O Atlântico Sul e a América Latina Como Zona de Paz e Cooperação e o Caso da Venezuela
Por Marcelo Zero*
O Atlântico Norte tem a vetusta e obsoleta Otan, uma instituição da Guerra Fria, que deveria ter sido extinta há muito tempo, junto com o Pacto de Varsóvia, seu rival geopolítico daquelas priscas eras.
No entanto, a Otan continua com o seu ímpeto expansionista e bélico, ameaçando o mundo com a intensificação do conflito da Ucrânia e sua possível expansão geográfica, de consequências imprevisíveis, nefastas e extremamente perigosas.
Já o Atlântico Sul tem algo bastante oposto à Otan. Trata-se da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas).
A Zopacas foi criada, em 1986, por iniciativa do Brasil, com o apoio da Argentina, que, durante as ditaduras militares, havia sido rival estratégica do nosso país.
A Zopacas foi oficializada, no Direito Internacional Público, por meio da Resolução 41/11, da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), com a finalidade de promover a cooperação regional e a manutenção da paz e da segurança no entorno dos 24 países sul-americanos e da costa ocidental da África que aderiram a tal projeto.
Ao todo, a Zopacas inclui: África do Sul, Angola, Argentina, Benin, Brasil, Cabo Verde, Camarões, Congo, Costa do Marfim, Gabão, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Guiné-Equatorial, Libéria, Namíbia, Nigéria, República Democrática do Congo, São Tomé e Príncipe, Senegal, Serra Leoa, Togo e Uruguai.
A Zopacas, desde o início, se propôs a ser o principal mecanismo de articulação do Atlântico Sul, numa área compreendida entre o paralelo 16° Norte e a Antártida.
Ela procura ativamente promover uma maior cooperação regional para o desenvolvimento econômico e social, a proteção do meio ambiente, a conservação dos recursos vivos e não vivos e a segurança de toda a região, sob a perspectiva da integração multilateral, permeada pelo pano de fundo das iniciativas relacionadas à não proliferação de armas nucleares e de destruição em massa.
Claro está que Venezuela não faz parte da Zopacas, pois sua costa está no Mar do Caribe.
Contudo, os princípios pacifistas e cooperativos da Zopacas se estendem para toda a América Latina.
Na Celac, por exemplo, a Declaração de Havana, de 2014, deixa claro o firme comprometimento desse organismo internacional com a paz e o desenvolvimento.
Assim, tal Declaração afirma que:
Reiteramos que la unidad y la integración de nuestra región debe construirse gradualmente, con flexibilidad, con respeto al pluralismo, a la diversidad y al derecho soberano de cada uno de nuestros pueblos para escoger su forma de organización política y económica. Reiteramos que nuestra Comunidad se asienta en el respeto irrestricto a los Propósitos y Principios de la Carta de las Naciones Unidas y el Derecho Internacional, la solución pacífica de controversias, la prohibición del uso y de la amenaza del uso de la fuerza, el respeto a la autodeterminación, a la soberanía, la integridad territorial, la no injerencia en los asuntos internos de cada país, la protección y promoción de todos los derechos humanos, el Estado de Derecho en los planos nacional e internacional, el fomento de la participación ciudadana y la democracia. Asimismo, nos comprometemos a trabajar conjuntamente en aras de la prosperidad para todos, de forma tal que se erradiquen la discriminación, las desigualdades y la marginación, las violaciones de los derechos humanos y las transgresiones al Estado de Derecho.
Como se vê, e como Lula deixou bem claro em suas recentes intervenções, o Atlântico Sul, a América do Sul e a América Latina e o Caribe como um todo são regiões empenhadas na manutenção da paz, no desarmamento, na solução pacífica das controvérsias e no multilateralismo.
No entanto, esse óbvio geopolítico, em um mundo conflitivo e conturbado, está, hoje, claramente ameaçado pelo nova Doutrina Monroe e pela obsessão do governo Trump de se livrar de quaisquer governos que não se alinhem aos interesses dos EUA e não se afastem de seus rivais geopolíticos, como China e Rússia, por exemplo.
Para tanto, quaisquer justificativas, por mais canhestras e absurdas que sejam, servem.
As desastradas intervenções dos EUA no Grande Oriente Médio e no Magrebe (Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria etc.), bem como no “Chifre da África” (Somália), que provocaram, direta ou indiretamente, a morte de cerca de 4,5 milhões de pessoas, foram realizadas com as escusas esfarrapadas de combater o “terrorismo”, “defender a democracia e os direitos humanos”, “combater ditaduras” e “eliminar armas de destruição em massa”. A “Guerra ao Terror” provocou muito mais vítimas que o terror.
Tais intervenções não apenas mataram muitas pessoas inocentes. Deixaram um rasto de instabilidade política e ruína econômica, que se mantêm até hoje.
Somalis emigraram para Minessota não porque consideravam aprazível o gélido clima daquele estado do Norte dos EUA. Foram para lá fugindo dos conflitos internos acentuados pelas intervenções do “Ocidente”. Somalis não são lixo. Lixo é a geopolítica impiedosa e cruel do Império.
Agora, na América Latina usa-se, como justificativa maior para intervenções, o combate ao narcotráfico, equiparado pela Executive Order 14157, emitida logo no primeiro dia do segundo governo Trump, ao “terrorismo”, de forma a se permitir a autorização de ações militares em qualquer país da América Latina, no qual exista tráfico de entorpecentes.
Como na maioria dos países da nossa região (e de quase todo o mundo) há tráfico de drogas, ficam justificadas, de antemão, quaisquer intervenções geopolíticas e militares que o governo Trump queira fazer nessa parte do Globo, usando o “narcoterrorismo” como desculpa.
É claro que o governo Trump não fará isso contra governos aliados, como o de El Salvador e o do Equador, por exemplo. Mas já o está fazendo contra governos percebidos como hostis ou não-alinhados, como o da Venezuela e o da Colômbia.
Assim, o “narcoterrorismo”, uma oportunista invenção trumpista, se torna uma espada de Dâmocles, prestes a cair, sempre que se julgar necessário, na cabeça de rivais ou supostos rivais.
Uma espada pesada e desproporcional. Usar a força-tarefa liderada pelo imenso porta-aviões Gerald Ford para bombardear lanchinhas de pescadores e cometer execuções extrajudiciais é, no mínimo, crime de guerra, se é que guerra há.
Óbvio que combater “narcoterrorismo” não é, repito, o objetivo real. Nunca foi. Nunca será.
Para isso, há amplos acordos e mecanismos oficiais de cooperação que podem ser usados. O Brasil, diga-se de passagem, já se dispôs a intensificar a cooperação bilateral nessa área, até mesmo porque nossas facções criminosas são suspeitas lavar dinheiro em alguns paraísos fiscais dos EUA, como é o caso do Estado de Delaware.
Não. O objetivo real é derrubar Maduro e colocar, em seu lugar, um governo que elimine a influência da Rússia e da China no norte da América do Sul e que assegure o amplo acesso dos EUA às maiores jazidas de hidrocarbonetos do mundo, situadas a apenas 3 dias de barco das grandes refinarias situadas no Golfo do México, conhecido, apenas por Trump, como “Golfo da América”.
Porém, o problema central da nova Doutrina Monroe e da invenção do narcoterrorismo como muleta geopolítica é justamente transformar o Atlântico Sul e a América Latina de uma região pacífica, embora com criminalidade comum elevada, em uma região conflitiva, conturbada, submetida à lógica belicista, excludente e obtusa da nova Guerra Fria.
Significa a tentativa de estreitar os amplos horizontes da cooperação assentada no multilateralismo e nos interesses irrestritos do Sul Global. Significa também provocar danos consideráveis à integração regional soberana e ao protagonismo do Brasil em sua região.
Significa, em última instância, a possibilidade de transformar a nossa região em uma espécie de Oriente Médio, normalmente instável e sujeito a guerras e intervenções sem fim.
Duvidamos que Trump chegue ao ponto de invadir a Venezuela. Seria uma aposta de alto risco, que poderia desagradar ao MAGA e se converter num “atoleiro” interminável.
Não obstante, sanções econômicas e financeiras podem ser armas de destruição em massa, especialmente em países que dependem, de forma estreita, das exportações de alguns poucos bens, como é o caso da Venezuela. E não se pode descartar intervenções militares pontuais, que desestabilizem não apenas o governo Maduro, mas todo o subcontinente.
A caixa de Pandora dos males da guerra é muito fácil de ser aberta. Contudo, diz a mitologia, é impossível de ser fechada.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.