Marcha para Jesus S/A com Escala em Tel Aviv e Escalação do Ungido
por Fernando Nogueira da Costa
Uma narrativa sarcástica, com tom de crônica mordaz, transforma o fato noticioso — a presença do governador do estado de São Paulo enrolado na bandeira de Israel na Marcha para Jesus — em uma síntese caricata da fusão entre neopentecostalismo performático, messianismo militarizado e marketing eleitoral travestido de guerra santa geopolítica.
Crônica Sarcástica: “Marcha para Jesus S/A com escala em Tel Aviv e escalação do ungido (quem recebeu unção dos óleos sagrados ou a extrema-unção)”
Na 33ª edição da Marcha para Jesus, São Paulo parou para testemunhar talvez o mais completo espetáculo de fé performática e política soteriológica. Soteriologia é o estudo da salvação, isto é, de onde ela vem, quem pode oferecê-la e do necessário para sermos salvos. Fez parte da liturgia de soft power israelense exportado por atacado.
No centro do palco, o governador estranho ao ninho paulista — outrora militar e engenheiro, nascido no Rio de Janeiro, agora ungido em terra nomeada de santo católico — surge enrolado em uma bandeira de Israel, como se Davi tivesse voltado em versão tecnoportunista. Canta um louvor com os olhos fechados, talvez não por êxtase, mas para não ver o abismo entre o orçamento contingenciado da educação e o valor da sua pauta eleitoreira.
A cena atinge seu clímax teológico-midiático quando uma Bispa, condenada em 2012 a devolver o valor do repasse feito pelo Ministério da Educação por não ter comprovação da aplicação dos recursos em alfabetização de jovens e adultos, puxa um “Parabéns pra Você”. Era como se Jesus tivesse retornado em forma de governador de direita. Era uma missa de corpo presente da laicidade do Estado.
Ao fundo, os telões estampavam azul e branco — as cores da bandeira israelense, mas também, convenhamos, complementares da verde-e-amarela, apropriada por simulacros de nacionalistas submissos ao King dos EUA.
Enquanto isso, a multidão orava como se o Apocalipse fosse um plano desenvolvimentista do governo federal e o Armagedom, um Orçamento Geral da União com autorização de gastos sociais do Tesouro Nacional. Esta seria a batalha final entre as forças do bem e do mal.
Israel, ali, não era exatamente uma nação, mas um símbolo com função geopolítico-espiritual de uso evangélico-funcional. Não se tratava de uma posição sobre conflitos no Oriente Médio, mas da exibição de um token sagrado: o selo de autenticidade do crente-patriota de direita sob forças do além, isto é, dos States.
A guerra contra o Irã? O massacre de civis inocentes é visto com indiferença apenas como um detalhe místico. Para o público presente, era a confirmação de o proclamado fim dos tempos estar próximo, mas em real time, via push notification, apenas para os crentes devotos alcançarem o paraíso. A estação do metrô é logo ali.
A Marcha parecia organizada por uma joint venture entre gabinete militar-eleitoreiro e assessoria de marketing evangélico. Com o devoto do “caminho das pedras”, para ser eleito, no púlpito (um tipo de palco ou tribuna de onde o pregador ou líder religioso fala à congregação), Jesus virou cabo eleitoral, Israel virou logo de campanha, e o louvor virou jingle com cumprimento da meta fiscal.
Os fiéis, de camisetas amarelas, empunhavam bandeiras de Israel como se dissessem: “Vê, ó Senhor, estamos no lado certo da proxy war!” O neopentecostalismo brasileiro agora opera com overlay geopolítico e API de Jerusalém Celestial.
Moral da história (se existe moralidade nessas cenas grotescas de oportunismo político): a Marcha para Jesus tornou-se uma marcha para o neonacionalismo gospel-globalizado, no qual Jesus é coach, o governador é messias, Israel é QR code escatológico e a bandeira é mais performática diante a Bíblia.
Se Moisés abriu o mar, o governador em campanha um ano e meio antes da eleição abriu a terceira via entre O Mercado e O Altar. Originariamente, este era o local onde se realizavam sacrifícios de animais ou oferendas a uma divindade.
No dia seguinte, um editorial de jornal de oposição ao governador estampa a chamada: “A Marcha para Jesus como síntese do messianismo eleitoral, cosplay geopolítico e liturgia da conveniência”.
Diz ele: “Há imagens capazes de expressar tudo à primeira vista. Revela o governador de São Paulo, enrolado em uma bandeira de Israel, com os olhos semicerrados em devoção calculada, após entoar um louvor e receber um “Parabéns pra Você” da Bispa condenada como se fosse aniversário da segunda vinda de Cristo — ou, no mínimo, do capital político da direita evangélica.
A 33ª edição da Marcha para Jesus conseguiu unir todos os elementos definidores da estética atual do poder em tempos de pós-laicidade: fé de palco, política de púlpito, marketing de campanha e geopolítica de rede social. Não se tratou de uma celebração religiosa, mas de uma opera sacra tecnopolítica, com direito a bandeiras israelenses tremulando como se Tel Aviv fosse bairro paulistano e o governador, um Moisés de gabinete adepto fiel de meta fiscal.
Na lógica do evento, Israel não é uma nação em conflito, mas um símbolo plug-and-play: terra santa sob demanda, metáfora internacional para a “guerra do bem”, plataforma escatológica para reforçar a ideia de tudo e quem se opõe ao governador conservador local serem parte do comunismo disfarçado de direito humano.
A recente tensão nuclear entre Israel e Irã apenas reforçou esse apelo: para parte do universo neopentecostal, qualquer ação de Israel é automaticamente sinal profético — e qualquer figura política capaz de acenar nessa direção, automaticamente “escolhido”. Assim, marchar por Jesus é também marchar por uma teocracia midiática com sotaque militar e hashtag de Jerusalém.
O governador sabe disso. Ao se enrolar na flâmula azul e branca, ele não está apenas performando fé. Está anexando a bandeira de Israel à sua estratégia de engajamento — porque hoje, na política brasileira, o céu não é o limite, é o nicho.
Mas o episódio revela algo mais profundo (ou mais raso, dependendo do ponto de vista): a total conversão da religião institucional ao marketing político, no qual louvor vira jingle, profecia vira slogan, e guerra santa vira plataforma eleitoral.
Se Jesus expulsou os vendilhões do templo, hoje talvez encontrasse dificuldade em distinguir o altar do camarim. Na Marcha para Jesus, o milagre não foi a multiplicação dos peixes, mas a multiplicação das estratégias eleitorais em nome da fé.
O governador não marchou para Jesus. Marchou para um imaginário específico, onde fé e política são intercambiáveis, Israel é atalho para likes e o Messias é, como convém aos candidatos oportunistas, um cargo em disputa.
Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: [email protected].
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