Tereza de Benguela vive em cada mulher negra que se recusa à subalternidade, que tece comunidades e que luta por terra. Foto:  Filipe Augusto Peres.

Por Jan Schoenfelder*
Para Página do MST

A participação das mulheres negras na luta abolicionista ainda é pouco reconhecida, apesar de seu papel decisivo. Muito antes da formação de movimentos organizados, elas já enfrentavam o racismo e o patriarcado, articulando formas de resistência e liberdade fora dos registros oficiais.

Pesquisadoras vêm resgatando figuras como Maria Firmina dos Reis e Chiquinha Gonzaga, mas o processo de invisibilização continua. Hoje, a cidadania negra permanece limitada — não mais pela escravidão formal, mas pelas estruturas persistentes do racismo e do patriarcado.

A socióloga Luiza Bairros, por exemplo, lembrava que reduzir essas mulheres à condição de vítimas é apagar sua potência política e histórica. O passado, nesse sentido, não é apenas memória: é uma força ativa que contesta a narrativa de que a resistência negra foi secundária na construção do país.

Para entender este contexto histórico e conhecer os seus efeitos para as lutas do presente, conversamos com a professora e historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto**, da Universidade de Brasília (UNB), neste 25 de julho – Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. Neste diálogo, podemos compreender passado ecoa ainda hoje, desafiando a ideia de que a resistência negra é mero coadjuvante na história.

Historiadora, Ana Flávia Magalhães Pinto (UNB), avalia que muitas histórias de mulheres negras não se perderam no anonimato e passaram a ser recuperadas nas pesquisas científicas, tornando visíveis a agência das mulheres negras no abolicionismo. Foto: Arquivo pessoal.

Leia abaixo na íntegra a entrevista:

MST – Muito pouco se fala de mulheres negras na história do abolicionismo. Quem eram essas mulheres e como era a participação delas?

Ana Flávia Magalhães Pinto (AFM) – Antes do abolicionismo organizado, mulheres negras já lutavam por liberdade e até mesmo viviam na liberdade, confrontando os limites impostos a elas por uma sociedade estruturada em hierarquias de raça e gênero. A historiografia brasileira nos últimos cinquenta anos tem produzido importantes resultados de pesquisa que tornam visíveis essas agências de mulheres negras. Infelizmente, fazer com que esse repertório ganhe grandes públicos ainda é um grande desafio, pois as matrizes de memória hegemônicas estão fundamentadas na reprodução desse apagamento e é difícil furar essa bolha. Mas é fato que já contamos com um movimento que lida com essa demanda, voltado à superação dessa fragilidade. Quanto à presença de mulheres negras, são muitas as histórias de mulheres negras que não se perderam no anonimato em seu tempo, sobretudo nos anos finais da escravidão legal, e que estão sendo lembradas hoje, como Maria Firmina dos Reis, Chiquinha Gonzaga, Cacilda dos Reis, Amanda Paranaguá Dória, Claudina Fortunata Sampaio. Isso sem falar em milhares de outras que atuaram em períodos anteriores.

MST – Os dilemas das mulheres negras livres e os limites da cidadania negra têm hoje parecença com o que acontecia nos tempos abolicionistas? Escravização e racismo têm o mesmo peso?

AFM – Sim. Ainda vivemos interdições semelhantes aos que eram postos à cidadania de mulheres no momento da independência, há duzentos anos, e que têm sido atualizadas ao longo do tempo. A escravidão não explica tudo. O racismo é algo que precisa ser bem compreendido. Luiza Bairros, importantíssima intelectual-ativista negra e intérprete do Brasil, há cerca mais de uma década, bem no contexto deste Julho das Pretas, disse o seguinte: “Eu tenho uma dificuldade muito grande de falar sobre mulheres negras desse lugar de vítima, da oprimida, da mais explorada, etc. […], porque eu não acredito mais nisso. Você pode me mostrar todas as estatísticas e eu as consulto com certa frequência e vejo as mulheres negras nos grandes números. Elas permanecem na situação de desvantagem total, mas isso não é o mesmo que dizer que elas vivem uma situação de se deixar abater ou se deixar vencer pelos obstáculos colocados pela sociedade. É por isso que, mesmo a partir da desvantagem social, nós tivemos e temos as condições para criar novos rumos para as nossas vidas; e ao criar rumos novos para as nossas vidas, nós criamos esses rumos também para o conjunto da comunidade negra”. É dessa forma que tenho me esforçado para compreender a existência das mulheres negras em nossa sociedade. 

MST – O estudo da história das resistências socioculturais afrobrasileiras permite resgatar ou forjar a identidade dos negros no Brasil?

AFM – Apenas colecionar episódios de resistências socioculturais afro-brasileira não resolve o problema que estamos enfrentando. Podemos levantar milhares de histórias e isso não alterar um problema básico: a ideia de que as pessoas negras são coadjuvantes numa narrativa em que o grande protagonista é o sujeito branco, concentrador de renda e poder. Temos vivido uma perigosa exposição a uma matriz narrativa em que nós pessoas negras somos sistematicamente apresentadas como complemento ou medida de referência para a afirmação da grandeza de pessoas brancas. Disso decorre o vício em encontrar a figura negra que faria as vezes de uma personalidade branca: ele é o Hegel negro, para posicionar um grande filósofo negro.

Há um historiador haitiano que o Brasil precisa ler com bastante atenção, chamado Michel Rolph Trouillot, que nos ensina tanto a dimensionar esse problema quanto a pensar para além dessas matrizes de sentidos. Em seu livro “Silenciando o passado”, ele diz algo que tenho repetido nos meus cursos e diálogos cotidianos por considerar decisivo. Segundo ele, as narrativas são forças menos visíveis que o arsenal bélico, a afirmação da propriedade e as confrontações políticas explícitas. Mas nem por isso elas são menos poderosas. Por isso, precisamos, sim, promover um mapeamento voltado a reposicionar as vidas negras na história, mas isso não deve significar apenas tirá-las do esquecimento e colocá-las como elemento decorativo numa paisagem em suas existências não deem medida ao vivido em sua profundidade. Porque não foi assim que a gente negra sobreviveu a sistemáticos projetos de destruição.

MST – Pode-se afirmar que existe um conceito de negritude brasileiro?

AFM – Se por negritude você se refere ao entendimento do que é ser uma pessoa negra, eu diria que esse é um conceito em disputa. Ao longo de gerações, que remontam pelo menos ao século 19, intelectuais-ativistas negros/as têm analisado as experiências de africanos e seus descendentes no Brasil. Não por acaso, muitos têm destacado que as promessas da chamada mestiçagem não produzem a redenção prometida aos menos escuros, embora isso seja um artifício importante nos jogos de poder que produzem uma hierarquização racial perversa, responsável por uma das mais profundas desigualdades sociorraciais do planeta.

Nesse sentido, desde o final do século 20, quando houve inclusive a reinserção do quesito cor/raça no Censo promovido pelo IBGE, a produção e a análise de dados estatísticos desagregados por raça/cor permitiram evidenciar aquilo que se sabia por meio da observação cotidiana: pretos e pardos, na condição de pessoas racializadas e associadas negativamente ao passado escravista e colonial, vivenciam experiências muito próximas, sobretudo no que diz respeito às interdições à cidadania e aos direitos humanos. Trata-se de um quadro em que pretos, pardos e indígenas vivem em condições opostas aos brancos.

Havendo marcas da ascendência africana nos corpos e na cultura e sendo difícil a afirmação do pertencimento étnico no que diz respeito à ascendência indígena, o Movimento Negro estabeleceu um arranjo conceitual em que a somatória de “pretos” e “pardos” corresponderia ao contigente populacional “negro”. A mestiçagem, como instrumento de estabilização do racismo à brasileira, foi então desafiada. Ocorre que esse é um dos pilares do racismo como patrimônio brasileiro.

Quando me refiro ao racismo como patrimônio nacional estou querendo chamar atenção para o fato de que, ao longo de séculos, temos assistido a esforços especialmente protagonizados pelas elites brancas locais de instituir e naturalizar as desigualdades raciais, que passam por interditar as possibilidades de articulação entre quem é racialmente discriminado nesta sociedade. Isso faz com que, mesmo com tantas evidências, a definição sobre o que é ser uma pessoa negra no Brasil segue em disputa.

MST – Como se dá a resistência negra contemporânea no Brasil?

AFM – As organizações e ativistas dos Movimentos Negro e de Mulheres Negras atuam nas mais diferentes frentes no Brasil e têm produzido resultados em todas elas. Mesmo que aquém das demandas, em muitos casos, dada gravidade dos problemas enfrentados, esses resultados têm sido eficientes em impedir projetos de genocídio e epistemicídio e isso não é pouca coisa. Historicamente, a maneira como o movimento negro atua desafia modelos convencionais e faz com que muitos não percebam ou admitam a sua capilaridade e seu impacto.

Dado o seu alcance, muitos questionam o fato de que o movimento negro não consegue se fazer um movimento de massas. Mas como dizer que um movimento é tímido e limitado e produz a mudança na própria percepção que o brasileiro tem da sua imagem nas últimas décadas? Como um movimento sem relevância induz um processo de alteração da expectativa de uma população inteira por acesso ao ensino superior? Como um movimento é inócuo, mas incomoda grupos hegemônicos quando o assunto é segurança pública? Enfim, a resistência negra está aí para quem tem olhos para ver ou que limpou as lentes para enxergar melhor.

MST – O que o significado universal do conceito negritude implica? E o conceito de branquitude?

AFM – Primeiramente, “negritude” e “branquitude” não são termos que funcionam em oposição e em condição de equivalência. O conceito de negritude foi criado na primeira metade do século 20, bastante associado a formulações de intelectuais negros em diáspora. A impressão de que ele teria sido formulado na França advém da importância que determinados encontros tiveram na promoção da consolidação da categoria.

Ocorre que essa formulação passa pela percepção de experiências compartilhadas e pela formulação de uma comunidade imaginada em perspectiva transnacional. Negritude torna-se, portanto, uma plataforma de afirmação das existências e da humanidade de gente de origem africana no mundo. Isso, por certo, não exclui as possibilidades de reconhecimento de especificidades locais, fruto das peculiaridades dos eventos históricos vivenciados pela diversidade de sujeitos existentes nessa coletividade maior.

Branquitude, por sua vez, é um conceito que está mais associado a uma estrutura de poder firmada na ideia de hegemonia/superioridade da pessoa branca, algo que pode ser observado em diferentes contextos. A branquitude no Brasil se estrutura em alguma medida de forma distinta do que se vê no Canadá ou na Noruega, mas há pontos de convergência que possibilitam a observação para além de uma escala restrita. Ou seja, estamos diante de duas categorias que, se bem operadas, nos ajudam a enxergar coisas que a naturalização do racismo atrapalha.

MST – Somos um país com a maioria da população composta por pessoas negras. Quem não gosta delas sente exatamente o quê?

AFM – Não posso falar por elas, mas acho que elas têm sérios problemas, coisa que compromete sua capacidade de ser humano como algo favorável ao bem comum.

MST – A luta contra o machismo e o racismo terminará como?

AFM – Como terminará, eu não sei. O que sei é que tenho uma vida que decidi dedicar a esta luta. Também intuo que ela terminará se um dia formos capazes de superar estruturas de dominação que demandam a subordinação daquelas e daqueles entendidos como “os outros”.

*Jornalista, Chef de Cozinha e membro do Coletivo de Comunicação do Marmitas da Terra.

**Ana Flávia Magalhães é historiadora, professora da Universidade de Brasília (UnB), e integrante da Rede de Historiadoras/es Negras/os e da equipe Cultne. Atualmente, também atua como coordenadora-geral do GT sobre Arquivos Comunitários da Associação Latino-americana de Arquivos (GTAC/ALA). É coordenadora-geral da exposição “Reintegração de Posse: Narrativas da presença negra na história do Distrito Federal”; e compõe a equipe curatorial da exposição “Constituinte de um Brasil Possível”. Entre 2023 e 2025, foi Diretora-Geral do Arquivo Nacional do Brasil.

***Editado por Pamela Oliveira.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 25/07/2025