A Diplomacia do Brasil Está Correta
Por Leonardo Santos**
“A esquerda é liberdade, igualdade, fraternidade. Democracia verdadeira” -Hugo Chávez
A quantidade de falhas que se escreve hoje sobre a política externa brasileira é colossal. Quantidade colossal com qualidade abissal.
“Especialistas em geopolítica” se multiplicam como fungos, após um dilúvio de águas turvas.
Todos, é claro, têm, além de traseiros, opiniões peremptórias sobre a nossa política externa, muitas vezes assentadas em achismos desinformados.
Em um primeiro momento, essas volumosas sandices se concentravam à direita do espectro ideológico.
É compreensível. A diplomacia do terceiro governo Lula nasceu com a missão central de reparar os imensos estragos causados ao nosso protagonismo regional e internacional pela política externa desastrosa do governo Bolsonaro.
Tivemos de nos desvencilhar de um alinhamento automático ao trumpismo, que nos tornou párias internacionais e nos alienou da defesa e representação dos interesses nacionais.
Passamos, com Lula, a praticar uma política externa universalista e não-alinhada, que rechaça os ditames da nova Guerra-Fria e intenta, de forma pragmática, ter relações cooperativas com todos os países do mundo, com base no princípio da reciprocidade.
O Brasil procura também investir na integração regional soberana e manter nosso subcontinente como uma zona de paz, livre de conflitos internos e, sobretudo, de contenciosos de natureza extrarregional.
Rejeitamos sanções políticas e econômicas, pois são armas de destruição de massa, que afetam intensamente a população mais pobre dos países afetados. Da mesma forma, rejeitamos quaisquer outras intervenções, a não ser aquelas devidamente aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU.
Propugnamos pela democracia e pelos direitos humanos, mas condenamos a utilização hipócrita desses temas para impor hegemonia geopolítica e forçar mudanças de regimes.
Modelos políticos não podem ser impostos, e cada país, com base nas suas forças políticas internas, tem de encontrar seu próprio caminho para a ampliação de direitos e a plenitude democrática, a qual pode assumir formas diferentes.
Podemos dar exemplos, inspirar, dialogar e cooperar. Jamais impor.
Pois bem, essa política externa provocou, desde o início, a crítica daqueles que defendem o alinhamento do Brasil ao chamado Ocidente e exigem que nosso país condene países e regimes que não são do agrado desse bloco geopolítico. Isso se viu claramente nos posicionamentos do Brasil quanto ao conflito na Ucrânia e ao morticínio em Gaza.
Agora, contudo, surgem críticas à diplomacia brasileira por parte de alguns setores da esquerda, em razão, essencialmente, do conflito na Venezuela.
Alguns acusam o Brasil de não reconhecer, de imediato, os resultados das eleições venezuelanas e de apoiar a “intervenção imperialista” naquele país. Outros acusam o Brasil de não respeitar a soberania daquele vizinho, ao fazer algumas críticas à condução do processo eleitoral da Venezuela.
Ora, tais acusações não têm o menor fundamento nos fatos.
Desde o início do terceiro governo Lula, que todo o esforço do Brasil se centra justamente no combate negociado e paciente contra o isolamento da Venezuela e as sanções draconianas impostas pelos EUA e a Europa ao povo venezuelano.
É preciso lembrar que o governo Bolsonaro, por alinhamento automático aos EUA e aliados, rompeu relações com esse nosso vizinho e reconheceu o governo fictício e francamente ridículo de Juan Guaidó, aquele que foi sem jamais ter sido.
Ao apostar no isolamento da Venezuela, o governo Bolsonaro cometeu o grosseiro erro estratégico de transformar a América do Sul em palco da disputa geopolítica entre EUA, Rússia e China.
Ademais, no governo Bolsonaro, o Brasil “desinvestiu” na integração regional soberana, o que redundou no desmonte da Unasul, na saída da Celac e no crescimento de forças favoráveis ao desmantelamento do Mercosul enquanto união aduaneira.
Nesse quadro, o Brasil perdeu muito protagonismo na Venezuela, na América Latina e no mundo.
O Brasil de Lula está revertendo esse quadro desastroso.
No que tange especificamente à Venezuela, o apoio do Brasil ao Acordo de Barbados, firmado entre o governo e as oposições da Venezuela, obedeceu à estratégia de pacificar o conflito interno daquele país, levantar as violentas sanções e reintroduzir a Venezuela como membro pleno do Mercosul, bloco estratégico para o País.
Tal apoio impõe algumas obrigações ao Brasil. Uma delas é a de solicitar transparência e lisura no pleito democrático. A outra é a de continuar a investir em diálogo e negociações.
Infelizmente, o compromisso de plena transparência nas últimas eleições não parece, até agora, ter sido satisfeita, o que impede o Brasil de reconhecer os resultados.
Saliente-se que todas as outras eleições venezuelanas realizadas durante o período chavista primaram pela transparência e pela lisura, pois a Venezuela dispõe de um sistema eleitoral moderno e eficiente, perfeitamente capaz de dar respostas rápidas e auditáveis.
A publicação dos boletins das urnas sempre foi realizada de forma expedita, em obediência ao artigo 116 da Lei Orgânica sobre Processos Eleitorais, o qual determina o prazo máximo de 48 horas para a totalização desagregada dos resultados.
Dessa vez, porém, tal publicação tornou-se tão morosa quanto cágados analógicos acometidos pela Doença de Parkinson. Algo muito estranho.
Invocar os defeitos e as limitações de outros sistemas, como o dos EUA, confuso e obsoleto, não parece uma escusa razoável para o que acontece na Venezuela. Invocar a hipocrisia e a má-fé dos que exigem democracia na Venezuela não é, da mesma forma, justificação racional.
Também não parece razoável justificar a ausência de transparência na apuração dos resultados eleitorais, com base na “luta contra o imperialismo” e na falta de compromisso democrático dos setores mais radicalizados e hegemônicos da oposição venezuelana.
Sabemos perfeitamente do histórico fascistóide e violento de boa parte da oposição venezuelana. Mas dos chavistas não se espera esse comportamento.
No que se relaciona a esse ponto, é preciso assinalar que a revolução chavista foi, sobretudo, uma revolução democrática, que implodiu os estreitos limites jurídico-políticos do pacto oligárquico de Punto Fijo e ampliou consideravelmente a participação popular nos processos decisórios daquele país.
Ou seja, o povo venezuelano, assim como o povo brasileiro, fez uma opção soberana pela democracia e a instituiu em uma notável Constituição.
Isso impõe algumas indagações.
A “luta contra o imperialismo” pode fazer tabula rasa dessa opção histórica?
Pode transformar a democracia em uma formalidade insignificante?
Não poderia estar o governo Maduro em contradição com alguns valores e princípios da revolução chavista?
Não poderia estar o governo Maduro em conflito, do mesmo modo, com a integração regional? Afinal, tanto o Mercosul como a Unasul têm cláusulas democráticas. Isso foi decidido de forma soberana pelos países da região. Não foi uma imposição do imperialismo.
O governo Maduro estaria a fazer uma aposta geopolítica de sustentar-se apenas com o apoio de potências extrarregionais, como Rússia e China, e prescindir da aliança com países amigos da região, como Brasil, Colômbia e México? Isso não teria um efeito disruptivo na região?
Como se vê, a questão da Venezuela é muito complexa e não admite análises binárias e simplistas.
A cautela do governo Lula e da diplomacia brasileira tem, por conseguinte, fundamento em fatos evidentes e em valores e compromissos básicos.
Tal cautela é vital para que a situação interna Venezuela não se deteriore ainda mais. E para que aquele país não entre em uma espiral de violência sem controle.
A diplomacia do Brasil, sob a condução de Lula, é ponderada, racional, pragmática e se guia pela promoção dos interesses brasileiros, pelo fortalecimento da integração regional soberana e pela construção de uma ordem mundial simétrica, justa, pacífica e não submetida a hegemonismos de quaisquer tipos.
Não temos de escolher entre nenhum dos lados da nova Guerra Fria. Entre um e outro, o Brasil escolhe o lado do Brasil.
Também não temos de escolher entre “lutar contra o imperialismo”, sanções e intervenções e defender opções soberanas e autônomas pela democracia. Podemos e devemos fazer ambas as coisas.
Da mesma maneira, não há dilema algum entre promover a ascensão socioeconômica da população e promover a emancipação política do povo. Ambos os processos se retroalimentam.
Democracia não é estorvo para a libertação dos países e dos povos. A esquerda é democracia verdadeira.
Chávez estava correto.
A diplomacia do Brasil está correta.
*Leonardo Santos** é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.