Maternidade atípica e as relações de trabalho

por Thaís Fidelis Alves Bruch

“Como és guerreira”. Essa é a expressão que costumo ouvir das pessoas frente ao cumprimento das muitas e variadas atividades diárias de mãe típica e atípica, bem como dos meus deveres profissionais. Acredito que as pessoas a utilizem como forma de elogio ou reconhecimento por eu, mesmo diante das inúmeras demandas impostas à mãe que possui uma criança autista, conseguir “entregar” resultados e ser extremamente produtiva quando comparada aos pais trabalhadores que não possuem um filho com deficiência. 

Em um dado momento, ouvir e ler que eu sou forte e que “dou conta de tudo” afastava um sentimento de autopiedade e me passava a impressão de que poderia, através da privação do sono, de diversão e de autocuidado, concretizar as minhas aspirações profissionais e acadêmicas, além de desempenhar o importante papel de mãe do Thomas e do Guilherme. Contudo, o decurso do tempo mostrou-me que, nas entrelinhas desses comentários aparentemente elogiosos, havia um componente de crueldade, pois neles residia um método – vamos imaginar que ele seja não deliberado – de afastar a corresponsabilidade da sociedade em proporcionar reais condições para a pessoa com deficiência se tornar autônoma e se desenvolver, e, de igual forma, apoiar os que exercem o papel de cuidadores (na maioria dos casos a mãe) possibilitando que eles/elas possam trabalhar, estudar e ter lazer.

Significa dizer que, na esteira da “nova razão individual” e do “absolutismo da meritocracia” (esse último desprovido de qualquer análise profunda e não enviesada), esses elogios buscam criar uma armadura para seus autores, a fim de que os efeitos da dedicação à pessoa com deficiência não os atinjam. Eles querem apenas é ter pena.

Ainda que eu seja uma mulher branca, com estabilidade financeira, casada com um homem feminista e trabalhando com colegas de elevado conhecimento jurídico e cultural, o que já me coloca em uma situação de vantagem em um país pobre e desigual, não é fácil perceber que o meu local de trabalho não quer que os ”respingos” gerados pela falta de tempo, tristeza, cansaço, ou, pior, pela necessidade de mais recursos humanos ou materiais para exercer a mesma função dos demais os atinja. E, para o meu assombro, a “falta de paciência” também se estende às colegas mulheres e mães.

Não ouse fazer um mestrado e publicar um livro, isso geraria ainda mais dúvidas da sua real carga psicológica e física. Não ouse, igualmente, em prosperar na carreira ou dar palestras, seria um acinte.

Se o cenário já não á afável na área pública, ele piora na iniciativa privada. A interpretação restrita e preponderante do ordenamento jurídico empurra as mães para licença-saúde ou para o desemprego, já que, atualmente, não há obrigação legal de reduzir a jornada de trabalho ou de conceder teletrabalho. E, se uma empresa – voluntariamente – proceder à redução da jornada, ela exigirá a renúncia de posições de direção e chefia ou, ainda, promoverá a redução do salário (de quem precisa muito para pagar as necessárias terapias). Muitas mães atípicas sequer dão publicidade que possuem um filho autista, temendo retaliação ou a dispensa do emprego.

É preciso, então, um olhar mais fraterno da sociedade, para permitir um cuidado com qualidade e, ao mesmo tempo, conferir espaço para a realização profissional. É preciso que a sociedade contribua para este objetivo. Se o mote não for pelo viés humano, que seja pelo econômico:  se as crianças autistas não receberem tratamento adequado, elas perderão a chance de serem independentes; e se as suas mães não recebem apoio para prosseguir em suas atividades profissionais, o custo monetário no futuro será maior. E a conta será paga por todos.

Para constar: não sou guerreira e tampouco dou conta de tudo sem pagar um preço altíssimo. As mães não querem pena, querem suporte para poder estudar, trabalhar e sorrir.

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP

Thaís Fidelis Alves Bruch – Mãe atípica, Procuradora do Trabalho e Coordenadora do Grupo de Estudos “Inclusão de Pessoas Neurodivergentes no Trabalho” do Ministério Público do Trabalho e integrante do Coletivo Transforma MP.

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Last Update: 06/05/2025