Mandando a América Latina e a Democracia para El CECOT
Por Marcelo Zero*
(Os negritos ao longo do artigo são do próprio autor)
Graças ao tenebroso caso Abrego Garcia, aquele cidadão salvadorenho que foi enviado para uma prisão de segurança máxima em El Salvador, contrariando todas as convenções internacionais sobre direitos humanos e refúgio, bem como a própria lei interna dos EUA, a mídia está difundindo as cândidas imagens de El CECOT.
El CECOT é o Centro de Confinamento del Terrorismo, uma prisão de segurança máxima localizada em Teco Luca, San Vicente, El Salvador.
É uma das maiores masmorras do mundo. Na realidade, é a maior, em termos de capacidade declarada. Ela teria capacidade máxima, segundo seus construtores, para 40 000 pessoas – o dobro da população total do Campo Penitenciário de Marmara, em Istambul, Turquia.
Cada cela contém apenas dois banheiros, duas pias e 80 beliches sem colchões para os mais de 100 internos designados para ela. De acordo com o Financial Times, em média, cada prisioneiro recebe 0,6 metro quadrado de espaço, um confortável latifúndio.
Miguel Serre, ex-membro do Subcomitê das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura, descreveu o CECOT como um “poço de concreto e aço” utilizado para “descartar pessoas sem aplicar formalmente a pena de morte”, citando que o governo não pretende libertar os detentos da prisão, o que o próprio Bukele confirmou.
Na realidade EL CECOT é o “buraco negro dos direitos humanos”, a nova Guantánamo, um limbo jurídico, no qual todos são “terroristas”, e no qual todos desaparecem. Se tornam pedaços de carne invisíveis e incomunicáveis.
É, como afirmou Gustavo Petro, um “campo de concentração” para a extrema-direita americana. Trump, o “Regressão Laranja”, já disse até que não descarta enviar para EL CECOT cidadãos estadunidenses, sem o devido processo legal, claro.
“Terrorista” será, daqui em diante, qualquer dissidente.
Mas o El CECOT, além de ser o novo campo de concentração da extrema-direita, é também um sintoma de como serão as relações entre o governo Trump e a América Latina.
O “Regressão Laranja” e sua equipe composta por relinchantes “Incitatus” não gostam da América Latina.
Veem a nossa região como uma fonte de problemas e de insegurança: imigração indocumentada (indocumentada sim, pois migrar não é crime), tráfico de drogas, contrabando, criminalidade diversa (assassinatos, estupros etc.), “roubo de empregos”, “petfagia” etc.
Trump chegou a afirmar, na campanha, que a imigração latino-americana envenenava o “sangue” estadunidense. Evidentemente, há forte racismo por trás da política trumpista de “deportações em massa” e de perseguição implacável aos nossos migrantes.
Mas esse é apenas um dos aspectos negativos da política de Trump em relação à América Latina.
A questão essencial é a volta de um imperialismo nu e cru, fundado no uso praticamente exclusivo da força e da intimidação, a corrosão da integração regional e a diminuição do protagonismo brasileiro na região.
Claro está que, desde os tempos da criação da doutrina Monroe, que os EUA veem a América Latina como uma região, na qual sua influência tem de ser exclusiva e decisiva.
É fato também que a Doutrina Monroe surgiu, em 1823, com um objetivo declaradamente progressista: impedir a interferência das grandes potências europeias num continente que recém conquistava sua independência, e evitar uma “recolonização”.
Com o tempo, contudo, o chamado “destino manifesto” acabou criando uma relação bastante assimétrica e impositiva entre os EUA e o resto do continente americano.
Segundo a Universidade de Tufts, desde sua independência, os EUA desencadearam cerca de 400 intervenções militares de diversos níveis de intensidade no mundo, sendo que 34% delas se desenvolveram na América Latina.
Essa tendência “imperialista” dos EUA, notadamente no que tange ao continente americano, acentuou-se bastante na gestão de Theodore Roosevelt.
Theodore Roosevelt, que havia tido atuação destacada na guerra contra a Espanha, foi, durante sua gestão presidencial, um entusiasta da projeção do poder militar e político dos EUA no mundo, especialmente por meio do poderio naval.
Por isso, empenhou-se na construção do Canal do Panamá e dedicou-se a construir uma grande armada. Ao final do seu governo, os EUA já tinham a segunda armada naval do planeta, ficando atrás somente da Grã-Bretanha, nesse aspecto.
Ironicamente, o idealizador do “Big Stick” estadunidense foi o primeiro cidadão dos EUA a ganhar um Prêmio Nobel, o da Paz, em 1906, por sua atuação como mediador na guerra entre o Império do Japão e o Império Russo. Ironia política e moral que o Comitê do Prêmio Nobel não se cansa de renovar.
Principalmente desde aquela época, os EUA intervieram decididamente nos assuntos internos dos países da América Latina, de muitas formas. Na Nicarágua, na década de 1930, os EUA intervieram militarmente, inclusive com força aérea, para combater as forças de Augusto Sandino. Antes mesmo de Guernica, Matagalpa tornou-se a primeira cidade a ser bombardeada por aviões em um conflito militar.
Todos se lembram, é claro, das intervenções na Guatemala, no Brasil, na República Dominicana, no Chile, na Argentina, no Uruguai, no Panamá, em Granada etc. etc.
Contudo, com o fim da Guerra Fria, no início da década de 1990, e com o 9/11, no início deste século, o establishment dos EUA, muito centrado no combate ao terrorismo islâmico, abandonou um pouco a América Latina, a qual passou a um distante segundo plano, nas preocupações geopolíticas e de segurança dos EUA.
Não obstante, a emergência do grande conflito geopolítico e geoeconômico entre os EUA e a China, bem como com outros países, tais como Rússia e o Irã, voltaram a tornar a América Latina, e o Brasil, palcos de uma disputa mundial. A nova Guerra Fria, como a antiga, ameaça a soberania e a democracia da região.
Para os EUA de Trump, é fundamental que a América Latina se torne, de novo, um “quintal”, um “patio trasero”, no qual os interesses estadunidenses voltem a predominar de modo praticamente exclusivo.
Para tanto, será desejável ou necessário que os EUA:
- Assegurem o acesso privilegiado aos extraordinários recursos minerais e energéticos do subcontinente.
- Exerçam controle sobre a infraestrutura crítica da região, como o Canal do Panamá.
- Voltem a dominar os mercados e o comércio regional.
- Impeçam a presença da China e também da Rússia no subcontinente.
- Imponham o alinhamento geopolítico aos seus interesses aos principais países da região.
- Articulem a extrema-direita regional.
- Invistam contra a integração regional soberana e a liderança regional do Brasil.
Com respeito ao primeiro ponto, deve-se salientar, como já assinalei em artigo anterior, que as três maiores reservas de lítio do mundo estão na América do Sul (1-Bolívia, 2-Argentina, 3-Chile).
O Brasil, por sua vez, tem a segunda maior reserva mundial de terras raras, fundamentais para o desenvolvimento de novos materiais críticos para a energia limpa e o desenvolvimento sustentável, e 98% das reservas internacionais de nióbio, além de muitas reservas de ferro, alumínio, cobalto, manganês e petróleo e gás. Essas últimas poderão ser ampliadas consideravelmente, caso a chamada Margem Equatorial possa ser explorada.
A Venezuela, por seu turno, tem as maiores reservas de petróleo do mundo. Chile e Peru detêm 36% das reservas mundiais de cobre, outro material crítico.
Não bastasse, a nossa região é a mais megadiversa do mundo, com amplos recursos zoogenéticos e fitogenéticos ainda a serem explorados. Também temos imenso potencial para a geração de energias limpas.
Ademais, a nossa região já está na vanguarda na produção mundial de alimentos e tem potencial significativo para ampliar tal produção, graças à disponibilidade de terra arável.
Afinal, trata-se de uma área (América Latina e Caribe) de pouco mais de 21 milhões de quilômetros quadrados e com uma população de aproximadamente 660 milhões, segundo a CEPAL. Ou seja, temos o dobro da área e da população dos EUA. Nosso potencial coletivo é, pois, imenso.
E tudo isso está perto, ou relativamente perto, dos EUA. Em um momento em que há uma tendência à regionalização das cadeias produtivas globais, dominar geopoliticamente e geoeconomicamente as áreas geográficas mais próximas pode ser algo essencial.
Quanto à infraestrutura crítica, especialmente o Canal do Panamá, os EUA já retomaram, na prática, seu antigo controle, com base na ameaça do uso da força. O governo panamenho foi obrigado a expulsar a empresa de Hong Kong que administrava dois portos panamenhos e a abandonar sua adesão à Rota da Seda.
A ideia de Trump, que era a de Theodore Roosevelt, é a de controlar essa importante via marítima, e, mais, usá-la para tentar “estrangular” ou obstaculizar o comércio chinês. Saliente-se que essa decisiva tentativa de controle das rotas comerciais marítimas passa também pelas disputas em torno do Mar do Sul da China, do Estreito de Malaca e pelo domínio do Mar Ártico.
O Império Britânico foi construído e sustentado, em grande parte, com base no poder naval. Trump, um admirador do presidente McKinley (antecessor de T. Roosevelt e que também deu grande impulso ao poderio naval dos EUA) e do próprio Roosevelt, outro entusiasta do poder naval, sabe disso.
Recorde-se que, em 2008, ainda no governo de Bush Filho, os EUA, em um primeiro sinal de preocupação estratégica com o avanço da China, da Rússia e do Sul Global no cenário mundial e americano, recriaram a Quarta-Frota.
Quanto à economia e ao comércio, a ideia de Trump é a de reduzir significativamente a crescente influência da China na região, e também, em menor medida, a da Rússia, e de outros países.
O comércio da China com a América Latina e o Caribe saltou de apenas US$ 12 bilhões, em 2000, para US$ 489 bilhões, em 2023. Deverá chegar a mais de 770 bilhões, até o final desta década.
Os EUA têm, por enquanto, uma corrente de comércio bem mais ampla com a nossa região, cerca de um bilhão de dólares, mas ela está extremamente concentrada no México (US$ 807 bilhões, em 2023), por motivos óbvios (Nafta e USMCA).
Todos os países da América do Sul já comerciam mais com a China que com os EUA. E, se excluirmos o México (uma exceção) do cômputo geral, chegaremos à conclusão de que a corrente de comércio da China com a América Latina e o Caribe já é praticamente duas vezes e meia maior que a dos EUA.
Obviamente, a administração Trump está preocupada com essa tendência comercial e, especialmente, com os crescentes investimentos chineses na região e a incorporação de alguns países ao “Cinturão e Rota da Seda”.
Trump intentará limitar a influência da China e de outros países em nossa região. Porém, conspira fortemente contra essa intenção o protecionismo e o isolacionismo trumpista.
A contenção da China no nosso subcontinente deverá se dar, assim, pela via da ameaça e da força, e não pela via da cooperação. Não haverá, é claro, a proposição de uma nova Alca. Mesmo o USMCA da América do Norte está em significativo risco.
É muito provável que as tentativas de alinhar nossa região aos interesses geopolíticos estadunidenses se realize por intermédio de “guerras híbridas “que, de um lado, enfraqueçam ou desequilibrem regimes e governos independentes e progressistas e, de outro, fortaleçam forças políticas e governos que sejam mais cooperativos com a extrema-direita dos EUA.
Nesse sentido, a forte aliança entre a administração Trump, o MAGA e as chamadas “Big Techs” pode ensejar fortes ondas políticas conservadoras e desagregadoras na região.
Governos como o de Milei, na Argentina, e o de Bukele, em El Salvador poderão ser “vendidos” como modelos para a América Latina.
Este último, em particular, com sua ênfase desabrida na repressão, no combate à criminalidade e às dissenções, no aprisionamento em massa sem quaisquer limites legais, no tratamento de qualquer suspeito de crime como “terrorista”, na condenação à esquerda e ao progressismo e na aliança com a extrema-direita mundial poderá ser emulado em outros países da região, especialmente naqueles nos quais a criminalidade é alta e o Estado perdeu o controle de muitos territórios urbanos. O Equador é só mais um exemplo.
Nesse caso, a criminalidade comum poderá ser igualada à criminalidade “política” e à “dissidência ideológica”, como Trump já vem fazendo, provocando uma crise institucional com o Judiciário.
Na estratégia da extrema-direita regional de alinhamento com a extrema-direita trumpista será vital também o desinvestimento na chamada integração regional soberana, isto é, na construção de uma América Latina com interesses próprios, desvinculados de ditames de potências extrarregionais e concentrados na construção de um mundo multipolar, simétrico, pacífico, ambientalmente equilibrado e sustentado em um renovado multilateralismo.
A liderança regional do Brasil, embora justamente centrada na relativa autonomia da América Latina, na recusa a alinhamentos automáticos com quaisquer potências extrarregionais, e avessa à adesão descabida à nova “Guerra Fria” é, do nosso ponto de vista, o obstáculo mais significativo à efetivação da nova e crua Doutrina Monroe, que Trump sonha implementar em nossa região.
O Brasil de Lula é, na América Latina, a vanguarda da aliança do Sul Global com o BRICS e da construção de uma ordem global “anti-imperialista”, fundada na multipolaridade e na reconstrução do multilateralismo. O Brasil, gostem ou não os “vira-latas” de sempre, é uma peça estratégica, no tabuleiro mundial do xadrez geopolítico.
Estamos “na mira”, por certo.
Para os interesses de Trump e do Maga, o ideal, é óbvio, seria substituir o governo Lula por um governo de extrema-direita, ainda que com algum verniz de “civilização”.
O governo Trump está se transformando rapidamente num sistema fortemente autoritário, que deverá comprometer a democracia dos EUA e procurará comprometer as democracias no mundo inteiro, especialmente em suas áreas de influência próximas e decisivas.
El CECOT é sintoma de algo muito mais grave.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.