Por Marcelo Zero*
Como o mundo inteiro sabe, pois é fato confesso e público, Trump resolveu impor tarifas de inacreditáveis 50% ao Brasil, por motivos puramente políticos e geopolíticos.
Trump quer, basicamente, que o Brasil, atendendo aos pedidos da “familícia”, anistie Bolsonaro e não regule as atuações das Big Techs estadunidenses no Brasil.
As tarifas também têm um objetivo geopolítico mais geral, e visam atingir o BRICS e a atuação equilibrada da diplomacia brasileira, a qual busca fortalecer a multipolaridade, o multilateralismo, o desenvolvimento sustentável e a paz.
Não há nenhuma justificativa técnica para as tarifas anunciadas, que mais parecem uma ação de ameaçadores e brutais mafiosos que qualquer outra coisa.
Como todos sabem, o Brasil, desde 2009, tem déficits comerciais pesados com os EUA, cujo volume acumulado nos últimos 15 anos ascende, incluindo os serviços, a US$ 410 bilhões.
Por conseguinte, as tarifas anunciadas por Trump são claramente ilegais, tanto sob o prisma das leis estadunidense tanto do ponto de vista do direito internacional. Paul Krugman até sugeriu que Trump deveria sofrer impeachment por causa disso.
Mas, agora, ante o impacto negativo da medida, Trump mandou o USTR (United States Trade Representative) conduzir uma investigação contra o Brasil, sob a Seção 301 do Trade Act de 1974, a qual permite que o governo dos EUA tome medidas retaliatórias e compensatórias contra países ou empresas que pratiquem ações discriminatórias e abusivas de comércio contra os EUA.
Ou seja, depois que as medidas ilegais foram anunciadas, Trump ordenou uma investigação para tentar, a posteriori, justificar o injustificável.
Ora, pela lei invocada, quaisquer medidas compensatórias teriam de ser precedidas por uma investigação. Não o inverso, como se intenta fazer agora.
Saliente-se que a Seção 301 do Trade Act, combinada com as Seções 302 e 303 da mesma lei, determina que o governo dos EUA deverá, assim que investigar algum país, entabular consultas com o governo desse país para tentar obter uma solução negociada para a disputa.
Trump não tem feito isso.
A maior parte das suas tarifas delirantes têm sido impostas invocando outra norma, a “International Emergency Economic Powers Act (IEEPA), a qual, por seu caráter emergencial e extraordinário, não exige investigações ou consultas. Todas as tarifas do “Liberation Day”, por exemplo, foram impostas via IEEPA, o que muitos juristas estadunidenses consideram um ato abusivo e inconstitucional.
Mas o cinismo de Trump não para por aí.
Para quem não sabe, todos os anos o USTR elabora e publica o National Trade Estimate Report on FOREIGN TRADE BARRIERS, também chamado de NTE.
Nesse relatório anual, o USTR lista os países que estariam impondo alguma barreira comercial indevida contra os EUA. Normalmente, essas queixas eram resolvidas em negociações na OMC, a qual foi posteriormente paralisada pelos EUA. Depois disso, as coisas eram resolvidas, normalmente, via negociações bilaterais.
No Relatório de 2025, publicado em março deste ano (já no governo Trump, portanto), praticamente todos os países do mundo estão listados. Ao Canadá, por exemplo, lhe são dedicadas 6 páginas inteiras de queixas diversas.
Pois bem, nas páginas dedicadas ao Brasil (5, menos que o Canadá, por conseguinte), não há nenhuma menção ao PIX, ao desmatamento ilegal ou à corrupção, temas que seriam centrais, na nova investigação.
Não há também menção alguma à suposta “censura” das redes sociais, outro tema substancial que seria objeto da nova investigação do USTR.
As “queixas” que lá estão são as mesmas de sempre: tarifas do etanol, “tarifas médias elevadas”, supostas barreiras nacionalistas contra a produção audiovisual, suposta pouca proteção à propriedade intelectual (a Rua 25 de Março é mencionada) etc. Enfim, queixas antigas, que vinham sendo investigadas e negociadas pacificamente há tempos.
Assim sendo, Trump além de estar procurando, a posteriori, justificativas supostamente técnicas para uma decisão puramente política, está também “inventando moda”, como se diz vulgarmente.
Francamente, o governo Trump vir falar de corrupção, de desmatamento e de censura política é o cúmulo do cinismo.
Um governo que caminha celeremente para virar uma autocracia, que persegue universidades, cientistas e estudantes, que é profundamente antiambientalista e que tem óbvias “ligações perigosas” com bilionários de moralidade duvidosa, inclusive com um pedófilo já falecido, não pode falar nada, absolutamente nada, contra o Brasil.
Não pode falar sequer de tarifas, pois as tarifas médias efetivas dos EUA subiram, com Trump, de 2,5% para 27%, e já são muito maiores que as brasileiras (cerca de 12%).
Quem mereceria uma investigação internacional no campo comercial (e em outros campos) seriam os EUA que, além de terem destruído a OMC, estão criando um caos hobbesiano, na ordem econômica e política mundial.
É uma total inversão de valores.
Trump não é um chefe de Estado respeitável. Alguns analistas afirmam: he is just a con man from New York.
E que Lula não repita o erro de Zelensky e de Cyril Ramaphosa. Que não vá cair na arapuca política da Casa Branca. O Brasil não merece. O povo brasileiro não merece. A população estadunidense também não merece alguém como Trump.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.