“It’s the economy, stupid”, James Carville
Por Marcelo Zero
As tarifas absurdas (50%) impostas à Índia demonstram que o Brasil não está isolado. Como havia observado antes, Trump montou uma grande ofensiva contra os principais membros do BRICS.
A questão principal é geopolítica. A questão “Bolsonaro”, embora influa também, é secundária.
Não foi por coincidência que as tarifas de 50% contra o Brasil tivessem sido anunciadas logo após a reunião do BRICS, no Rio de Janeiro. Trump ficou furioso com as menções, na declaração, às transações em moedas locais, à construção de sistemas de telecomunicações próprios, à superação do unilateralismo etc.
A ofensiva contra o BRICS é ampla e tem caráter estratégico, de longo prazo.
Rússia, China, Brasil e a África do Sul, cujo presidente, Cyril Ramaphosa, foi humilhado publicamente na Casa Branca, já tinham sido objeto das agressões e da ofensiva.
A Índia esperava ser relativamente poupada.E tinha razões para tanto.
No BRICS e na Ásia, a Índia faz contraponto à China, grande rival estratégico do EUA. Compete com esse último país por influência política e econômica. Tem também conflitos fronteiriços com a China, particularmente na McMahon Line, que a China nunca aceitou, e na região de Aksai Chi, reivindicada pela Índia, mas dominada por Beijing. Chegou a ocorrer, inclusive, a guerra sino-indiana, em 1962, em razão desses conflitos fronteiriços.
Por isso, a Índia aceitou entrar no QUAD, “Quadrilateral Security Dialogue”, um fórum estratégico entre Estados Unidos, Japão, Austrália e Índia, cujo objetivo principal é conter o avanço geoestratégico da China, na região do Indo-Pacífico.
Não foi suficiente, contudo, A questão central é que, embora a Índia tenha rivalidades com a China, ela, historicamente, sempre teve uma política externa relativamente independente, a qual, embora não hostilizasse os EUA, nunca se alinhou completamente com Washington.
A Índia foi um dos pilares do movimento dos não-alinhados e sempre teve laços fortes, inclusive militares, com a União Soviética. Mesmo depois do colapso desse país, a Índia, embora tenha se aproximado mais do Ocidente, manteve suas características de manter uma política externa independente, que não aceita alinhamentos automáticos, e que mantém boas relações com Moscou.
Mas Trump quer quebrar o BRICS por dentro. Esse é ponto. Quer um Brasil submisso e estritamente alinhado a Washington, quer uma África do Sul submissa e alinhada aos EUA e quer também uma Índia submissa e alinhada a Washington.
A questão da importação de óleo russo foi apenas uma escusa. Só quem não tem informação fidedigna acredita nessa lorota.
A Índia vem importando, sim, óleo russo. A Índia não produz petróleo e ter acesso a óleo barato é algo essencial para a segurança energética de sua população. Esse recado já tinha sido transmitido claramente a Washington.
Porém, a Índia está muito longe de ser o único país que se aproveita dos preços baratos do óleo russo, no mercado internacional sedento de energia.
O quadro estatístico das importações de combustíveis fósseis da Rússia, reunido pelo Centre for Research on Energy and Clean Air (CREA), é o seguinte:
Carvão: de 5 de dezembro de 2022 até o final de junho de 2025, a China comprou 44% de todas as exportações de carvão da Rússia. Índia (19%), Turquia (11%), Coreia do Sul (9%) e Taiwan (4%) completam a lista dos cinco principais compradores.
Petróleo bruto: A China comprou 47% das exportações de petróleo bruto da Rússia, seguida pela Índia (38%), UE (6%) e Turquia (6%).
Derivados de petróleo (diesel, gasolina etc.): a Turquia, a maior compradora, adquiriu 26% das exportações de derivados de petróleo da Rússia, seguida pela China (13%) e Brasil (12%).
GNL: A UE (sim!) foi a maior compradora, adquirindo 51% das exportações de GNL da Rússia, seguida pela China (21%) e Japão (18%).
Gás de gasoduto: A UE (sim!) foi a maior compradora, adquirindo 37% do gás de gasoduto da Rússia, seguida pela China (30%) e Turquia (27%).
Gráficos: Compras de Combustíveis Fosseis da Rússia, desde dezembro de 2022 até junho de 2025

Como se observa, há países que compram muito mais combustíveis fósseis da Rússia que a Índia, principalmente em termos per capita. A Turquia, por exemplo, importa muito mais derivados de petróleo da Rússia, que a Índia. Acontece que a Turquia faz parte da Otan.
No caso do gás, liquefeito ou por gasoduto, a campeã de importação é a UE, que continua dependente do petróleo e do gás russo, mas que vai ser obrigada, a partir de agora, depois do acordo de submissão a Trump, a comprar gás dos EUA a um preço quase 3 vezes maior, afundando a competitividade cada vez menor da indústria europeia.
A Índia, a nação mais populosa do mundo já é a terceira maior consumidora global de petróleo e, como a taxa de consumo da Índia ainda cresce rapidamente, espera-se que ela ultrapasse a China, até 2030.
A transformação da Índia em uma superpotência econômica impulsionou o consumo de dezenas de milhões de famílias, as quais compraram mais carros e motocicletas, aumentando muito a demanda por gasolina, diesel etc.
Pois bem, o petróleo bruto e barato russo representa 36% das importações totais da Índia, tornando Moscou o principal fornecedor do país, de acordo com Muyu Xu, analista sênior de petróleo da empresa de inteligência comercial Kpler, que citou números referentes aos primeiros seis meses deste ano.
Mas a Índia não conseguiria obter petróleo de outro lugar? Sim, porém com muito mais dificuldade e a um preço substancialmente maior.
Depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, em 2022, os países europeus praticamente pararam de comprar petróleo russo (mas não gás). Agora, ele flui principalmente para a Ásia, com China, Índia, Turquia, Coreia do Sul, Malásia, Taiwan etc. se transformando em grandes clientes da Rússia. Até mesmo a Arábia Saudita e os Emirados Árabes estão importando petróleo barato de Moscou, refinando, e exportando diesel e gasolina.
A Índia, que tem o maior complexo de refinarias do mundo, o complexo de Jamnagar (RPL Jamnagar), capaz de processar 1,4 milhão de barris de petróleo bruto por dia, utiliza petróleo russo para exportar diesel e gasolina.
Déli, obviamente, está comprando petróleo russo com um desconto considerável, “que de outra forma não teria sido oferecido pelos fornecedores tradicionais de petróleo e gás”, disse Amitabh Singh, professor associado do Centro de Estudos Russos e da Ásia Central da Universidade Jawaharlal Nehru (JNU).
O Barril Brent custa cerca de US$ 70. A Rússia vende o seu barril por cerca de US$ 55. Quem não quer?
Ele acrescentou que as compras contínuas da Índia eram “uma decisão puramente econômica ou comercial”, algo que as autoridades indianas também argumentaram.
Trump sabe disso. Mas quer atingir a Índia por sua participação no BRICS e por sua política externa. Está se lixando para os ucranianos.
O mesmo vale para o Brasil. Trump não quer apenas que Bolsonaro seja solto e que as Big Techs funcionem aqui sem constrangimentos legais.
Trump quer do Brasil o que quer de todos. Submissão geopolítica. Renúncia à soberania. Alinhamento.
Não são as tarifas e o déficit inexistente. É a geopolítica, estúpido!
*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.