O Brasil está sendo forçado a cruzar um Rubicão Geopolítico
Por Marcelo Zero*
Desde o início deste século, principalmente desde o primeiro governo Lula, que o Brasil vem diminuindo paulatinamente sua outrora forte dependência, em relação aos EUA.
Não se trata de “antiamericanismo”, ou algo que o valha.
Nosso país simplesmente acompanhou, de forma inteligente, as profundas mudanças geoeconômicas e geopolíticas que ocorreram, e continuam a ocorrer, neste século.
A ascensão célere e inexorável da China e dos chamados países emergentes criou um cenário econômico, comercial e geopolítico que permitiu ao Brasil projetar melhor seus interesses no exterior.
Ocorreu, nesse período um processo que Tullo VigevaniI e Gabriel Cepaluni denominaram, com precisão, de “autonomia pela diversificação”.
Nosso país, sem abandonar suas parcerias tradicionais com o EUA, a Europa e o Japão, diversificou muito suas parcerias estratégicas com os novos e ascendentes atores mundiais e investiu bastante na integração regional soberana e em uma aproximação ao Oriente Médio, à África e a outras regiões do planeta, nas quais tínhamos presença modesta.
Uma das consequências naturais dessa estratégia de busca de maior autonomia foi a diminuição paulatina do peso dos EUA em nosso comércio e em nossa economia.
Em 2001, cerca de 25% das nossas exportações iam para os EUA. Hoje, apesar de alguns retrocessos recentes, nossas exportações para aquele país representam apenas 12% do total. Ou seja, essas exportações caíram a menos da metade do que eram.
Claro que os EUA continuam a ser um parceiro muito importante para o Brasil, principalmente quando se leva em consideração a exportação de manufaturas. Nesse campo, os EUA continuam a ser o principal destino das exportações de nossas indústrias. Cerca de 9.500 empresas do Brasil exportam para lá.
Mas o fato é que o Brasil hoje tem parcerias diversificadas, que ajudam a amortecer o impacto da fúria protecionista de Trump.
No primeiro semestre deste ano, nossas exportações para a Ásia somaram cerca de US$ 70 bilhões (mais de US$ 48 bilhões apenas para China), para Europa ao redor de US$ 30 bilhões, para a América do Norte US$ 26, 6 bilhões (US$ 20 bilhões para os EUA), para a América do Sul US$ 20 bilhões, para a América Central e Caribe US$ 2,6 bilhões, Oriente Médio US$ 7,1 bilhões, África US$ 6,7 bilhões e Oceania US$ 616 milhões.
Nosso grande polo de exportação e parceria se deslocou para a Ásia e exportamos o mesmo volume para América do Sul e os EUA.
Entretanto, ante as inaceitáveis agressões de Trump contra o Brasil, essa estratégia de “autonomia pela diversificação” terá de ser consideravelmente intensificada.
Esperamos que a “autonomia pela integração” não tenha de ser substituída pela “autonomia pela ruptura”, mas parece inevitável, no quadro do Império hobbesiano que Trump está criando, que as relações bilaterais Brasil/EUA, que foram estabelecidas há mais de 200 anos, venham a passar por uma revisão e que o nosso país seja obrigado a se afastar mais dos EUA e se aproximar mais do BRICS e do chamado Sul Global.
De novo, não se trata de “antiamericanismo”. Nem o Brasil nem o BRICS são “antiamericanos”. Isso não faz sentido para os interesses do nosso país e desse bloco.
Julián Marias, filósofo conservador espanhol, discípulo de Ortega y Gasset, certa vez foi indagado se ele era “anticomunista”. Julián Marias respondeu que não se considerava “anticomunista”, pois ser “anti” alguma coisa significa ser dependente dessa coisa.
O Brasil é simplesmente pró-Brasil e dedica-se, junto com o BRICS, a construir uma ordem mundial mais simétrica, mais multipolar, próspera e democrática, assentada em um renovado multilateralismo.
O problema está em que Trump é “anti-BRICS”, “anti-China”, “anti-Brasil” etc.
Trump vê o mundo como um jogo de soma zero, no qual, para os EUA ganharem alguma coisa, o resto do mundo precisa, em contrapartida, perder algo. Essa é “lógica” de um “empresário” que veio do submundo mafioso da construção civil de Nova Iorque. Não é lógica que deveria inspirar um presidente ou um estadista.
Trump simplesmente não entende o mundo. Não entende as forças tectônicas que estão mudando irreversivelmente o cenário global, tornando-o crescentemente multipolar e diversificado.
Acha que as suas tarifas vão parar a rotação da Terra. Não vão.
Ao contrário, seus movimentos torpes, agressivos e isolacionistas vão acelerar as mudanças geoeconômicas e geopolíticas que vêm se consolidando há tempos.
Se os EUA continuarem nesse diapasão, dissonante e celerado, o Brasil talvez venha a ser forçado, para defender sua soberania, algo inegociável, a cruzar um Rubicão geopolítico.
A se tornar um opositor, não propriamente dos EUA, mas da criação de um Império hobbesiano, baseado na força e incompatível com os interesses do Brasil e de toda a humanidade.
O Brasil, é claro, vai continuar a apostar no diálogo e nas negociações. Mas paciência tem limites e lidar com gente que se comporta como uma dissidência do Homo sapiens as vezes torna-se impossível.
Trump, como a pandemia, deverá passar.
Restará ver, no entanto, como ficarão as inevitáveis cicatrizes de sua passagem, à la “Gengis Khan”, nas relações bilaterais Brasil/EUA e no cenário global.
Nada será como antes.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais
*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.