O império em queda e o mundo que nasce — Michael Hudson e a ascensão do BRICS
por Maria Luiza Falcão Silva
O economista e professor estadunidense Michael Hudson tem sido uma das vozes mais lúcidas e provocadoras ao analisar a decadência dos Estados Unidos (EUA) como potência global e a emergência de uma nova ordem multipolar.
A tese de que os Estados Unidos vivem um momento de derrocada imperial não é nova. Mas ganha força e precisão nas mãos de Hudson, que vem se destacando como um pensador proeminente da transição geopolítica em curso. Para Hudson, estamos testemunhando o fim de um ciclo de dominação baseado no dólar, no endividamento global e no poder militar norte-americano e o nascimento de um mundo multipolar, ancorado em alianças como o BRICS+.
A hegemonia do dólar como instrumento de dominação
No centro da análise de Hudson está a ideia de que os EUA construíram seu império não tanto pela produção, mas pelo controle financeiro. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial e especialmente após o fim do padrão ouro em 1971, o dólar tornou-se uma moeda internacional sem lastro, usada para financiar déficits, impor sanções e sustentar um sistema de endividamento externo que subordina países inteiros ao Tesouro americano e ao Fundo Monetário Internacional (FMI).
Hudson chama esse modelo de imperialismo financeiro. Em vez de ocupar territórios com exércitos, os EUA controlam economias por meio de dívidas impagáveis, condicionadas a políticas neoliberais que fragilizam Estados nacionais e concentram renda.
A decadência de um império baseado na financeirização
Para Hudson, essa dominação chegou a um ponto de esgotamento. A financeirização da economia americana — ou seja, a prioridade dos lucros financeiros sobre o investimento produtivo — criou uma bolha de especulação, desindustrialização e desigualdade interna. O Estado norte-americano transformou-se em defensor dos rentistas, e não da maioria da população. Isso corroeu as bases sociais e políticas da sua liderança global.
Michael Hudson não está apenas falando de crise econômica, está falando do colapso de uma forma de dominação global. Para ele, os EUA deixaram de ser uma potência produtiva há décadas. Em vez de investir em indústria e inovação, optaram por um caminho mais fácil (e mais destrutivo): dominar o mundo por meio das finanças.
O dólar virou arma. O déficit virou política de Estado. Dívidas viraram mecanismos de controle. Em lugar de tanques, contratos. No lugar de exércitos, agências de rating. No lugar de diplomacia, sanções unilaterais.
Esse modelo funcionou enquanto o mundo aceitava o dólar como moeda incontestável. Mas isso começou a mudar. Cada sanção imposta a países como Rússia, Irã ou Venezuela acelera a busca por rotas alternativas. Cada golpe financeiro no Sul Global fortalece o desejo de soberania. E cada nova crise interna nos EUA — de inflação à polarização política — mina a confiança de aliados e parceiros. Isso vem levando várias economias a buscar alternativas ao sistema financeiro dominado por Washington. O sistema está quebrando e o mundo está respondendo
A ascensão do BRICS e a alternativa multipolar
É nesse contexto que surge o BRICS. Mais do que uma sigla, o BRICS representa hoje uma aposta na multipolaridade. China, Rússia, Brasil, Índia, África do Sul, agora somados a novos membros como Emirados Árabes Unidos, Irã, Indonésia, Egito, Etiópia e Arábia Saudita – o BRICS+ -, estão construindo uma infraestrutura paralela: comércio em moedas locais; sistemas de pagamento fora do Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (SWIFT, na sigla em Inglês); Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na sigla em inglês) – banco de desenvolvimento independente do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial; cooperação energética e tecnológica fora do eixo OCDE-FMI. Para Hudson, isso é revolucionário: é a primeira vez desde 1945 que um bloco coeso tenta sair da órbita do dólar.
O BRICS+ surge como uma resposta coletiva ao esgotamento da ordem unipolar.
Mais do que uma aliança comercial, o BRICS+ sinaliza a recusa em aceitar o modelo neoliberal imposto pelo Ocidente. São países que, com todas as suas contradições, querem defender sua soberania econômica e política. Para Hudson, isso não representa apenas uma disputa geopolítica, mas um embate de paradigmas: produção versus financeirização; soberania versus dependência; multipolaridade versus hegemonia.
Uma transição perigosa — um futuro em disputa
Hudson não romantiza o BRICS. Ele reconhece que o bloco é desigual, que há contradições internas, interesses conflitantes e limitações estruturais. Mas, ao mesmo tempo, insiste que é a única alternativa concreta à hegemonia financeira dos EUA e à destruição neoliberal do planeta.
A perspectiva de Hudson não é triunfalista. Sugere que essa transição será conflituosa, turbulenta. Washington não renunciará a seu domínio sem reagir. As “guerras por procuração”, os golpes de mercado, as sanções, as sabotagens e bloqueios econômicos devem continuar. Mas os ventos da história estão mudando, a velha ordem está ruindo e o mundo precisa se preparar para construir algo novo, mais justo e sustentável.
Nesse sentido, suas ideias dialogam com outros economistas críticos do centro do sistema, mas se destacam pela clareza com que articulam economia e geopolítica. Em um momento em que o Brasil se posiciona novamente como ator global e a cúpula do BRICS+ (em julho no Rio de Janeiro) e a COP 30 (em novembro em Belém), se aproximam, pensar como Hudson é inspirador e ousado. O clima e a geopolítica estarão entrelaçados. É preciso resistir, avançar e reconstruir.
Hudson nos alerta que a financeirização é um câncer que corrói democracias e impede o desenvolvimento. Que a soberania econômica é condição para qualquer projeto nacional. E que um mundo multipolar não é só possível — é urgente.
Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA.
O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
“Democracia é coisa frágil. Defendê-la requer um jornalismo corajoso e contundente. Junte-se a nós: www.catarse.me/jornalggn “