Menopausas
por Solange Peirão
Menopausas é o título do documentário sensível da atriz e palhaça argentina Julieta Zarza, de 2022. Mas bem que poderia ser “Malabarismo de Fogo”, tão bonita é a cena que abre o filme, com a figura de Julieta a manipular, com maestria, os volteios incendiados dos bastões.
E até cairia bem, visto que, na sequência, vamos sendo apresentados às verdadeiras peripécias que cercam as mulheres, nessa fase da vida conhecida como menopausa ou climatério. E o interessante é que Julieta teve o cuidado de ampliar esse leque, logo de início, ouvindo não somente as mulheres cis, mas os homens trans que também convivem com esse desafio.
Uma abordagem que se destaca, e choca, é a da menopausa precoce, vivida pela própria Julieta desde seus 37 anos, e de outra entrevistada, pasmem, desde os 32. E interessante são os contrapontos das presenças, da jovem mulher com seu relato e de Julieta com uma bonita dramatização cênica, para tratarem desse aspecto.
Na fala da primeira, a denúncia sobre quem vê como benesse o fim do ciclo menstrual, encarando-o desatinadamente como “estar livre para transar, sem engravidar”, e que traz como resposta, por parte da entrevistada, um pungente: “mas eu quero engravidar”. Dispensa comentários a constrangedora visão de quem parece desconhecer que há formas dignas e eficazes para o controle da gravidez, desconsiderando, para além do desejo frustrado da maternidade, os sérios problemas que a menopausa traz para a saúde e o bem-estar. E é tocante a constatação da jovem de que foi ela a antecipar, para a mãe, os caminhos do climatério.
Enquanto isso, Julieta expressa, por meio de um delicado ballet de bolhinhas de sabão, o ciclo inevitável da vida. Os milhões de óvulos que habitam o corpo da mulher, o milagre da fertilização de um único que gera outro ser e que, por sua vez, acolherá outros tantos milhões de óvulos. Mas que de uma hora para outra podem, de forma inesperada e até precocemente, desaparecerem do corpo das mulheres. E daí, só lhes resta engolir e vomitar a extensa lista de desconfortos que as acometem.
Calores repentinos, ansiedade, insônia, engordar sem controle, ressecamento corporal que desagua na delicada e complexa questão da libido, do desejo sexual. Essas, são as queixas que outra entrevistada relata.
Não deixa de ser impactante a referência de um homem trans ao apontar essas mesmas dores, para aqueles que não passaram por cirurgia ou não usam hormônios. Além da transfobia e do preconceito, enfrentam o sentido equivocado da identidade de gênero, que não se trata, como ele expressa, “de genital ou peito”, mas, sim, de como as pessoas se sentem interna e psicologicamente.
Um outro entrevistado, também homem trans, toca em uma questão contundente: as limitações da assistência médica. Como ser atendido por uma ginecologista, com barba, sem peitos, e com nome e gênero retificado? O sistema público de saúde, o SUS, não reconhece, e o atendimento passa então a se viabilizar somente em ambulatório. Tantas as dificuldades, que os cuidados com a saúde acabam por ser abandonados.
Algumas mulheres, especialistas em diferentes segmentos, trataram do tema em complementariedade.
A mestra do Tai Chi falou, com suavidade, das mutações cíclicas: para as mulheres, acontecem a cada sete anos. A primeira dentição aos sete; a primeira menstruação aos quatorze, e sua “visita mensal” que se repetirá por um longo período, até que ela se vai, com o início do climatério. Um movimento ondular e de queda paulatina da energia do processo vital, que a mestra encara com naturalidade.
Já o olhar da médica enceta a difícil questão da libido e do desejo, ressaltando que as carências não são obviamente e unicamente de caráter hormonal, as quais podem ser suprimidas com uma reposição. São tantos os elementos aqui presentes, e ela cita, de forma particular, a admiração entre os parceiros que alimenta a relação e a atração sexual.
A psicóloga, mulher trans, trata de um aspecto poucas vezes lembrado: a peculiaridade do climatério na modernidade. Afinal de contas, estamos diante de um novo Homo Sapiens: pessoas que convivem com os agregados tóxicos na alimentação, que quase sempre exercitam muito mais o cérebro do que o corpo em seu cotidiano, e que estão, enfim, mais desgastadas e estressadas. Daí a necessidade de buscar apoio em esferas físicas complementares, a corporal e a psíquica.
A escuta de um casal de mulheres lésbicas trouxe um contraponto, em parte, divertido. Enquanto uma delas relata com bom humor uma passagem tranquila e sem percalços por todas as fases, da juventude ao climatério, com sua companheira foi bem diverso. E elas abrem para reflexões que todos, entrevistados e especialistas, reforçam: a menopausa encarada como sinônimo de velhice, de ausência de desejo, como prenúncio da morte. Uma visão, no fundo, que expressa o domínio masculino e patriarcal, na sociedade, como se a mulher não existisse fora da função reprodutora.
Para saborear em profundidade esses relatos, só vendo esse bonito curta-metragem de Julieta Zarza, que foi algumas vezes premiado. Porque, como acontece em todos os trabalhos em que os registros de memória estão presentes, não tem palavra que dê conta dos gestuais, dos silêncios, de uma emoção que trunca a voz e o pensamento. Como o homem trans que precisou, em certo momento, de um copo d´água para declarar que tinha vergonha de falar em menopausa. Ou a mulher que, deliciosamente, declarou: “o meu joelho faz barulho, coisa que não fazia antes, eu mexo e ele faz cleque”.
Link para o documentário
Solange Peirão – Historiadora e Diretora da Solar Pesquisas de História
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