Bichon Frisé ou Urso?
Por Marcelo Zero*
A reunião de cúpula entre Trump e Zelensky, cujos detalhes só depois começaram a ser revelados, confirmam o que os analistas realistas já sabiam há séculos.
A paz na Ucrânia só será alcançada com expressivas concessões territoriais por parte de Kiev e com a neutralidade do território ucraniano.
Putin exigiu um acordo de paz amplo que enfrente as causas da guerra. Como pré-condição para a paz, Putin impôs o reconhecimento das regiões de Donetsk e Luhansk (territórios de ampla população russa), e, obviamente, a Criméia (mesmo as áreas ainda não conquistadas pelo exército russo) como territórios da Federação Russa. Em troca, Putin ofereceu um cessar-fogo nas outras áreas e a promessa de não atacar de novo a Ucrânia ou algum outro país europeu.
Obviamente, essa teria de ser uma via de mão-dupla. Os EUA e a Otan teriam de se comprometer a não atacar a Rússia, não fornecer mais armas à Ucrânia e a assegurar, obviamente, a neutralidade do território ucraniano.
Com respeito aos outros territórios conquistados pela Rússia, como Kherson e Zaporizhzhia, é pouco provável que a Rússia abra mão de, pelo menos, partes desses territórios, já que eles comunicam estrategicamente a Criméia com o Donbas. Sob a visão estratégica russa, seria necessário ter, ao menos, um corredor terrestre que ligue as duas regiões e uma “buffer zone”, separando a Ucrânia da Rússia.
Não foi dito, mas é provável, que Putin tenha feito um pré-acordo com Trump, para a exploração das riquezas do Donbas, rico em minerais críticos e terras raras. Ademais, o Leste e o Sul da Ucrânia demandarão reconstrução. Empresas dos EUA poderiam ser convidadas a participar. Trump adora um empreendimento imobiliário.
O fato é que Trump estaria apoiando essa cessão do Donbas como quer a Rússia como condição para um tratado efetivo de paz.
Claro que isso não agrada Zelensky e a Europa, que não desejam ver Putin sair “vencedor” da guerra. Uma guerra que ele já venceu.
O fato é que o conflito já está, do ponto de vista militar, praticamente decidido em favor da Rússia e, além disso, a paz, sem concessões territoriais por parte de Kiev e a neutralidade do território ucraniano, é impossível. Simples assim. Ou é isso ou é a continuidade da guerra, com ganhos territoriais cada vez maiores para Moscou e sacrifícios inúteis de vidas humanas, especialmente ucranianas.
Putin venceu a guerra, mas o memorando não chegou a Bruxelas ou à Otan. Parece ter chegado a Washington, ou a partes de Washington, contudo.
Trump já sabia disso, quando destratou Zelensky na Casa Branca e afirmou que ele “não tinha cartas”. De fato, não tem. E a Europa, tampouco. Endividada, com problemas econômicos, de energia, de competitividade e sociais se acumulando, não será capaz de enfrentar a Rússia sozinha, sem os EUA.
Por isso, nesta segunda, em Washington, Zelensky e sua brava equipe de bichons frisés europeus pedirão a “papai” que contenha os desejos e as exigências do Urso Russo.
Não creio que sejam atendidos. A Europa virou um nada geopolítico. Os tempos de Charles de Gaulle, um verdadeiro estadista, já se foram. Hoje, temos apenas figuras lamentáveis, medíocres, que revelam o colapso intelectual e político das “elites” europeias desnorteadas, sempre a procura de alguma orientação e da proteção de “papai”.
Todo o mundo sabe o que Putin ganharia, com um acordo desse tipo.
Mas, e Trump?
Além de alguns possíveis negócios lucrativos, Trump tem algo a ganhar, no campo geopolítico.
Isso poderia ajudar na sua ofensiva contra o BRICS. Trump está procurando enfraquecer os 3 membros menos poderosos do grupo (Brasil, Índia e África do Sul) e um acordo entorno da guerra com a Ucrânia poderia introduzir uma cunha no tabuleiro euroasiático.
Claro está que a aliança estratégica entre China e Rússia é inquebrantável. Mas um acordo de paz dos EUA com a Rússia, somado ao reinício de relações bilaterais mais próximas entre Washington e Moscou equilibraria um pouco a disputa estratégica pela Eurásia.
Manter uma relação normal com a Rússia permitiria aos neocons se concentrarem no “adversário principal” (China) e na reconquista do perdido “quintal” (América Latina).
Países, dizia de Gaule, não têm amigos; têm interesses.
Zelensky e sua equipe de bichons frisés não causam muito frisson no Império, nessa sua fase unilateralista, hobbesiana e brutalmente pragmática.
Já o Urso, dono do maior território do mundo, de incontáveis recursos naturais, de uma indústria pesada, de defesa e espacial extraordinária e de quase duas mil ogivas nucleares poderia, se forem abandonadas as doutrinas paranoicas, as abordagens simplórias e pseudo moralistas e as desconfianças injustificadas, ser um sócio formidável para Trump, em muitas áreas.
Os símbolos e a liturgia vêm antes das ações e das decisões. Tapetes vermelhos, demonstrações efusivas de cordialidade e passeio conjunto na limusine presidencial já anunciavam o que estava por vir.
Veio.
Não acreditamos que latidos estridentes de bichons frisés façam Trump voltar atrás.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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