Enquanto Gaza arde sob o terrorismo de Estado, a resistência persiste — não apenas nas ruínas, mas nas vozes judias e palestinas que se recusam a calar. O futuro não será escrito por Netanyahu, mas por aqueles que ousam sonhar com uma terra onde justiça não tenha bandeira
Por Michael Löwy, em A Terra é Redonda
Quem governa Israel?
Benjamin Netanyahu e sua claque são os herdeiros de um movimento que nunca escondeu sua natureza criminosa.
Em dezembro de 1948, durante a visita de Menachem Begin, um dos principais líderes do partido Herut, aos Estados Unidos, cerca de trinta judeus americanos, ou melhor, “sionistas de esquerda”, dentre os quais Hannah Arendt e Albert Einstein, enviaram uma declaração ao New York Times denunciando categoricamente esta personagem e seu movimento.
“Aos editores do The New York Times”: “Entre os fenômenos políticos mais inquietantes de nossa época, está o aparecimento, no interior do recém-criado Estado de Israel, do “Partido da Liberdade” (Tnuat Haherut), um partido político que se assemelha muito, em sua organização, métodos, filosofia política e pretensões sociais, aos partidos políticos nazistas e fascistas. Foi criado por membros e simpatizantes do antigo Irgun Zvai Leumi, uma organização chauvinista, direitista e terrorista, na Palestina”. (…)
“Um exemplo chocante foi o que eles fizeram contra a aldeia árabe de Deir Yassin. Esta aldeia, situada fora das estradas principais e cercada por terras judaicas, não tomou parte na guerra e até lutou contra grupos árabes que planejavam instalar uma base ali. Em 9 de abril, segundo o New York Times, grupos terroristas atacaram esta pacífica aldeia, que não era de modo algum um objetivo militar neste conflito, mataram a maioria de seus habitantes (240 pessoas, homens, mulheres e crianças) e mantiveram alguns deles vivos, para que desfilassem, como prisioneiros, pelas ruas de Jerusalém”. (…)
“O incidente de Deir Yassin ilustra o caráter e as ações do Partido da Liberdade. No interior da comunidade judaica, eles pregam uma mistura de ultranacionalismo, misticismo religioso e superioridade racial. (…)”.[i]
No entanto, o atual governo de Israel, hegemonizado pelo Likud (herdeiro direto do Herut de Begin), ultrapassou, de longe, os crimes cometidos por seus antepassados denunciados como “fascistas” por Albert Einstein. É um governo formado por personagens como Itamar Ben Gvir e Bezalel Smotrich, cujo ultranacionalismo racista vai muito além de seus aliados fascistas do Likud. Este governo tornara-se bastante impopular – sobretudo por sua tentativa de liquidar a Suprema Corte – e estava à beira do colapso, ameaçado por manifestações enormes em todas as cidades do país. Foi salvo pelo ataque de 7 de outubro de 2023.
O que aconteceu em 7 de outubro de 2023?
O Hamas, movimento fundamentalista e reacionário que governava a Faixa de Gaza, tinha sido por muito tempo apoiado por Benjamin Netanyahu para dividir o movimento nacional palestino. Numa reunião do Likud, em março de 2019, Benjamin Netanyahu declarou: “Aqueles que querem impedir a criação de um Estado palestino devem apoiar o reforço do Hamas (…)”.
O que aconteceu, portanto, em 7 de outubro? Lemos e ouvimos proposições as mais contraditórias, numa grande confusão. Enzo Traverso propõe uma análise sóbria e objetiva: “O ataque de 7 de outubro, que matou centenas de civis israelenses, pode obviamente ser descrito como um ato terrorista. Não era necessário assassinar e ferir civis, e, além do mais, tais atos sempre prejudicaram a causa palestina. É um crime que nada pode justificar e que deve ser condenado. Entretanto, a necessária condenação destes meios de ação não põe em causa a legitimidade – reconhecida pelo direito internacional – da resistência à ocupação, uma resistência que também implica o uso de armas”.[ii]
Um dos aspectos mais trágicos deste ataque bárbaro foi que muitas das vítimas pertenciam a kibbutzim de esquerda, pacifistas, e, por vezes, estavam até mesmo diretamente envolvidos em atos de solidariedade com os palestinos em Gaza. Se o Hamas tivesse atacado apenas as bases militares e feito reféns duzentos soldados israelenses, poderia ter sido uma vitória política. Mas, o Hamas, depois de muito tempo, tinha optado por ignorar a distinção entre militares e civis como método de luta.
A resposta de Israel é um terrorismo de Estado
A reação do governo israelense foi cem vezes mais terrorista do que o ataque do Hamas. Ela resultou na destruição de Gaza, de suas casas, escolas, hospitais e universidades, e no massacre de mais de sessenta mil habitantes de Gaza (milhares de corpos enterrados sob os escombros ainda não foram contabilizados), a maioria dos quais eram mulheres, crianças e idosos.
Dentre os civis assim assassinados, médicos, enfermeiros, escritores, poetas, músicos, jornalistas, cineastas, trabalhadores da ajuda humanitária e funcionários das Nações Unidas. Há também mais de cem mil feridos, muitos dos quais são crianças mutiladas. Benjamin Netanyahu e sua claque também utilizaram a fome como arma de guerra, impedindo a entrada de alimentos e medicamentos em Gaza. Trata-se, como observa o politólogo Gilbert Achcar em seu recente livro, “do pior episódio do longo calvário do povo palestino”.[iii]
O objetivo agora declarado desta destruição criminosa é a expulsão dos dois milhões de palestinos da Faixa de Gaza, um ato de limpeza étnica sem precedentes. Apesar do apoio de Donald Trump, este projeto é irrealizável, pois nenhum país está disposto a receber um povo inteiro expulso de sua terra.
Trata-se de um crime de terrorismo de Estado, um verdadeiro crime contra a humanidade. Muitos acadêmicos israelenses, como Raz Segal, falam de genocídio. Lee Mordechai, professor da Universidade de Jerusalém, depois de ter rejeitado este termo, mudou de opinião: trata-se de genocídio.
A oposição à guerra fortalece-se até mesmo em Israel
A política de extermínio do governo israelense tem encontrado uma oposição crescente por parte da opinião pública internacional, incluindo a diáspora judaica. Milhares de jovens judeus participaram dos protestos, especialmente nos Estados Unidos. É ridículo acusá-los de “antissemitismo”. Após dois anos de cumplicidade, os governos europeus começam a distanciar-se.
Mas, até mesmo no interior do Estado de Israel, a oposição a esta guerra se estende. Os meios de comunicação referem-se, sobretudo, às famílias dos reféns, que exigem um cessar-fogo e negociações com o Hamas. Estas negociações possibilitaram a libertação de vários reféns e de um número importante de prisioneiros palestinos, mas não de Marwan Barghouti, o “Nelson Mandela palestino”…
No entanto, a rejeição desta guerra bárbara não se limita a estas famílias: é muito mais profunda e ampla. Inclui ONGs como B’Tselem, que defende os prisioneiros palestinos, Standing Together, que reúne judeus e palestinos em oposição à guerra, ou Breaking the Silence, que publica relatos dos crimes cometidos em Gaza; jornalistas do Haaretz, como Gideon Levy e Amira Hass; milhares de oficiais e soldados reservistas, sobretudo na Força Aérea, que publicaram declarações em que se recusam a participar da guerra (o Estado-Maior do Exército reconhece que cerca de 40% dos reservistas não respondem ao apelo); 3.600 israelenses que assinaram um apelo pedindo sanções contra Israel.
As manifestações multiplicam-se, principalmente nas universidades, onde se vêem cartazes proclamando: “Stop the Genocide”, “Palestinian Lives Matter”.
A principal força política desta oposição é o Partido Comunista Israelense (Hadash), cujos diversos deputados, judeus, como Ofer Kassif, que apelou aos soldados para que se recusassem a obedecer às ordens de participar no genocídio, ou árabes, como Ayman Odeh e Aida Touma-Souleiman, foram suspensos do Knesset (Parlamento) por terem denunciado a guerra. Para os comunistas e para os israelenses mais críticos, todo o empreendimento colonialista na Cisjordânia e em Gaza deve ser rejeitado.
Que futuro?
Para além da guerra e dos massacres, podemos imaginar um futuro comum para judeus israelenses e árabes palestinos?
Para o grande escritor palestino Elias Sanbar, antigo embaixador da Palestina na UNESCO, o primeiro passo seria “o reconhecimento pleno e antecipado da Palestina” (nas fronteiras da Linha Verde de junho de 1967): “O que impede as nações soberanas de reconhecerem plenamente um país, mesmo que a soberania deste país esteja cativa de um ocupante poderoso?”.[iv]
A esquerda na França e em outros países está dividida entre partidários de um Estado, de dois Estados, de uma federação binacional, etc. Eu gostaria de acrescentar uma outra ideia: uma confederação democrática, socialista e multinacional dos povos do Oriente Médio. Seria um sonho? Claro que sim, mas, como dizia Lênin, “é preciso sonhar”…
Michael Löwy é diretor de pesquisa em sociologia no Centre Nationale de la Recherche Scentifique (CNRS). Autor, entre outros livros, de O que é cristianismo da libertação?: Religião e política na América Latina (Expressão popular). [https://amzn.to/3S1rYf4]
Tradução: Fernando Lima das Neves.
Notas
[i] O jornalista grego Giorgo Mitralias redescobriu este documento e publicou-o em seu blog. [ii] Enzo Traverso, Gaza devant l’histoire, Québec, Lux, 2025, p. 88. [iii] Gilbert Achcar, Gaza, génocide annoncé. Un tournant dans l’histoire mondiale, Paris, La Dispute, 2025. [iv] Elias Sanbar, “La dernière guerre ?”. Palestine, 7 octobre 2023 – 2 avril 2024, Paris, Gallimard, “Tracts”, n° 56, 2024*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.