Com a megalomania que lhe é peculiar, Donald Trump está de volta à Casa Branca. Embora seu discurso de posse tenha sido predominantemente voltado à política doméstica americana, suas palavras acendem um sinal de alerta para o Brasil, especialmente em relação às eleições de 2026. É o que pensa o ex-ministro Rubens Ricupero, ouvido nesta segunda 20 por a CartaCapital.

“Basta lembrar disso e imaginar o que pode acontecer daqui a dois anos. Quando houver eleições no Brasil em 2026, quem estará no poder nos Estados Unidos será Trump. E ainda tem aquele elemento perturbador do Elon Musk“, advertiu o diplomata, também ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento.

Ricupero evoca a atuação do governo de Joe Biden para assegurar o respeito ao resultado das urnas na disputa presidencial de 2022 no Brasil. Quando Jair Bolsonaro (PL) convocou embaixadores em Brasília para questionar a legitimidade do processo eleitoral, os Estados Unidos reagiram com uma nota enfática endossando a confiabilidade das urnas eletrônicas brasileiras.

Em 2023, o jornal Financial Times revelou que a movimentação de bolsonaristas preocupou os norte-americanos e que a gestão Biden trabalhou nos bastidores entre 2021 e 2022 para “transmitir a mensagem” em favor da democracia sem promover uma intervenção direta na política do Brasil. O democrata também reconheceu rapidamente a vitória de Lula (PT).

Lula e Trump mantêm, por óbvio, uma relação fria e distante. Por aqui, o republicano tem boa interlocução com Jair Bolsonaro — por ora, carta fora do baralho eleitoral — e com um dos filhos do ex-presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP). Ex-estrategista do novo chefe da Casa Branca, Steve Bannon apresentou o parlamentar como “futuro presidente do Brasil”.

“Embora eu não veja nada de específico e direto, a atmosfera geral azedou muito”, resume Ricupero. “Imagino que aqui do nosso lado haverá um cuidado redobrado de evitar qualquer coisa que possa ser vista como uma provocação.”

Leia os destaques da entrevista:

CartaCapital: Qual o saldo das primeiras palavras de Trump como presidente novamente?

Rubens Ricupero: O discurso dele confirmou tudo o que havia anunciado que faria nos últimos tempos. Ele dá muita ênfase, como sempre, àquela ideia de que os Estados Unidos estavam em decadência e que ele é o homem escolhido por Deus para reverter isso. Não é imaginação minha, ele diz mesmo que não foi atingido por aquele atentado na Pensilvânia porque Deus quis preservá-lo para esta missão. Daí já se tem uma ideia da megalomania que traz.

O primeiro grande tema do discurso dele é a fronteira sul, a fronteira com México, onde ele diz que impedirá a entrada de novos imigrantes e de onde deportará milhões de “criminosos”.

Em seguida, continua com essas deduções, inclusive incorporando temos recentes como esse do Canal de Panamá. Tudo com afirmações falsas. O discurso dele, em geral, é voltado para dentro, enfático nessa prioridade que dará aos problemas domésticos, inclusive à economia.

Fala de redução da inflação, que inaugurará uma nova era dourada para os Estados Unidos e que abandonará as políticas de Biden de transição verde. Ele diz claramente que as bases da futura grandeza serão o petróleo e o gás baratos e que, por isso, os Estados Unidos perfurarão em toda parte, para terem uma vantagem comparativa em matéria de manufaturas.

CC: O que muda em relação ao Brasil?

RR: O Brasil não parece ser o foco principal da atenção dele. É capaz de sermos atingidos por aquela política geral que ele anuncia de tarifas, de proteção do mercado americano, mas ele não é muito específico nessa matéria, nem faz referências ao Brasil ou ao BRICS, com a ideia de uma moeda comum do bloco. Ele não volta a falar nisso. Aliás, fala muito pouco de assuntos internacionais. A própria China não aparece tanto quanto tinha aparecido na campanha e em outras ocasiões.

Não há dúvida nenhuma de que ele terá um efeito muito disruptivo. Ele chega ao poder no momento em que a situação mundial é caracterizada pelo abandono gradual dos padrões e das normas do passado. Esses últimos dez anos têm marcado uma deterioração grave, com esse antagonismo com a China — que antes não não era tão palpável — e com a questão da Rússia.

O que me impressionou é que é um discurso maciçamente voltado para dentro, com relativamente pouca coisa de explícito sobre o mundo. Mas implícito, sim, porque ele anuncia uma política muito voltada aos interesses americanos, com o uso do poderio americano, e não deixa claro, por exemplo, como aplicará esse poderio no objetivo de anular aquele acordo com o Panamá, por exemplo.

CC: Mas o novo governo Trump impõe riscos econômicos e políticos ao Brasil?

RR: De maneira geral, embora o Brasil não pareça estar na mira dele de uma maneira especial, para o Brasil é ruim, sobretudo por esses aspectos: a questão do clima, a questão do comércio, o efeito que essas medidas terão na economia — talvez tornem o dólar mais forte e, portanto, afetem as relações externas do País.

Mas, além disso, acho que o efeito é muito negativo na política interna. Porque é óbvio que entre Trump e Lula existe uma incompatibilidade praticamente absoluta. Eles estão em posições absolutamente opostas. E é claro que as simpatias dele aqui no Brasil vão para a extrema-direita, o Bolsonaro, o filho do Bolsonaro.

Eles terão uma postura muito diferente daquela de Biden. E se a gente levar em conta como foram as últimas eleições aqui, com o papel que os americanos tiveram em ajudar que não houvesse nenhum golpe…

Basta lembrar disso e imaginar o que pode acontecer daqui a dois anos: quando houver eleições no Brasil em 2026, quem estará no poder nos Estados Unidos será Trump. E ainda tem aquele elemento perturbador do Elon Musk.

Embora eu não veja nada de específico e direto, a atmosfera geral azedou muito. Imagino que aqui do nosso lado haverá um cuidado redobrado de evitar qualquer coisa que possa ser vista como uma provocação. Por exemplo, a reunião do BRICS. Imagino que quando acontecer, não se falará de uma nova moeda. Faço votos para que se evite qualquer coisa desse tipo, o ambiente é ruim.

Provavelmente, no continente a simpatia dele irá toda para a Argentina. Milei e os argentinos seguramente procurarão capitalizar isso em favor próprio.

CC: Canadá, Canal do Panamá, Groenlândia… Há um risco real de expansionismo territorial por meios militares?

RR: O mundo de hoje surpreende porque coisas como essa nunca passariam pela cabeça de uma pessoa normal há alguns meses. Seriam inconcebíveis, mas hoje se tornaram até uma coisa comum.

Não excluo, mas não acho provável, porque o que se ressalta do discurso é uma atenção quase exclusiva aos problemas internos. Tem uma hora em que ele diz que quer ser conhecido como um pacificador. Ele quer que as pessoas se orgulhem das guerras em que os Estados Unidos não se meteram. Isso é muito contrastante com a tradição americana, que sempre foi de muita intervenção.

Não vejo no discurso e nos exemplos concretos até agora que haja uma prioridade muito grande ao mundo exterior, embora a atitude geral seja inquietante, porque é uma pessoa que não respeita normas.

Tarifa é uma coisa que qualquer país pode impor. Viola acordos, pode criar problemas, outros retalharão, mas se ele quiser fazer isso, pode fazer.

CC: Os EUA devem sair de novo do Acordo de Paris. Qual será o tamanho do retrocesso ambiental dos próximos quatro anos?

RR: Só espero que depois disso ainda haja tempo de reverter, mas ninguém sabe. Infelizmente, o que se sabe da deterioração do clima é que as coisas têm sido sempre piores do que as previsões.

Ninguém sabe quando se atingirá aquele ponto em que não há mais retorno. Então, não sei até que ponto essa atitude não gerará uma consequência irreversível. Será muito negativo. Inclusive, a nossa reunião de Belém neste ano [COP30] sofrerá muito o impacto disso.

CC: Há um aparentemente frágil cessar-fogo em Gaza, mas seguem a guerra na Ucrânia e as tensões em Taiwan. O que é possível projetar sob Trump 2.0?

RR: Não vi no discurso que ele dê prioridade a isso, nem mesmo ao caso de Gaza. Ele menciona mais o episódio da libertação dos reféns do que outra coisa.

No caso da China, devido a um problema comercial, haverá medidas tarifárias. Mas não vejo, como diplomata, que o discurso contenha pistas de que ele se apresse em uma postura mais proativa. Não vejo nele uma vocação intervencionista — acho que as pessoas têm essa tendência porque, de fato, os governos americanos têm essa posição há muito tempo. Eles todos são intervencionistas, tem sido muito claro. Mas este aqui é diferente, é uma figura de certa forma mais voltada para dentro do que para fora.

E em Gaza, o acordo parece muito frágil. O próprio primeiro-ministro de Israel já disse que é uma coisa temporária. Eu não apostaria nem uma cerveja em que esse cessar-fogo dure até o terceiro estágio.

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Last Update: 20/01/2025