O Brasil não está se Afastando do BRICS; está se Aproximando do Mundo

Por Marcelo Zero*

(Os negritos ao longo do artigo são do próprio autor)

Tenho lido e escutado, aqui e acolá, que a política externa do terceiro governo Lula está se afastando do BRICS, com “receio de desagradar os EUA”, justamente no momento em que Brasília assume a presidência do estratégico grupo.

Assim, o Brasil estaria preferindo, segundo essas versões, privilegiar suas relações com os EUA e aliados do Ocidente, em detrimento de uma aposta estratégica mais equilibrada com o BRICS e o Sul Global.

Tais afirmações:
-parecem presumir que o Brasil tem de aceitar o pseudo-dilema imposto pela nova Guerra Fria;

-não parecem apoiar-se em evidências empírica sólidas.

Com respeito ao primeiro ponto, já escrevi, em diversas ocasiões, que o Brasil vê a ordem mundial como um jogo de soma positiva, no qual a ascensão e a prosperidade de novos atores não implicam, necessariamente, a ruína de protagonistas já consolidados.

A prosperidade de uns pode e deve estimular a prosperidade de outros. Apostar em assimetrias e confrontos é burrice.

Já alguns, tanto à direita quanto à esquerda, veem o mundo sob a ótica falaciosa de um jogo de soma zero.

Consideram que o Brasil deva ceder aos imperativos geopolíticos de uma nova e obtusa “Guerra Fria”.

Em outras palavras, nosso país teria de fazer a falsa escolha entre ter boas relações com os EUA e o Ocidente ou ter relações igualmente densas com China, Rússia etc., além de ser um membro do BRICS.

Essa é a falsa escolha que os EUA procuram impor ao Sul Global, algo que deverá se aguçar, agora, com Trump e a nova hegemonia do MAGA.

O Brasil, evidentemente, não pode aceitar tal imposição, que limita sua projeção no mundo, contraria seus interesses e o obriga a “importar” conflitos geopolíticos.

Pelo mesmo motivo, não se deve supor que o Brasil, à frente do BRICS, adotará uma gestão que acirre os conflitos geopolíticos mundiais. Uma política de confronto com o “Ocidente”.

Nem o Brasil, nem a China, nem a Rússia e nem o Sul Global desejam, a priori, uma política de confrontação. Ao contrário, procuram evitá-la, embora possam e devam reagir, se confrontados.

Dessa forma, o Brasil de Lula pratica uma política externa universalista e amplamente cooperativa.

Não porque tenha “medo” de contrariar os EUA, mas sim porque essa é a política que convém mais aos seus interesses e à construção de uma ordem mundial mais pacífica, simétrica e inclusiva.

O Brasil, num cenário mundial complexo, conflitivo e mutável, tem de procurar oportunidades onde elas surjam.

Evidentemente, tal política não significa afastamento do BRICS ou de quaisquer outros grupos de países.

Ao contrário, implica cooperação cada vez maior com esse grupo, o qual, goste-se ou não, vem reordenando a ordem mundial.

Quanto ao segundo ponto, os dados empíricos disponíveis indicam que as relações econômicas e políticas do Brasil com os demais BRICS vêm se adensando cada vez mais.

O crescente comércio é uma evidência empírica significativa do adensamento dessas relações.

Em 20 anos, a corrente do comércio bilateral entre o Brasil e a China passou de US$ 6,6 bilhões em 2003 para US$ 157,5 bilhões, em 2023.

Nesse último ano de 2024, as vendas para o Brasil foram as que mais aumentaram na balança comercial chinesa. O governo da China divulgou que a alta foi de 22%, na comparação com 2023.

Assim, embora as exportações brasileiras para a China tenham apresentado diminuição conjuntural, a corrente de comércio atingiu nada menos de US$ 160 milhões, recorde histórico. E os investimentos chineses no Brasil aumentaram 33%, somente em 2023.

Também com a Rússia, nossas relações e nosso comércio vêm se adensando, apesar das draconianas sanções internacionais. Em 2024, o comércio bilateral entre os dois países atingiu um recorde histórico. A corrente de comércio chegou a impressionantes US$ 12, 4 bilhões.

Com a Índia, outro grande membro do BRICS, a nossa corrente de comércio, em 2024 (US$ 12 bilhões), teve o seu segundo melhor ano, ficando atrás somente de 2022.

Ademais, do ponto de vista político, nossas relações diplomáticas e de cooperação continuam muito fluidas com todos os BRICS, inclusive com os novos membros, como a Indonésia, por exemplo.

Com a China, em particular, apenas nestes dois primeiros anos do terceiro governo Lula, foram firmados nada menos que 52 atos internacionais, entre protocolos, memorandos de entendimentos e acordos.

Quinze desses atos internacionais foram firmados na visita que Lula fez a Beijing, em abril de 2023, e outros 37 foram assinados na visita de Chefe de Estado que Xi Jinping fez ao Brasil, em novembro do ano passado. Nunca se assinaram tantos atos internacionais em tão pouco tempo.

Nossa Parceria Estratégica com a China, que data de 1993, foi a primeira do mundo. Em 2012, a Presidenta Dilma Rousseff e o Primeiro-Ministro Wen Jiabao anunciaram a elevação do relacionamento sino-brasileiro ao patamar de Parceria Estratégica Global.

Após um intervalo ocasionado pelo golpe e pelo governo Bolsonaro, a parceria agora passou a se chamar Comunidade de Destino Compartilhado Brasil-China por Um Mundo Mais Justo e Um Planeta Mais Sustentável. Trata-se de uma nova elevação na categoria da parceria, que revela maior densidade diplomática e confiança política.

Com respeito à adesão ou não do nosso país à Nova Rota da Seda, Brasil e China adotaram uma solução “confucionista”, a do “caminho do meio”.

Brasil e China explorarão as sinergias entre esse programa estratégico da China e os programas estratégicos do Brasil e da América do Sul, como a Nova Indústria Brasil (NIB), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o Plano de Transformação Ecológica e o Programa Rotas da Integração Sul-Americana, para impulsionar a atualização e o melhoramento da qualidade da cooperação entre os dois países, promover os processos de modernização do Brasil e da China, e contribuir positivamente para a interconectividade e o desenvolvimento sustentável regionais.

Saliente-se que o Programa Rotas da Integração Sul-Americana prevê 5 grandes rotas que vão integrar a América do Sul, ligando o Atlântico ao Pacífico, a Amazônia brasileira ao Pacífico e ao Caribe etc. (aqui).

Ou seja, o Brasil e outros países da América do Sul já têm um planejamento estratégico sobre o tema. A China cooperará com o Brasil, no âmbito dessa estratégia regional, numa sinergia soberana.

Dessa forma, O Brasil estabeleceu uma cooperação soberana com tal programa chinês, com base em seus interesses e planejamento próprios.

Por conseguinte, a não adesão pura e simples não é algo feito para agradar aos EUA, como dizem os incautos. É algo imposto pelos princípios da reciprocidade e da igualdade entre os Estados, e que revela o grau de maturidade e de confiança de uma relação bilateral de meio século.

Em suma, não há afastamento nenhum. Nem econômico, nem comercial e nem político entre Brasil e o Brics ou entre Brasil e China. O que há é adensamento crescente, que não se interromperá com o governo Trump.

Na realidade, o governo Trump deverá acelerar o processo de consolidação do BRICS e das relações entre o Brasil e o Sul Global, e mesmo entre o Brasil e parceiros mais tradicionais, como a União Europeia.

Com efeito, o protecionismo exacerbado de Trump e sua agressividade geoestratégica, inclusive contra aliados seculares dos EUA, como a Dinamarca e o Canadá, só vão acelerar as mudanças geoeconômicas e geopolíticas internacionais.

Em vez de tornar os EUA maior, esse isolacionismo agressivo e irracional tenderá a apequenar a antiga potência hegemônica.

O Brasil, o BRICS e o Sul Global se aproveitarão dos vácuos econômicos, comerciais e políticos criados pela irracionalidade trumpista.

Os EUA é que estão se afastando do mundo. O Brasil está fazendo o movimento inverso: está se aproximando, cada vez mais, do BRICS e do resto do planeta.

Lula é o oposto de Trump.

E, no longo prazo, quem apostar em cooperação, em paz, em preservação ambiental, em superação da pobreza e na eliminação das assimetrias é quem sairá ganhando.

É quem será grande, de verdade.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Last Update: 20/01/2025