A paz será aquecida no gélido Alaska?
Por Marcelo Zero
Em condições normais de temperatura e pressão, fora da ordem hobbesiana criada pelo inacreditável Trump, uma reunião entre dois grandes líderes mundiais, convocada por antecipação para debater o fim de um conflito, resultaria, na maior parte das vezes, em um anúncio concreto de um cessar-fogo, de um armistício ou mesmo de um acordo amplo de paz.
Na realidade, quando uma reunião dessas era anunciada, tudo já estava pré-negociado. A reunião de cúpula era apenas para referendar e anunciar cláusulas e condições previamente acertadas.
Não obstante, com Trump, o laranjal de obtusidades, nada é previsível.
Tudo pode acontecer. Inclusive nada.
Mas há alguns parâmetros incontornáveis que devem ser observados.
1) Militarmente, a Ucrânia já foi derrotada
A Ucrânia tem, em primeiro lugar, um problema demográfico, de falta de homens, para formar tropas. Esse país já perdeu cerca de 600 mil homens, entre mortos e feridos graves, nesse conflito e, hoje, enfrenta dificuldades para repô-los.
A Ucrânia tem apenas 39 milhões de habitantes e sua população já é consideravelmente envelhecida, com uma idade média de 42 anos. Não há muitos jovens.
Crescem também a recusa e a fuga do serviço militar.
Nas frentes de batalha, cada vez mais extensas, há áreas em que as forças ucranianas estão muito rarefeitas, o que vem facilitando o avanço lento porém constante das forças russas. Há vários bolsões de forças ucranianas que estão prestes a colapsar no Donbas.
Não bastasse, a Ucrânia tem inferioridade em artilharia e praticamente não tem mais força aérea. Faltam equipamentos básicos que não são repostos.
Sem querer desmerecer a coragem dos ucranianos, continuar a guerra parece algo inútil, que provocará sacrifícios desnecessários.
2) A Rússia não aceitará a paz, ou um início de processo de paz, que não contemple:
O domínio territorial sobre a Criméia e, pelo menos, sobre os dois oblasts do Donbas e os territórios conquistados em Zaporizhzhia e Kherson.
A neutralidade do território ucraniano e a renúncia à expansão da Otan até esse país, algo que estava previsto desde a década de 1990 pelo influente neocon Zbigniew Brzezinski.
Obviamente, Zelensky e a Otan se oporão a essas condições. A Europa, em particular, está obcecada com a ideia paranoica de que uma “vitória” da Rússia resultará, necessariamente, na expansão do novo “Império Russo” para o resto do continente.
Algo ridículo, pois a Rússia não tem intenções e condições de se expandir para a Europa. Isso é a simples ressureição da obtusa “teoria do dominó”, com a qual os EUA justificavam sua criminosa intervenção no Vietnã. Se o Vietnã cair, diziam, o comunismo se espalhará por toda a Ásia.
A estratégia russa nesse conflito com os EUA e a Otan sempre foi defensiva.
Curiosamente, ninguém se lembra que, antes do início desta guerra, a população russa do Donbas era constantemente bombardeada por Kiev, o que resultou em cerca de 14 mil mortos.
Assim sendo, não se deve esperar muita coisa desse encontro no Alaska, no que concerne à paz ou mesmo a um modesto e transitório cessar-fogo.
Talvez, de forma bilateral, Putin e Trump negociem alguma coisa no campo econômico (minérios críticos, quem sabe) e no que tange à contenção de armas nucleares.
Sobrarão fotos, mas creio que faltarão fatos que aqueçam os desejos pacifistas do mundo.
Por culpa essencialmente da Otan, é provável que muitos mais morram e é certo que o planeta continuará perigosamente ao borde de um conflito potencialmente mundial e nuclear.
O ar do Alaska é gélido.
Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.