O documentário Adultização produzido pelo youtuber Felca desencadeou um terremoto digital e político. Mergulhando nas profundezas das redes sociais, ele mostra como crianças e adolescentes são explorados, sexualizados e transformados em mercadoria por pais, influenciadores e plataformas digitais. A repercussão foi imediata: perda de contas em redes sociais, investigações e muita indignação.

O vídeo não apenas viralizou, invadiu a política institucional. Parlamentares reagiram com declarações inflamadas. O presidente da Câmara, Hugo Motta, afirmou que vai pautar projetos relacionados ao tema. Mas, enquanto o debate se perde entre moralismos seletivos e promessas de “proteção”, o que quase ninguém diz é o óbvio: a exploração da imagem infantil não é um desvio do capitalismo digital — é uma de suas engrenagens mais lucrativas.

No Brasil, ela se disfarça de entretenimento familiar, de carreira promissora e até de missão religiosa. A vitrine é variada: dancinhas, pregadores mirins, canais “educativos” que ensinam crianças a vender sonhos para outras crianças. A lógica é sempre a mesma: transformar a infância em um produto maleável, pronto para consumo rápido, viralização instantânea e monetização imediata.

Nova embalagem, velho problema

A exploração da imagem infantil não nasceu com o TikTok nem com o Instagram. Desde muito antes dos stories, likes e algoritmos, a cultura de massas já tratava crianças como objetos de espetáculo — e de desejo. Concursos de beleza infantil, quadros de auditório, novelas e campanhas publicitárias que colocavam meninas maquiadas, em roupas provocantes e coreografias sensuais. Meninos, por sua vez, eram incentivados a posturas agressivas, consumistas, “de macho”. A indústria cultural sempre funcionou assim, vendendo imagem e comportamento como produto.

Mas se antes, para colocar uma criança no circuito midiático, era preciso entrar em um funil restrito: emissoras de TV, agências de publicidade e produtoras; a internet deu um impulso muito mais rápido, barato e perigoso para a exposição infantil: agora, basta um celular e uma conta gratuita numa rede social. A barreira de entrada caiu, e com ela, qualquer filtro mínimo que a indústria cultural tradicional ainda impunha.

A digitalização fez algo impensável, democratizou a vitrine e desregulamentou a prática ao mesmo tempo. De repente, milhares de “programas” começaram a ser produzidos por famílias em suas próprias casas, sem contrato, sem assessoria jurídica, sem acompanhamento psicológico. E as plataformas estavam prontas para absorver essa produção — e lucrar com ela.

Se a internet derrubou as barreiras para expor crianças, o capitalismo de plataforma foi o arquiteto do novo modelo de negócio que transforma essa exposição em um fluxo constante de dinheiro. O princípio é simples: quanto mais tempo você passa olhando para uma tela, mais anúncios podem ser exibidos, mais dados podem ser coletados e mais receita é gerada.

É nesse cenário que o empreendedorismo infantil digital ganha força. Famílias inteiras passaram a funcionar como pequenas produtoras de conteúdo: definem cronogramas de postagens, mantêm identidade visual, negociam contratos de publicidade e, muitas vezes, transformam a própria casa em cenário permanente.

A rotina da criança passa a ser moldada pela demanda algorítmica: horários de gravação, repetição exaustiva de vídeos para atingir “a tomada perfeita”, pressões sutis (ou nem tão sutis) para que a criança reaja “do jeito certo” diante da câmera. O que antes poderia ser uma brincadeira vira um trabalho em tempo integral — só que sem contrato, direitos ou qualquer proteção legal. Quanto mais engajamento, mais alto é o CPM (custo por mil impressões) e maior o interesse de anunciantes. Essa estrutura torna a exploração da infância não apenas possível, mas inevitável.

Nesse contexto, o algoritmo cumpre um papel fundamental. São eles que definem o que aparece no seu feed, quem vai ver seu vídeo e, principalmente, o que será recompensado com visibilidade. A lógica é: quanto mais engajamento um conteúdo gera — curtidas, comentários, compartilhamentos, tempo de visualização —, mais ele será mostrado para outros usuários. Só que essa lógica tem um efeito colateral gigantesco: ela não distingue qualidade de nocividade. Um vídeo pode ser recomendado tanto porque é educativo e saudável quanto porque desperta curiosidade mórbida, choque ou até mesmo excitação sexual em adultos.

E o problema não para por aí. O algoritmo também atua como instrutor invisível para criadores de conteúdo. Ao impulsionar vídeos que têm determinado formato, enquadramento ou linguagem, ele envia um recado: “faça mais disso, e será recompensado”. É assim que dancinhas inocentes evoluem para coreografias cada vez mais insinuantes; que vídeos de “rotina da criança” passam a incluir closes desnecessários, roupas mais justas ou situações íntimas; que a linha entre cotidiano e erotização se apaga.

O algoritmo promove não apenas a circulação de conteúdos, mas a normalização de padrões. E quando esses padrões envolvem a adultização, o efeito é duplo: alimenta a demanda entre quem consome e estimula a oferta entre quem produz. Uma retroalimentação perfeita para o mercado e o lucro das plataformas digitais, mas não para as crianças.

Sexismo reciclado em alta definição

Não é exagero dizer que a adultização é o cartão de visita da exploração sexual infantil. Uma vez que a imagem da criança é moldada para imitar poses, roupas e gestos associados à sexualidade adulta, ela entra num circuito que interessa a criminosos. A indústria tecnológica gosta de vender a narrativa de que combate esse tipo de conteúdo com “inteligência artificial” e “moderação proativa”. Mas, na prática, os números mostram que o volume de material sexual com menores cresce a cada ano.

No Brasil, a SaferNet — organização referência no monitoramento de crimes cibernéticos — divulgou dados estarrecedores: em 2023 foram registradas 71.867 novas denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil. Um salto de 77% em relação a 2022. A maior parte do conteúdo denunciado não é fruto de “vazamentos” ou “hackers”, mas de material postado abertamente nas redes.

O crescimento explosivo teve três motores principais: o uso de inteligência artificial generativa para criar imagens hiper-realistas de abuso infantil; os “packs” autogerados por adolescentes, que vendem suas próprias imagens em redes privadas ou plataformas de mensagens, muitas vezes sem compreender a dimensão do risco; e o enxugamento das equipes de moderação por parte das big techs.

Esses fatores mostram que não estamos falando de um problema apenas “comportamental” ou “moral”, mas de uma engrenagem econômica que incentiva a produção e a circulação desse tipo de material. As plataformas lucram com ele de forma direta (via anúncios) e indireta (via aumento do tempo de permanência do usuário). Enquanto isso, a moderação é tratada como custo, não como prioridade.

A adultização é também um veículo de reprodução da opressão de gênero. No caso das meninas, isso significa um processo sistemático de treinamento para a sedução e a submissão, disfarçado de “diversão” ou “empoderamento”. O padrão é conhecido: roupas justas ou curtas, poses que enfatizam corpo e curvas — mesmo que ainda não formadas —, e coreografias que imitam clipes e performances adultas. Isso não é aleatório. São códigos visuais que ativam referências de sensualidade já presentes no imaginário coletivo, mesmo quando a criança não compreende o que está performando.

A adultização masculina opera por outro viés, mas igualmente problemático. Para eles, o roteiro inclui roupas de marca, fala inflada de autoconfiança, piadas que insinuam poder ou superioridade, ostentação de uma postura corporal que simula virilidade. É a produção, desde cedo, de pequenos “influencers alfa”, moldando meninos para enxergar o mundo sob a lógica da competição e do domínio — inclusive sobre meninas. Essa formação prepara os dois lados da equação: meninas treinadas para agradar e meninos para avaliar, julgar e “consumir” a performance feminina. É o machismo reciclado, reeditado e reembalado com filtros coloridos e hashtags motivacionais.

Vale destacar que quando polêmicas como essa surgem, políticos conservadores correm para discursar contra a “sexualização precoce”, mas evitam falar das engrenagens que tornam isso lucrativo. Essa seletividade é funcional: mantém o debate no nível da moralidade individual e impede que se fale de algoritmos, monetização e responsabilidade corporativa.

Também saem em defesa da “família tradicional”, enquanto esquecem de mencionar que a maioria dos casos de abuso sexual infantil acontece dentro de casa, cometidos por familiares ou pessoas próximas. A internet não inverte essa lógica — só a potencializa.

Hipocrisia como cortina de fumaça

Enquanto a indignação pública foca no “inimigo externo” — o influencer que ultrapassou limites —, práticas semelhantes seguem intocadas em ambientes legitimados pela moral conservadora, como as que acontecem dentro das bolhas religiosas. Um exemplo pouco discutido, é o da adultização gospel. Em muitas igrejas, especialmente as vinculadas a denominações neopentecostais, surgiram nos últimos anos os “pastores mirins” — crianças e pré-adolescentes transformados em celebridades religiosas. Eles são expostos em cultos, transmissões ao vivo e redes sociais, acumulam seguidores, vendem produtos e até cobram para participar de eventos.

“Pastor mirim” provocou polêmica com sua projeção nas redes

Essas crianças performam uma estética que remete a mini-adultos, com gestos ensaiados, roupas formais e discursos prontos. Não raro, reproduzem a retórica de coaches do empreendedorismo, adaptada à linguagem religiosa: pregam a “vitória financeira”, exaltam o sucesso material como prova da bênção divina e disseminam entre outras crianças e adolescentes a teologia da prosperidade — a ideia de que fé e obediência trazem riqueza.

A dinâmica é a mesma das redes seculares: alto engajamento, monetização direta e indireta, algoritmos amplificando o alcance. Só muda o enquadramento moral. Enquanto influenciadores “do mundo” são acusados de corromper a infância, a adultização gospel é vendida como “testemunho”, “inspiração” e “formação espiritual”. A roupagem religiosa serve como blindagem moral para práticas que, na essência, expõem e exploram crianças para gerar audiência e lucro.

Essa contradição revela que o problema não é apenas a “sexualização precoce” — é a transformação da infância em produto, independentemente da estética ou do discurso que a embala. Tanto na dancinha sensualizada do TikTok quanto no púlpito infantil da igreja, o que está em jogo é a mesma engrenagem: crianças performando papéis adultos para entreter, convencer e vender. E enquanto a indignação pública continuar seletiva, a cortina de fumaça seguirá cobrindo um mercado muito mais amplo, diverso e rentável do que os discursos moralistas querem admitir.

Conclusão

Depois de percorrer todos os cenários — o histórico televisivo, a vitrine doméstica, os palcos religiosos, os algoritmos vorazes e as estatísticas que gritam —, fica impossível sustentar a ideia de que a adultização infantil seja um “desvio” ou “acidente” da internet. Ela é, na verdade, um produto do próprio capitalismo, lapidado sob medida para o capitalismo de plataforma.

No núcleo desse sistema está um princípio tão simples quanto brutal: qualquer coisa que mantenha você olhando para a tela é valiosa. E poucas coisas têm tanto potencial de retenção da atenção quanto crianças. Elas despertam empatia, curiosidade, ternura — e, para alguns, desejo sexual. É a matéria-prima perfeita para um modelo de negócio que não mede consequências, apenas cliques. A mercadoria sob medida para as plataforma e seus algoritmos: engaja, emociona, choca, fideliza audiência e se adapta a qualquer embalagem cultural — da dancinha no TikTok ao púlpito da igreja.

Para as empresas que lucram com isso, não há nada a consertar. O sistema está funcionando exatamente como foi projetado. Para elas, não importa se o engajamento vem de um público saudável ou de redes criminosas — desde que o número suba. O algoritmo não tem moral, só métrica. E no capitalismo de digital, métrica é dinheiro. Derrubar um perfil ou proibir um formato é inútil: a engrenagem se reinventa. É preciso atacar as causas, não as consequências.

Já o custo social — ansiedade, perda de privacidade, vulnerabilidade a abusos — não entra no balanço, ou melhor, é tratado como efeito colateral aceitável. Porque, no fim, a exploração infantil não é um exceção no capitalismo, mas a regra.

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Last Update: 12/08/2025