O decadente império do isolamento e da incerteza

Por Marcelo Zero

Parece claro, evidente, que há uma contradição gritante na estratégia do MAGA e de Trump de “tornar a América grande de novo”.

De um lado, pretende-se aumentar a hegemonia dos EUA no mundo, pela via das ações unilaterais e da força. De outro, aposta-se em um isolacionismo econômico, comercial e até mesmo político.
Trump, como se sabe, distribui bordoadas econômicas, comerciais e políticas contra todo o mundo, aliados e rivais.

Ninguém mais vê os EUA como um “parceiro confiável”.

Ademais, Trump vem desinvestindo fortemente no soft power estadunidense. Vem cortando bilhões de dólares em ajuda internacional a países mais necessitados e, principalmente, a instituições multilaterais.

Acontece que a história não registra nenhum império bem-sucedido que tenha apostado no isolacionismo.

O domínio imperial exige o oposto do isolacionismo: a expansão e projeção dos interesses de um país para o resto do planeta ou para a maior zona geográfica possível.

Por isso, muitos impérios apostaram em marinhas fortes, capazes de, ao mesmo tempo, promover o comércio de seus produtos no mundo e impor seus interesses pela força em vastas regiões do planeta.

O Reino Unido talvez tenha sido o exemplo mais bem-acabado desse tipo de império. Não obstante, os EUA também investiram, desde o início de sua independência, em uma marinha muito forte, combinada com forças de intervenção muito bem treinadas e organizadas, os famosos marines.

Nesse sentido, o império estadunidense não se distinguiu do modus operandi de outros impérios.

Em um primeiro momento, a expansão dos EUA concentrou-se regionalmente.

Houve, no início, a compra da Louisiana (1803), combinada com a grande marcha para o oeste, que dizimou os povos indígenas estadunidenses. Já naquela época, começou a se evidenciar um padrão na constituição desse império, que se manteve ao longo da história: o desrespeito a regras acordadas sempre que fosse considerado conveniente.

Touro Sentado, o grande chefe sioux, dizia: “Que tratado os sioux fizeram com o homem branco que nós quebramos? Nenhum. Que tratado os homens brancos já fizeram conosco que eles mantiveram? Nenhum’’.

A Flórida, território espanhol, foi incorporada aos EUA em 1819, após muita pressão, inclusive militar, de Andrew Jackson. A guerra México-Americana (1846-1848), por sua vez, assegurou também o controle de vastas áreas, como o Texas, o Novo México, o Arizona, o Colorado, a Califórnia etc.

Completou essa enorme expansão regional a compra do Alasca, em 1867, a qual transformou os EUA no 4º país mundial em extensão territorial.

Após um período de relativo isolacionismo mundial, combinado com a afirmação de seus interesses no continente americano, especialmente no Caribe e na América Central, os EUA, já no pós-guerra, expandiram como nunca sua área de influência e criaram uma ordem mundial centrada em seus interesses.

Os EUA se transformaram na única hiperpotência capitalista, dominando o mundo não comunista nas áreas financeira, econômica, comercial, militar e geopolítica.

Essa ordem mundial centrada na Pax Americana sobreviveu, sem grandes percalços, até anos recentes. Na realidade, o colapso da União Soviética a expandiu e a fortaleceu imensamente, na década de 1990 e no início deste século.

No entanto, a partir da segunda década deste século, a Pax Americana começou a apresentar algumas rachaduras e insuficiências.

A ascensão da China e a resposta dos Estados Unidos desempenharam um papel importante. O mesmo aconteceu com as mudanças climáticas, o avanço da tecnologia da informação e a compreensível perda de confiança do eleitorado americano nas elites governantes, após as intervenções no Afeganistão e no Iraque, a crise financeira global de 2008-2009 e a pandemia de COVID-19.

Mas nada se compara ao desafio apresentado por Trump.

Como bem argumenta Adam S. Posen em seu artigo intitulado “The New Economic Geography – Who Profits in a Post-American World?”:

“As políticas do governo Trump constituem um claro ponto de inflexão. Os apoiadores do presidente às vezes as retratam como uma mera reprecificação de risco: a seguradora do mundo livre (os EUA) está ajustando suas taxas e serviços para se adequar às novas realidades e corrigir uma tendência anterior de subvalorizar seus produtos. Essa descrição é equivocada. O governo Trump deixou claro que deseja que os Estados Unidos operem um tipo de esquema completamente diferente, no qual gera e mantém a incerteza para extrair o máximo possível com o mínimo de retorno possível’’.

Antes de Trump, em essência, os bens públicos globais que os Estados Unidos forneceram após o fim da Segunda Guerra Mundial — entre outros, a capacidade de navegar com segurança pelos ares e mares, a presunção de que a propriedade está protegida contra expropriação, regras para o comércio internacional e ativos estáveis em dólares para realizar transações comerciais e armazenar dinheiro — podem ser considerados, em termos econômicos, como formas de seguro, argumenta Posen.

Os Estados Unidos cobravam “prêmios” dos países que participavam do sistema que lideravam de diversas maneiras, inclusive por meio de sua capacidade de estabelecer regras que tornavam a economia americana a mais atraente para os investidores. Em troca, as sociedades que aderiram ao sistema ficaram livres para despender muito menos esforço na proteção de suas economias contra a incerteza, permitindo-lhes prosseguir com o comércio que as ajudou a prosperar.

Segundo Posen, a retirada dos Estados Unidos de seu antigo seguro mudará fundamentalmente o comportamento dos clientes do país e dos clientes de seus clientes — e não da maneira que Trump espera.

A China, o país cujo comportamento a maioria das autoridades americanas deseja mudar, provavelmente será o menos afetado, enquanto os aliados mais próximos dos Estados Unidos serão os mais prejudicados. À medida que outros parceiros americanos observam o sofrimento desses aliados dependentes, buscarão se autoassegurar, com grande custo para si mesmos.

Os ativos se tornarão mais difíceis de poupar e o investimento no exterior, menos atraente. À medida que sua exposição aos riscos econômicos e de segurança globais aumenta, os governos descobrirão que tanto a diversificação externa quanto a política macroeconômica se tornaram ferramentas menos eficazes para estabilizar suas economias.

Alguns argumentam que a nova postura de Trump simplesmente impulsionará um realinhamento potencialmente desejável.

Nessa visão, embora seu programa exija que governos e empresas paguem mais por menos, “o mundo acabaria aceitando seu novo normal, em benefício dos Estados Unidos. Isso é uma ilusão. No mundo que o programa de Trump cria, todos sofrerão — inclusive os Estados Unidos.”

Trump e seus assessores sustentam, de forma equivocada e obtusa, que isso é simples reciprocidade ou tratamento justo para países que, em sua visão, exploraram os Estados Unidos por décadas.

No entanto, esses países nunca extraíram nada que remotamente se igualasse ao que os Estados Unidos receberam: empréstimos de longo prazo extremamente baratos para o governo americano; investimento estrangeiro desproporcionalmente massivo em corporações americanas e na força de trabalho americana; uma adesão quase global aos padrões técnicos e legais dos EUA que beneficiou os produtores sediados nos EUA; dependência do sistema financeiro americano para a vasta maioria das transações e reservas globais; cumprimento das iniciativas americanas sobre sanções; pagamentos para a guarnição de tropas americanas; dependência generalizada da indústria de defesa americana; e, o melhor de tudo, um aumento sustentado no padrão de vida americano.

Esse aumento, contudo, devo frisar, foi acompanhado por uma imensa concentração de renda e de patrimônio, algo que Posen não aborda, mas que está na origem última de Trump e da extrema direita mundial.

De qualquer modo, os Estados Unidos não só lucraram bastante por serem uma “seguradora” valorizada por outros, como seus aliados também cederam muitas decisões importantes relacionadas à segurança a Washington. Tudo isso está desmoronando, com Trump.

Claro que essa imensa disrupção da economia e da geoeconomia mundiais criará espaços que poderão ser ocupados por outros atores. Haverá, obviamente, oportunidades neste novo cenário “pós-americano”.

Mas elas, segundo Posen, envolverão cada vez menos a economia americana. A possibilidade mais promissora é que os países europeus e asiáticos, excluindo a China (um erro de avaliação, cremos), se unam para criar novo espaço de relativa estabilidade. A União Europeia e o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica, uma aliança composta principalmente por Estados do Indo-Pacífico, já estão explorando novas formas de cooperação. Em junho, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, descreveu essas negociações como um esforço para “reformular” a Organização Mundial do Comércio para “mostrar ao mundo que o livre comércio com um grande número de países é possível com base em regras”.

Essas economias também poderiam fazer mais para garantir direitos mútuos de investimento, criar mecanismos vinculativos para a resolução de disputas comerciais e reunir sua liquidez para responder a choques financeiros. Elas poderiam buscar manter a função e a influência do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio, protegendo essas instituições da paralisia, enquanto os Estados Unidos buscariam vetar as iniciativas necessárias.

No entanto, argumenta ainda Posen, se quiserem manter alguma fração da abertura e estabilidade anteriores da economia global, esses países terão de construir blocos com uma participação seletiva, em vez de adotar uma abordagem estritamente multilateral. Isso seria um substituto insatisfatório para o sistema presidido pelos Estados Unidos. Mas seria muito melhor do que simplesmente aceitar a economia que o governo Trump está criando agora.

Nesse ponto, creio que o autor se equivoca. A opção por um multilateralismo radical, com a presença da China e do Sul Global, criaria a resposta mais adequada e efetiva contra o novo império hobbesiano trumpista. Excluir a China, o motor principal da nova economia mundial, seria um erro crasso, que reproduz, na verdade, a lógica obtusa da nova Guerra Fria proposta pelos EUA desde a segunda década deste século.

Quanto aos próprios Estados Unidos, argumenta Posen (e quanto a isso ele está absolutamente certo), não importa quantos acordos comerciais bilaterais negociem, não importa quantas economias pareçam — a princípio — alinhar-se com Washington a um custo elevado, o país se verá cada vez mais preterido em comércio e tecnologia e menos capaz de influenciar as decisões de investimento e segurança de outros países. As cadeias de suprimentos americanas, que o governo Trump afirma querer proteger, se tornarão menos confiáveis — inerentemente mais caras, menos diversificadas em suas fontes de abastecimento e sujeitas a mais riscos de choques específicos dos EUA.

Abandonar grande parte do mundo em desenvolvimento, argumenta ele, não apenas aumentará os fluxos migratórios e desencadeará crises de saúde pública; também impedirá os Estados Unidos de explorar potenciais oportunidades de mercado.

“As medidas do governo Trump para afastar o investimento estrangeiro corroerão o padrão de vida e a capacidade militar dos EUA. Marcas europeias, asiáticas e até mesmo brasileiras e turcas provavelmente ganharão participação de mercado às custas das empresas americanas, enquanto os padrões técnicos para produtos como automóveis e tecnologias de serviços financeiros divergirão cada vez mais das normas americanas. Muitos desses fenômenos se autorreforçarão, tornando-os difíceis de reverter mesmo após a saída de Trump da Casa Branca.”

Ou seja — e nisso Posen também me parece correto —, os efeitos do que Trump está fazendo permanecerão no longo prazo e dificilmente serão revertidos por uma administração democrata. Afinal, Trump rompeu brutalmente o vaso precioso da confiança e da previsibilidade, algo extremamente complicado de ser reconstruído.
Afinal, os governos e os investidores, principalmente os aliados de outrora, devem estar se sentindo como Touro Sentado se sentia.

Como afirmamos, não há registro histórico de império que tenha florescido apostando no isolacionismo, na incerteza e na imposição exclusiva da força bruta. A América se fez grande justamente porque criou um vasto império e projetou seus interesses por todo o mundo, usando não apenas a força, mas também o comércio, os investimentos, as finanças, o soft power, a indústria cultural etc.

Trump, com sua mente diminuta e obtusa de empreendedor imobiliário do Queens, vai, com certeza, apequenar cada vez mais os EUA.

Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 24/08/2025