O governo Lula empreendeu uma mudança completa em sua estrutura de comunicação, trocando Paulo Pimenta, um antigo dirigente petista, por um marqueteiro profissional do mercado. É uma reação aos sucessivos reveses que o governo vem enfrentando no último período, para os quais ele dá uma só explicação: falta comunicação, ainda mais para enfrentar uma ultradireita com muito mais desenvoltura nas redes sociais.
No discurso do governo, o país vai bem, com o desemprego em baixa e o PIB (Produto Interno Bruto, o valor de tudo o que é produzido no país) aumentando mais do que o previsto pelo mercado. Logo, se as pesquisas recentes indicam o aumento do rechaço ao governo, como a pesquisa Gerp divulgada em 17 de janeiro, mostrando que a reprovação ao governo chegou aos 50%, isso só poderia ser produto de uma campanha de fake news da direita e da incapacidade do governo de responder à altura.
Nenhum marqueteiro, porém, vai conseguir convencer a população de que está tudo bem. Uma ida ao supermercado vem se tornando um suplício às famílias, principalmente as mais pobres, obrigadas a deixar uma parte cada vez maior de seu salário para sair com um carrinho cada dia mais esvaziado. A inflação dos alimentos vem batendo forte e impactando os mais pobres.
Se a inflação geral fechou 2024 em 4,71%, os alimentos tiveram uma alta de 7,69%. Mas o pior é que os produtos que puxaram essa alavancada nos preços foram itens como o café, que subiu quase 40%, a carne bovina, que subiu mais de 20%, o óleo de soja, quase 30%, e o leite, 18,8%. Ou seja, se já não havia picanha na mesa dos trabalhadores, agora até mesmo o café está se transformando num artigo de luxo.
Polêmica do PIX e ultradireita
Ataque aos trabalhadores e desgaste político do governo
A alta dos alimentos é um fator importante para o desgaste do governo Lula, mas não o único. O governo fechou 2024 impondo um pacote de ataques a fim de viabilizar seu arcabouço fiscal (um teto de gastos para economizar dinheiro e garantir os lucros dos rentistas bilionários por meio da dívida). O alvo do pacotaço não atinge os ricos, mas o reajuste do salário mínimo, o BPC (Benefício de Prestação Continuada) e o abono salarial, justamente a faixa da classe trabalhadora mais superexplorada e vulnerável.
A reforma tributária, por sua vez, não tocou nos super-ricos, mas se restringiu ao consumo, mantendo inalterável a estrutura de impostos regressiva, a qual confisca grande parte da renda dos trabalhadores e da classe média enquanto mantém isenções e subsídios aos mais ricos e, sobretudo, aos bilionários.
Não foi estranho, portanto, que uma fake news propagada pela extrema direita sobre a taxação do PIX tenha se disseminado com tanta rapidez e instaurado o pânico em amplos setores, principalmente os mais precarizados e informais. Primeiro, se o governo até agora jogou a crise nas costas dos trabalhadores, por que não acreditar que faria novamente? Segundo, fiscalizar as transações por PIX a partir de R$ 5 mil pode sim levar muita gente a cair na malha fina da Receita, como os MEIs (Microempreendedor Individual). Se a justificativa é pegar dinheiro do narcotráfico e sonegação de bilionário, por que uma faixa de R$ 5 mil, e não R$ 50 mil, por exemplo?
Para o governo desmentir que estava tentando cobrar imposto dos mais pobres, não precisaria contratar marqueteiro nenhum a peso de ouro: bastava Lula ir à TV e anunciar que estava mandando o prometido projeto de isenção do Imposto de Renda para quem recebe até R$ 5 mil (que também não resolve o problema, já que não atualiza a tabela e, com o rebaixamento do salário mínimo, se tornaria inócuo). Exigiria, aliás, que os bolsonaristas apoiassem o projeto, até como forma de desmascará-los, pois a direita e a ultradireita defendem manter, e até aprofundar, esta estrutura que taxa pobre e isenta rico.
O governo Lula não faz isso porque seu projeto e sua política econômica não diferem, em substância, da direita e da ultradireita. A diferença é de ritmo da aplicação desse programa. Guedes, lá atrás, propunha uma linha à la Milei, de terra arrasada. O projeto do PT é mais mediado, mas não diferente em conteúdo. Por isso não abarca a luta pelo fim da escala 6×1; ao contrário, reafirma sua defesa do “negociado acima do legislado”, ou seja, da livre negociação entre patrões e empregados. Algo que gera excrescências como o caso da rede de supermercados gaúcha Zaffari, que impõe escalas de 10×1.
Resumindo: o governo impõe uma série de ataques à classe trabalhadora e não enfrenta os bilionários, mas, ao contrário, governa com e para eles, impondo um regime de brutal ajuste fiscal. Não enfrenta a alta dos alimentos, a superexploração pela jornada de trabalho e prossegue numa política privatista por meio das PPP (Parcerias Público-Privadas). A extrema direita se aproveita disso e, de forma oportunista, hipócrita e cínica, surfa nos efeitos dessa política contra os trabalhadores.
Se existe um problema de comunicação é o governo achar que o povo é burro, e não entender que nenhum meme bem-humorado vai se sobrepor a uma simples ida ao supermercado, à restrição do acesso a um direito básico como o BPC, à privatização das escolas e demais serviços públicos ou a uma jornada extenuante e desumana.
Debate
Apoiar o governo Lula para derrotar a extrema direita é escolher ser derrotado sem luta
Parte majoritária da esquerda socialista parte do princípio de que o governo Lula é um governo de conciliação de classes, com seus limites, mas “progressista”. Contudo, principalmente que este é o único meio de se enfrentar e derrotar a extrema direita. Logo, ser oposição de esquerda e lutar contra seus ataques ajudaria a extrema direita.
Essa análise, no entanto, não bate com a realidade. A política econômica imposta nesses dois anos, do arcabouço fiscal ao recente pacote de ataques, não foi elaborada pelo Congresso Nacional, Lira ou o PL de Bolsonaro. Saiu do gabinete de Haddad (com total anuência do mercado), e sua aprovação se deu por uma articulação com Lira, com bilhões em emendas sendo liberados para garantir (eufemismo para comprar) os votos no Congresso Nacional.
Os setores da esquerda governista mais críticos defendem que é preciso pressioná-lo pela esquerda para que ele cumpra suas promessas de campanha, ou seja, governar para os pobres, picanha barata etc. Mas, na verdade, o governo Lula está fazendo justamente o que prometeu, governando com e para a burguesia. O mesmo programa que, somado aos mandatos do PSDB (na época o partido do atual vice-presidente), nos trouxe aos dias atuais. A diferença é que, no passado, o boom das commodities até permitiu picanha durante um tempo, mascarando a decadência, a desindustrialização e o retrocesso do país.
A escolha de um neoliberalismo mais lento (o mal menor) contra o ultraliberalismo destrambelhado à la Bolsonaro ou Milei, são duas faces de uma mesma moeda: administram o capitalismo decadente na mesma direção, ainda que um possa ir mais com o pé no freio, e o outro, no acelerador. O mesmo mercado tem uma maioria que ora prefere um ritmo, ora outro, a depender das circunstâncias.
O arcabouço fiscal foi uma dura medida de austeridade exigida pelo mercado financeiro, o qual impõe um teto de gastos que não só inviabiliza o aumento nos investimentos nos próximos anos, como compromete, já agora, recursos para saúde, educação, saneamento etc. Esse teto rebaixa o aumento dos gastos públicos a um nível menor que dos anos de FHC.
Acontece que, em meio à crise capitalista, a burguesia pressiona por ainda mais ataques, invejosa do vizinho Milei. Não se contentam com os anéis e alguns dedos, querem as mãos, os braços e tudo mais. E o governo Lula, cada vez mais, abre mão de um setor que simbolicamente subiu a rampa na posse para ceder às exigências do mercado, que é quem manda desde sempre no país e nos governos do PT também, que são úteis enquanto mantêm a ordem e o sistema.
Nesse sentido, apoiar o governo com a desculpa de enfrentar a extrema direita é como acreditar em Papai Noel, quando o próprio governo cogita uma reforma ministerial colocando ainda mais representantes da direita nos ministérios. É não só legitimar uma política que cada vez mais joga os trabalhadores na miséria, no subemprego e na superexploração, fazendo avançar o processo de decadência e rebaixamento do país, como pavimenta o caminho para a volta de uma extrema direita que tem, em essência, um programa econômico similar, embora mais radicalizado, e defende um projeto autoritário em nome de uma falsa liberdade de expressão.
Independência de classe para derrotar os ataques e a ultradireita
O projeto do governo Lula, nesse sentido, propagandeado como um suposto neodesenvolvimentismo é, na verdade, um social-liberalismo, ou seja, governa um capitalismo cada vez mais em crise, mantendo o país na rota da decadência. As margens para as concessões sociais realizadas lá atrás não só estão cada vez mais estreitas, como estão sendo desmontadas.
Não há o que disputar em favor dos trabalhadores nos marcos do governo, de seu projeto e de seu programa. Apoiar o governo Lula significa, na prática, legitimar o status quo, o capitalismo e as instituições dessa falsa democracia dos ricos. Um sistema, um regime e um governo que estão atacando os trabalhadores para manter os níveis de lucro dos bilionários, do agronegócio e dos imperialismos. A defesa do governo e da ordem atual pavimenta o caminho para a direita, no mesmo sentido que permite que a extrema direita apareça, de forma cínica, como antissistema.
É necessário a mobilização independente da classe trabalhadora para enfrentar e derrotar esses ataques e uma oposição de esquerda e socialista ao governo, ancorada na organização e na mobilização pela base dos trabalhadores e de todos os setores oprimidos da cidade e do campo. Só enfrentando o governo e seu projeto, assim como esse regime e o sistema capitalista, é que impediremos o avanço da barbárie capitalista e a volta da extrema direita. A esquerda governista, porém, ao se negar a enfrentar o governo, expressa não só uma covardia, como tacitamente ajuda essa mesma extrema direita que diz tanto querer combater.