Mestre Tadeu: o mestre que dita o ritmo no coração do Bixiga

por Daniel Costa

O Vai-Vai, uma das mais tradicionais agremiações do carnaval paulistano e detentora do maior número de títulos no Grupo Especial, consolidou-se não somente por seus sambas memoráveis e comunidade aguerrida, mas também por sua magistral ala de compositores, velha guarda e uma das baterias mais respeitadas de São Paulo. A agremiação do Bixiga também ficou conhecida por formar uma linhagem de excepcionais apitadores, desde a época dos cordões: verdadeiros mestres do comando sonoro, capazes de guiar o ritmo dos batuqueiros com precisão e cadência única. Um dos maiores símbolos dessa tradição é Valter Gomes de Oliveira, o lendário Pato N’Água, que dirigiu a bateria por anos, sendo aclamado por críticos, estudiosos e principalmente por seus pares como o melhor apitador da cidade. Seu legado junto à alvinegra do Bixiga se soma ao de outros grandes nomes, como Livinho, Flavinho, Wanderlei, Louzazinho, Bolinha, Pé Rachado (uma das grandes lideranças da escola) e Feijoada, este último o derradeiro apitador da era em que o Vai-Vai ainda era um cordão carnavalesco.

Essa “escola” de apitadores não surgiu por acaso. Desde 1966, quando a bateria já contava com 165 integrantes e, nas palavras de Sebastião Amaral (Pé Rachado), “era só caixa, bumbo, cuíca”, o Vai-Vai investiu na formação técnica e na identidade única de seus comandantes e ritmistas. Cada um desses mestres não apenas manteve o pulso firme da bateria, mas também imprimiu sua personalidade ao som que ecoava nos ensaios pelas ruas do bairro. Desde os primórdios na Rua Rocha, passando pela 14 de Julho, São Vicente, até os ensaios na Rui Barbosa, transformando o apito (e a própria bateria, do cordão à escola de samba) na voz da resistência negra e do autêntico samba paulistano.

Criado em 1930, o então Cordão Esportivo Carnavalesco Vai-Vai surgiu no Bexiga, fundado por Fredericão, Dona Iracema, Tino, Guariba e outros, originando-se de um clube de futebol homônimo em rivalidade com o Cai-Cai. Sua estreia no carnaval foi marcada por fantasias de marinheiro, em preto e branco, cores do time, seguindo a estrutura tradicional dos cordões, mas com inovações como o estandarte carregado por uma mulher, no caso Dona Iracema. Apesar da ausência de enredos, o grupo já incorporava elementos dinâmicos, como fileiras laterais e a presença feminina em destaque, como a jovem D. Sinhá, única mulher entre os balizas.

Ainda na década de 1930, o Vai-Vai introduziu figuras como a rainha e a “dama de negro”, idealizada por D. Olímpia, reforçando sua identidade cromática. Seu repertório musical era composto por sambistas como Tino e Guariba, enquanto a bateria ganhava notoriedade com os já citados apitadores como Livinho, Pato N’Água e Sebastião Eduardo Amaral (Pé Rachado), que ingressou no cordão em 1933. Mineiro e ex-congadeiro, Pé Rachado tornou-se diretor da bateria após anos de dedicação, assumindo o posto de apitador por acaso. Em depoimento prestado ao Museu da Imagem e do Som, ele destacou o ápice do cordão nos anos 1930 e as inovações trazidas estética e musicalmente, ressaltando a importância dos instrumentos de couro, como bumbos múltiplos e a inovadora caixa carioca, precursora do repinique.

Foi nesse ambiente que a identidade de nosso personagem, Antônio Carlos Tadeu (Mestre Tadeu), foi forjada. A história do samba paulistano e da bateria do Vai-Vai encontra assim sua expressão mais autêntica em sua trajetória e no legado que ajudou a construir ao longo de cinco décadas. Quando o jovem Tadeu ingressou no Vai-Vai em 1969 como simples tocador de surdo, mal imaginava que entraria para a história do carnaval brasileiro.

Nascido na capital paulista, Tadeu iniciou sua jornada nos anos 1960 na Lavapés, uma das escolas mais antigas da cidade, então sediada no Glicério. Em 1974, com somente 23 anos, assumiu o comando da “Pegada de Macaco”, tornando-se o mestre mais jovem da agremiação. “Era um desafio ser mestre naquela época, pois assumi durante a ditadura. Naquele tempo, o samba era considerado subversivo”, recorda.

Sua genialidade transformou a bateria do Vai-Vai em referência nacional. Enquanto muitas escolas se rendiam ao estilo carioca, Tadeu forjou uma identidade paulista inconfundível: as caixas rufadas com autoridade, os surdos graves e um timbal que cortava o ar como faca, mantendo a base melódica inspirada nos batuques de Pirapora e na época em que a agremiação desfilava ainda como cordão. “Copiar o Rio é fácil. Nossa pegada tem a aspereza de São Paulo”, dizia. Essa fidelidade à tradição rendeu-lhe o título de “Patrimônio Vivo do Samba”, concedido pela Assembleia Legislativa de São Paulo (ALESP).

A deputada estadual Ediane Maria (PSOL) destacou a importância de celebrar figuras como Tadeu no Legislativo Paulista: “Ele é o maior colecionador de vitórias do nosso carnaval e simboliza a grandeza do samba paulista e da Vai-Vai”. Já a cantora, compositora e deputada Leci Brandão (PCdoB) enalteceu sua assinatura única: “Ele tem um talento especial, uma presença que marca profundamente o samba e a comunidade do Bixiga”.

A escola que Tadeu ajudou a consagrar nasceu nos anos 1930 como cordão no Bexiga, bairro estigmatizado onde negros, artesãos e lavadeiras criaram redes de resistência. Transformada em escola de samba em 1972, a agremiação tornou-se referência do carnaval paulistano. Como descreve Iêda Marques de Britto, os desfiles iniciais, com fileiras laterais e o estandarte carregado por Dona Iracema, eram atos políticos, antes mesmo que o termo fosse cunhado.

O Vai-Vai diferenciou-se dos demais cordões pela sonoridade única, com predomínio de surdos, bumbos e caixas, além da menor influência do choro em sua formação instrumental, como observou Pé Rachado em entrevista à pesquisadora Ieda Britto. Transformado em escola de samba no final dos anos 1960, o grupo manteve suas cores icônicas e o luxo dos desfiles, perpetuando uma trajetória que começou nas ruas do Bixiga. Sua história, marcada por figuras como Dona Iracema e Pé Rachado, reflete não apenas a evolução do carnaval paulistano, mas também a resistência cultural de uma comunidade que moldou a identidade do samba em São Paulo.

Nos bastidores, a realidade era dura: “As pessoas jogavam dinheiro para a escola, pois não tínhamos patrocínio. Hoje, muitos só pensam em dinheiro. Tem que amar sua escola de samba, sem isso, nada adianta”. Mesmo assim, sob seu comando, o Vai-Vai conquistou quinze títulos do Grupo Especial e cinco Estandartes de Ouro — recorde absoluto no quesito bateria.

A bateria do Vai-Vai, sob o comando de Mestre Tadeu, é sinônimo de excelência musical. Considerada o “coração da escola”, seu pulsar anima os componentes e eletriza a torcida. Como observa Reinaldo Silva Soares, sua importância é tão crucial que, em caso de empate (dependendo do critério de sorteio), é a nota da bateria que define a campeã.

O processo de formação dos ritmistas é rigoroso. Diferentemente das alas comuns, exige domínio técnico comprovado. Os candidatos passam por um verdadeiro rito de passagem, sendo avaliados pela precisão rítmica, postura e capacidade de seguir os sinais do mestre. Os aprovados ainda enfrentam um período de aperfeiçoamento antes de integrar os ensaios gerais.

Essa busca pela perfeição resultou em uma estrutura organizacional exemplar. Liderada pelo mestre e dividida em sub-alas especializadas, a bateria do Vai-Vai é aclamada como “a que faz a Paulicéia tremer”, recebendo elogios constantes da diretoria e do público. Seu espírito coletivo e dedicação à excelência musical a tornam um dos maiores orgulhos da agremiação.

Hoje, aos 73 anos, Tadeu divide a batuta com Mestre Beto, supervisionando pessoalmente essa transição geracional. “Ninguém é eterno”, reconhece, enquanto ensina os segredos da batida perfeita à quarta geração de ritmistas. Sua filosofia permanece a mesma: “Tem que amar sua escola de samba”.

A bateria do Vai-Vai, sob o comando de Tadeu, é mais que um conjunto de instrumentos: é um monumento vivo à capacidade de transformar dor em arte, preconceito em orgulho e batucada em história. Enquanto seu surdo ecoar pelas ruas do Bexiga, o samba paulistano terá voz e vez. Nessa simplicidade reside a grandeza de um homem que fez do Bixiga o berço do melhor samba de São Paulo.

Daniel Costa é historiador, pesquisador, compositor e integrante do G.R.R.C. Kolombolo diá Piratininga.

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Last Update: 18/04/2025