Lisura eleitoral
Por João Silva Fernandes**
Quando vejo democratas revoltados com a falta de lisura das eleições na Venezuela, lembro o “coronel” Pedro Freitas, ex-governador do Piauí e sogro de Petrônio Portella.
Sua família esteve em posição de mando durante mais de um século. “Fez” ministros, dirigentes de órgãos federais, governadores, senadores, deputados, vereadores, diplomatas, prefeitos, juízes, coletores, delegados, professores e funcionários.
Pedro Freitas não era bronco. Latifundiário, foi também exportador e banqueiro. Sua capacidade de mando não derivava da riqueza. Tinha talento político e sagacidade. Aglutinava.
Era brincalhão, simpático, franco, cultivava amizades com requinte. Não esquecia mudas de plantas para minha avó. Mal aprendeu a escrever, mas era próximo de grandes escritores.
Sabia mandar. Tanto contemporizava quanto ia às vias de fato, usando homens armados, como fez em 1930, quando depôs o governador. Era a argúcia em forma de gente.
Eu lhe perguntei a razão pela qual apoiara o voto secreto. Ele respondeu que tanto fazia, o resultado seria o mesmo.
Comprovava a lisura do “bico de pena” mostrando em detalhes o resultado das urnas.
O direito de voto da mulher, garantido após a ruptura de 1930, o Estado Novo, o interregno democrático após 1945, a ditadura militar, a redemocratização… nada alterou a capacidade eleitoral de sua família ampliada.
O “Coronel” me ensinou que eleição não se resume à contagem de votos: boletins de urna não atestam validade do processo; o domínio sobre o eleitorado é sua parte mais relevante.
Brasileiros que exigem “atas” das eleições venezuelanas deveriam lutar pela democratização da comunicação e por uma escola cuja qualidade não seja medida por índices fajutas.
Por coerência, quem deseja a democracia na Venezuela deveria exigir uma revisão do poder judiciário brasileiro, que ajoelhou-se com um bilhete de um general e mandou o maior líder brasileiro para a cadeia, falseando as eleições de 2018.
Como reclamar do veredito da Autoridade Eleitoral venezuelana e calar diante da impunidade de Bolsonaro e de chefes golpistas assumidos que persistem pintando e bordando?
Quem exige lisura na Venezuela deveria se levantar contra o ameaçador proselitismo político neopentecostal.
Demandaria a reforma da Segurança Pública de forma a acabar o controle territorial por organizações criminosas.
Repeliria exemplarmente os que admitem as Forças Armadas como poder moderador.
Repudiaria o uso clientelista dos recursos públicos. Não admitiria orçamento secreto nem “emendas pix”.
Negaria o voto aos parlamentares que pretendem se reeleger com base nesse expediente.
Não há, nunca houve, eleições limpas no Brasil.
Tem cabimento falar de lisura em sociedade tão desigual?
Nossa prática eleitoral pode ser inscrita no campeonato mundial de fajutice que risca boa colocação.
Ao não reconhecer as eleições venezuelanas, Lula não vê o próprio umbigo. É um aguilhoado, governa mandando às favas o movimento democrático que o elegeu. Atua para acalmar os desestabilizadores do regime político.
A posição de Lula diante das eleições da Venezuela mostra adesão à vontade de Washington, inimiga jurada da democracia na América Latina. Enfraquece sua liderança. Envia a integração subcontinental às calendas.
Mais que livros de Ciência Política, quem me ensinou sobre manipulação da vontade popular foi o “coronel” Pedro Freitas.
Entrava regime, saia regime, sua família continuava no mando.
Veio o rádio, o cinema, a televisão, tudo mudou menos os fundamentos da cultura política brasileira.
As novas mídias e as distopias fabricadas não desfazem as lições do arguto “coronel”.
Deputados loucos por emendas orçamentárias e refratários ao labor legislativo sabem disso.
**João Silva Fernandes é doutor em História pela Universidade de Paris. Autor de O que faz er com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura).