
Por Sara Goes
Enquanto analistas falam em racha e os caciques do partido se reúnem em gabinetes, Michelle sobe ao altar com o microfone firme na mão, olhos fechados, voz calma e autoridade espiritual treinada. Não é ruptura. É continuidade em forma de culto. Michelle não desorganiza o bolsonarismo. Ela reorganiza espiritualmente a casa. Se Bolsonaro foi o mito, ela é o testemunho. A versão lavada, ungida, preparada para conduzir a obra.
O bolsonarismo entrou em nova estação. E, nessa fase, já não basta o discurso da bala e do grito. É preciso um novo tipo de guerra, mais sutil e mais emocional. Michelle surge como a guerreira de oração que não precisa de palanque, porque já tem púlpito. Não precisa de plano de governo, porque tem ministério. Não precisa de slogans, porque tem palavra revelada. Onde Bolsonaro dava ordens, ela entrega visões. Onde ele prometia pólvora, ela fala em batalha espiritual. É a mesma cruzada moral, agora temperada com louvor, performance de cura e promessa de vitória para os escolhidos.
Não há contradição entre os dois. Há conversão. Michelle é Bolsonaro depois do batismo, depois da campanha de libertação, depois da conferência de mulheres. Ele ainda é a referência, mas ela é quem fala a língua do rebanho. Ela não substitui. Ela traduz. Se ele dividia o mundo entre patriotas e comunistas, ela o divide entre ungidos e desviados. É a mesma lógica binária, agora com cobertura espiritual. E isso a torna ainda mais eficaz.
Michelle entendeu que a disputa atual não é por argumentos, mas por sentido. E o sentido que ela entrega é o da superação pelo sofrimento, da vitória pelo sacrifício, da guerra travada no secreto. Sua estética fala com uma parcela específica e imensa da população brasileira: as mães que vivem o cuidado extremo, a maternidade exausta de filhos chamados “especiais”, a intercessão solitária de quem reza pelo lar enquanto o mundo desaba.

Com uma filha atípica e uma biografia marcada pelo silêncio e pela conversão, Michelle oferece mais do que identificação. Oferece encarnação. Não se espantem se ela começar a devolver os ataques ao seu passado como testemunho de restauração. No universo que ela habita, não há contradição entre o erro e a bênção. O erro é apenas o caminho para que a glória de Deus se manifeste.
Ela não precisa controlar o partido. Já controla o vocabulário da salvação, a imagem da mulher forte e submissa, o algoritmo das promessas divinas que circulam nas redes como se fossem profecias personalizadas. Seu capital político não é formal, é emocional. Michelle se move como quem foi chamada. Não como candidata, mas como vaso. Como escolhida.
Não governa. Ministra. Não fala. Entrega. Sua política é a da revelação; sua retórica, a do altar. Michelle não racha o bolsonarismo. Ela o consagra. Não para mudar a essência, mas para adaptar a forma. Não para contrariar, mas para continuar. O projeto é o mesmo, agora com unhas feitas, olhos fechados e a certeza de que a missão foi dada. E será cumprida.
Michelle não é rachadura. É unção ao PL. Não veio para dividir o bolsonarismo. Veio para selar. Ela é a inimiga.