Memória em Marcha: As Celebrações da Vitória Contra o Nazismo na Rússia

por Tulio Cezar Bunder

Enquanto o presidente Lula discutia assuntos da mais alta importância geopolítica em Moscou, apreciando a imponente e triunfalista parada militar no Kremlin, na maior celebração antinazista do globo, comemorando os 80 anos da vitória sobre o nazifascismo, toda a Rússia, da parte europeia ao Extremo Oriente, celebrava seu mais autêntico e significativo feriado cívico. Milhões de pessoas saíram às ruas em todo o país para homenagear a mais dura das vitórias da história russo-soviética.

As celebrações não são por mero acaso, como o leitor já sabe, a tragédia da frente Leste possui números inconcebíveis para nosso imaginário: entre 25 e 27 milhões de pessoas foram mortas, das quais entre 13 e 14 milhões eram civis. Um sacrifício que mudou os rumos da Segunda Grande Guerra, já que dois terços da Wehrmacht (o exército nazista), empenhados na conquista do “espaço vital”, fracassaram frente à resistência do Exército Vermelho e do povo soviético.

No Dia da Vitória os russos saem de casa logo pela manhã para conseguir um local para acompanhar a parada militar o mais perto possível, amontoando-se nas grades. Contudo, as celebrações vão muito além de marchas e desfiles de carros militares: a população aproveita o feriado para se encontrar, assistir a eventos musicais, passear em parques e praças devidamente decorados. Tudo isso ocorre em um caldeirão de sentimentos que vai da exultação ao luto, da melancolia à euforia, do orgulho à nostalgia.

Não há alegria maior que a alegria da Vitória,
Mas a amargura da perda ressoa dentro de nós.
— Olga Bergholz

Em São Petersburgo, antiga Leningrado, donde este que vos fala se encontra, as comemorações vão além da admiração pelo heroico Exército Vermelho. Ecoam um alívio, um longo suspiro da memória inquietante dos 900 dias e noites do Cerco de Leningrado. A “blokada”, como é conhecida aqui, ceifou 1,5 milhão de vidas, entre armas, mazelas e a fome. Os relatos históricos são tão fortes que não cabem neste texto. Indubitavelmente, uma das maiores tragédias causadas pelo nazismo.

A resistência civil foi tocante. A unidade do povo, diante da escassez de alimentos, da ausência de aquecimento (por três invernos consecutivos), da falta de apoio logístico e da constante convivência com a morte — nas esquinas, nas doenças que se espalhavam, na inanição. A resiliência, a organização e a solidariedade civil, ainda hoje retratadas por todos os cantos da cidade, impressionam por sua multiplicidade: desde a brava resistência armada, os artistas que se recusaram a parar de se apresentar em meio aos bombardeios, o compartilhamento de alimentos entre vizinhos, até o esforço para produzir comida dentro da própria cidade — todos foram gestos que moldaram um testemunho silencioso (ao meio do barulho infernal) da capacidade humana de suportar o insuportável.

De todos os eventos que cercam o Dia da Vitória, a grande marcha do Regimento Imortal (Bessmertnyy polk), aqui em São Petersburgo, é o mais emblemático. Envolvendo milhares de pessoas carregando fotos em memória aos participantes do bloqueio, a marcha se transforma em um espelho da alma coletiva, assumindo um tom muito mais voltado ao drama societal causado pela guerra do que ao triunfo militar de 1945.

Sem dúvidas, o bloqueio ainda permeia o imaginário coletivo. Os slogans “Ninguém é esquecido, nada é esquecido” (Nikto ne zabyt, nichto ne zabyto), “Lembramos” (Pomnim) e “A vitória é nossa” (Pobeda za nami), espalhados em cartazes e proferidos por autoridades, artistas e cidadãos, não são meros artifícios ideológicos — são sentimentos flutuantes em uma cidade que encarou a angústia imposta pelo nazismo. Aqui, todos os habitantes locais tiveram mães, pais ou avós envolvidos no bloqueio.

Se você planeja ou sonha em assistir o evento ao vivo, venha um pouco antes. A semana que antecede as comemorações cria um clima incrível de expectativas: os enfeites sendo postos, os ensaios da marcha, os carros militares circulando pela cidade. Lojistas e ambulantes surgem por todos os cantos com itens evocando a vitória, a URSS e também a Rússia. São Petersburgo, aos poucos, volta a ser Leningrado.

O feriado carrega nostalgia para alguns e saudosismo para outros, quanto à União Soviética. Inúmeras pessoas carregam bandeiras, vestem boinas do Exército Vermelho, usam as famosas fitas laranja e pretas de São Jorge (originadas no Império Russo, mas incorporadas por Stalin na virada nacional pela coesão do esforço de guerra), entre outros apetrechos que denotam a máxima conquista soviética.

É impossível decodificar a mente russa em uma singularidade. Ainda existem muitos — embora longe de serem maioria — que sonham com o retorno do socialismo. Outros incorporam apenas os elementos estéticos.

Há quem estufe o peito para dizer que nasceu, estudou, trabalhou e viveu em Leningrado, recusando com orgulho a mudança de nome para São Petersburgo. Esse apego ao passado não é homogêneo. Sem dúvida, num país tão vasto, é dificílimo pensar em uma unicidade de pensamento frente ao passado soviético. A emblemática frase do presidente Vladimir Putin talvez seja o mais próximo de um consenso, ainda que longe de sê-lo: “quem não sente falta da União Soviética não tem coração, quem a quer de volta não tem cérebro.” O passado bolchevique, afinal, não é projeto de futuro para a Rússia atual.

No entanto, a memória histórico-cultural é viva e duradoura nas cidades russas. Prédios, monumentos históricos, equipamentos soviéticos, museus — tudo está presente, assim como na cinematografia, tanto soviética quanto atual. Programas de rádio e televisão ainda evocam o espírito daqueles tempos. Com exceção da figura de Joseph Stalin, nada é omitido: o simbolismo, a estética, a decoração estão sempre presentes nos feriados cívicos.

A memória está em toda parte. Mesmo distraído, a caminho do trabalho ou do estudo, pode-se esbarrar com um monumento ou uma mensagem relacionada ao drama dos horrores nazistas e às glórias do período soviético.

Para além de qualquer fabricação histórica, propaganda ou outras tantas percepções cínicas, comuns em certos círculos acadêmicos ou midiáticos, a Grande Guerra Patriótica e tudo o que ela representa são parte integral da identidade russa. Muito além de um feriado que, para os desavisados, pode soar como ufanista, trata-se da celebração de uma vitória que representa o alívio diante de um mal que aniquilou milhões.

Talvez por mero acaso (ou não), após uma semana fria e escura, este — como em outros anos luminosos — Dia da Vitória foi ensolarado.

Ninguém é esquecido e nada é esquecido.
Mesmo que a alegria da vitória seja dolorosamente triste.
E rezamos pelos vivos e pelos mortos,
Quando até nós, na Rússia, a primavera chega.
— Olga Bergholz

Tulio Cezar Bunder é doutorando em Teoria e História Política pela Universidade Politécnica de São Petersburgo e mestre em Política Comparada da Eurásia pela Higher School of Economics de São Petersburgo.

Categorized in:

Governo Lula,

Last Update: 16/05/2025