiciliar, celebrou a vitória e ironizou Milei nas redes. A cena política argentina entra, assim, em uma nova etapa, marcada pela erosão precoce do governo libertário e pela rearticulação de seus adversários históricos.

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Last Update: 08/09/2025