A Estratégia Trump: Relativo Pragmatismo, Rejeição de Valores, Antiglobalismo, Uso da Força como Fundamento e a Pressão Contra a América Latina
Por Marcelo Zero*
A nova Estratégia de Segurança Nacional (National Security Strategy) recentemente divulgada representa uma ruptura clara com a estratégia que os EUA vinham adotando, até poucos anos, para manter a Pax Americana e a hegemonia mais ou menos inconteste na ordem mundial.
Logo no início, o texto da nova National Security Strategy explica os erros e omissões da estratégia anterior.
Segundo o texto trumpista:
Nossas elites calcularam mal a disposição da América em carregar para sempre fardos globais com os quais o povo americano não via ligação com o interesse nacional. Eles superestimaram a capacidade dos Estados Unidos de financiar, simultaneamente, um enorme estado de assistência social ao lado de um enorme complexo militar, diplomático, de inteligência e de ajuda externa. Eles fizeram apostas extremamente equivocadas e destrutivas no globalismo e no chamado “livre comércio” que esvaziaram a própria base da classe média e industrial da qual dependem a preeminência econômica e militar americana. Eles permitiram que aliados e parceiros descarregassem o custo de sua defesa sobre o povo americano e, às vezes, nos envolvessem em conflitos e controvérsias centrais para seus interesses, mas periféricos ou irrelevantes para os nossos. E eles atacaram a política americana com uma rede de instituições internacionais, algumas das quais são movidas por um antiamericanismo declarado e muitas por um transnacionalismo que busca explicitamente dissolver a soberania individual dos Estados. Em suma, não apenas nossas elites perseguiram um objetivo fundamentalmente indesejável e impossível, como ao fazê-lo minaram os próprios meios necessários para alcançar esse objetivo: o caráter da nossa nação, sobre o qual seu poder, riqueza e decência foram construídos.
Como se vê, a nova Estratégia de Trump rejeita os fundamentos das antigas estratégias da Pax Americana, que conformaram a ordem mundial após a Segunda Guerra Mundial.
Ademais, parece-nos que a nova estratégia de Trump parte de duas grandes preocupações:
A primeira preocupação é com o financiamento dos gigantescos déficits dos EUA (orçamentário e comercial).
Até pouco tempo, essa preocupação não existia ou era muito relativizada. Os EUA, como se sabe, por ter o seigniorage da grande moeda mundial, controlavam as transações comerciais e financeiras internacionais, através do sistema SWIFT, e, além disso, captavam parte substancial da poupança mundial em títulos e treasuries, compensando os déficits.
Mas essa situação vem mudando mais rapidamente do que o esperado.
Em setembro de 2015, a China criou o CIPS (Cross-Border Interbank Payment System), o qual permite a troca de outras moedas pelo yuan, sem passar pelo dólar. Tal sistema e os intercâmbios em yuan já chegam a cerca de 8,5% do total mundial.
Parece pouco, mas os intercâmbios em yuan representavam, até 4 anos atrás, apenas 4% do total. Ou seja, vem crescendo muito. Mais do que duplicou em um prazo muito curto. Em 2030, deverá chegar a 17%, o mesmo nível do euro.
Ademais o CIPS, em especial, é um sistema de compensação mais rápido e mais barato que o Swift, pois faz-se apenas um único intercâmbio, que elimina uma terceira moeda (o dólar). Tal sistema já é utilizado em 40 países e está presente em 30 centros financeiros do globo.
Quando foi lançado, o CIPS processava algumas poucas dezenas de transações. Hoje, processa centenas de milhares. O montante dos swaps cambiais pelo CPIS já chega a 550 bilhões.
Isso, combinado com o avassalador crescimento e a expansão internacional da China, com o incremento muito rápido dos déficits estadunidenses e com o uso geopolítico do dólar como instrumento de sanções, está acelerando o processo de desdolarização.
Embora o dólar permaneça ainda como a grande moeda de intercâmbio comercial e de reserva de valor, já se pode vislumbrar um futuro não muito distante em que a hegemonia do dólar deixará de existir e ele terá de conviver com outras moedas de circulação mundial, principalmente com o yuan.
O problema maior, para os EUA, não é apenas que o yuan se converta numa alternativa ao dólar, mas que essa alternativa seja uma alternativa superior ao dólar; melhor do que o dólar.
Isso está se aprofundando com o yuan digital. Hoje, a China compra petróleo da Arábia Saudita com yuan digital, em transações instantâneas, que não passam pelo Swift e pelos bancos americanos, sem burocracia e sem eventuais sanções.
O mesmo está acontecendo com outras commodities mundiais, antes precificadas somente em dólares.
Ademais, atualmente, mais da metade das transações comerciais da China são feitas diretamente em yuans.
Obviamente, uma situação como essa poderá dificultar bastante, no futuro, o financiamento dos imensos déficits financeiros dos EUA.
A preocupação trumpista com a superestimação da capacidade dos Estados Unidos de financiar, simultaneamente, um enorme estado de assistência social ao lado de um enorme complexo militar, diplomático, de inteligência e de ajuda externa, tem, como pano de fundo, a constatação de que tal capacidade de financiamento vem sendo erodida, paulatinamente (talvez não tão paulatinamente assim), mas de forma crescente e irreversível.
Os EUA precisam tomar emprestados cerca de US$ 2 trilhões por ano. US$ 700 bilhões apenas em treasuries. Quando isso se tornar crescentemente difícil, exigindo taxas de juros mais altas, a economia dos EUA poderá passar por uma crise estrutural profunda e muito debilitante.
A outra e amplamente preocupação do MAGA é com o tema da desindustrialização dos EUA, associada, por Trump, ao livre comércio, o qual está associado também à questão do déficit.
Percebe-se também, de um modo geral, uma preocupação com a criação de um mundo multipolar e com a formação e expansão do BRICS, entre outros fenômenos.
Nesse contexto, a NSS de Trump representa, ao mesmo tempo, uma ruptura com as NSSs anteriores, inclusive, a do primeiro governo Trump, e uma espécie de recuo tático a um relativo e pragmático isolacionismo, com o objetivo de fortalecer os EUA, sobretudo no campo econômico.
O grande eixo geopolítico, que se havia estabelecido anteriormente, de se competir com as grandes potências emergentes (China e Rússia) deixa de existir, ou melhor, é modulado e mitigado por necessidades pragmáticas e gargalos econômicos e financeiros.
Agora, o documento prioriza a economia dos EUA como “o objetivo supremo” e procura estabelecer, por incrível que pareça, relações econômicas “mutuamente vantajosas”, até mesmo com Beijing.
Assim, a competição geopolítica com a China deixa de ser central, sendo substituída pela ênfase em questões econômicas.
A China é tratada principalmente como competidora econômica, e não mais como ameaça sistêmica e geopolítica.
Obviamente, o documento destaca a importância de Taiwan, mas sob uma ótica instrumental, focando em semicondutores e posição geográfica. A política dos EUA de defesa de Taiwan é muito suavizada e relativizada, o que indica que os EUA, ao menos por enquanto, não querem correr riscos desnecessários, na disputa pela Região do Indo-Pacífico.
Outros países do Indo-Pacífico são mencionados no texto, apenas em função de sua utilidade para a estratégia dos EUA, em relação à China.
A “ameaça russa”, antes tão enfatizada nas administrações Democratas, é minimizada. A resolução da guerra Rússia-Ucrânia é citada como interesse central, mas o texto é muito mais duro com aliados tradicionais, principalmente europeus, do que com Moscou.
Fica claro, no texto, que, segundo Trump, a Europa se equivoca ao ver a Rússia como “uma ameaça existencial” e que o continente europeu terá de ser responsável por sua própria segurança.
Dessa maneira, a Rússia não é mais tratada como adversária, e a responsabilidade pela continuidade do conflito na Ucrânia é atribuída aos europeus.
O eventual apoio à Ucrânia é limitado à sua sobrevivência como Estado viável, sem se detalhar como isso será alcançado. Na realidade, pelo que se depreende do texto, a Ucrânia será praticamente abandonada pelos EUA.
Aliás, a Europa, antiga grande aliada geopolítica na aliança atlanticista, é duramente criticada, mesmo desprezada, no texto.
A Europa é criticada sob uma ótica “civilizacional”, com ênfase “na perda de valores nacionalistas e conservadores”, pouco combate à imigração e queda de natalidade.
Desse ponto de vista, o documento endossa a crítica de partidos europeus de extrema-direita e sugere a necessidade de uma resistência interna na Europa, o que alguns governos europeus viram como uma interferência inaceitável.
O Oriente Médio, na nova NSS, claramente deixa de ser grande prioridade, em linha com o discurso de Trump de que a era de “construção de nações” acabou.
No entanto, persistem contradições, pois os EUA mantêm presença militar em Israel e participam ativamente de iniciativas de paz e reconstrução na região.
Até mesmo o Irã, categorizado, na antiga NSS, como grande ameaça, é tratado de forma superficial. A Coreia do Norte, mencione-se en passant, sequer é mencionada.
Entre as prioridades, está o redesenho da presença militar americana, com menos tropas no Oriente Médio e foco em segurança e combate ao tráfico de drogas no Hemisfério Ocidental.
O antigo foco em competição entre grandes potências é substituído por uma abordagem alinhada às prioridades domésticas do presidente, com ênfase no Hemisfério Ocidental, combate à migração e ao narcotráfico, e reafirmação da doutrina Monroe.
Esse é o grande perigo da nova NSS.
A nova NSS vê a América Latina principalmente como fonte de riscos: migração em massa, crime organizado e “incursão estrangeira hostil”.
O texto propõe neutralizar “narcoterroristas” com força letal e cooperação militar, além de incentivar parcerias regionais para desenvolvimento de recursos estratégicos e combate à influência estrangeira (leia-se China e Rússia).
Nossa região tornou-se o centro das ameaças.
Desse modo, o domínio dos EUA na América Latina e Caribe, que havia sido relativamente abandonado desde o fim da Guerra Fria e o início da Guerra ao Terror, passa, de novo, a ter centralidade.
Centralidade com um duplo objetivo:
1) Neutralizar os riscos acima descritos.
2) Usar os recursos estratégicos do “quintal” para fortalecer os EUA.
Como já deixei claro em outro artigo, o “Corolário Trump” à Doutrina Monroe deixa claro que o continente americano “pertence” aos EUA e que nenhuma “nação estrangeira” ou “instituição globalista” podem exercer quaisquer influências nesse território ou “quintal”.
O Corolário Trump à Doutrina Monroe é simples e assustador: submetam-se ou sofram as consequências.
Nossa região tornou-se o principal instrumento para fazer a “América Great Again” e se fortalecer para tentar realizar, de novo, após um recuo tático, a grande disputa pelo poder mundial.
Não creio que a nova NSS vá funcionar. Na realidade, com o abandono das antigas alianças e com esse tresloucado protecionismo, a nova NSS só vai agravar os problemas dos EUA, tanto econômicos e financeiros quanto geopolíticos.
A China, mesmo com as tarifas abusivas de Trump, acabou de bater seu recorde de superávit comercial: mais de U$ 1 trilhão. E o Brasil, ainda que nas mesmas circunstâncias, está conseguindo exportar mais do que nunca.
O mundo está descobrindo que consegue sobreviver sem os EUA, embora o inverso não seja verdadeiro.
Mas o Brasil e a América Latina correm perigo, no curto prazo.
*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.